RETRATOS DE INFÂNCIA - CAP. 17

Atrevido, o sol forte desse sertão penetrou pela cortina da janela e aqueceu meu rosto que estava suado, convidando-me a despertar. Olhos vermelhos pelo sono pouco, iria apenas depois do almoço para o campo de pesquisa, pois pela manhã fariam escavações e minha presença não era necessária. Iria conversar com algumas pessoas interessadas em arrendamentos ou mesmo venda de terrenos e fazendas onde se pudesse explorar.

Olho o livro de memórias por um instante e o pego para a devolução. Folheio mais um pouco suas páginas cheias de histórias. Mas preciso trabalhar. E me vou. Caminhando pelas ruas ainda paro diante da matriz e vejo um anjinho de coroação à Nossa Senhora. Dores do Indaiá é um espaço fértil para minhas lembranças. Não imaginei nem por um minuto que minha visita seria assim tão emocionante. Faltavam dez minutos para as nove horas e sentei-me na praça para ouvir as badaladas do sino centenário, de bronze, com seu som inconfundível som, sempre a avisar as horas, não se sabe porque, visto que no Indaiá o tempo correndo não faz muita diferença, a não as donas de casa que ainda ouvem rádio para saber as horas quando não escutam ou não se lembram de ir contando as badaladas para saber exatamente que horas são. Talvez seja esse o único valor do tempo: esperar maridos que vem para o almoço e os filhos que chegam ou vão para as escolas. No mais, vassoura na mão varrendo a rua por horas, escorando-se ao cabo delas e conversando sobre tudo e sobre todos, principalmente.

__ Ei menina, interrompo o anjinho em seu caminho. Por que está vestida de anjo?

__ É ensaio, respondeu sorrindo. Hoje vamos abrir as coroações de Nossa Senhora.Tia Vitória vai ensinar os cantos e mostrar como se coroa a imagem. Mamãe fez esse vestido pra mim e eu já quis vestir logo.

__ E que horas é a coroação?

__ Depois da missa das seis. E no final tem lanche e balinhas. É muito legal. Todo mundo quer coroar e o padre falou que Nossa Senhora recebe todos os anjinhos no céu. Já vou indo, Tia Vitória está chamando.

__ Canta bonito viu, disse eu empolgado.

Olhei para a porta da igreja e vi a velhinha Tia Vitória. Era ela, sim era ela. Estava viva! Lembro-me de que foi ela que nos ensinou os cantos da primeira comunhão, ainda na Escola Mestre Tonico. Ela ia de sala em sala avisar o que era a merenda e sempre fazia o gesto de quem estava cheirando a melhor das comidas, com os olhos fechados e dizia ao final:

__ Hummmmm.... ta uma delícia.

E sempre estava mesmo. Por um instante senti o cheiro da comida da infância. Senti o prazer que a gente tinha na hora da merenda. Era o melhor momento da aula. Naquele tempo, comida boa era artigo raro e nossos pais tinham dificuldade em manter nossas mesas fartas. Nunca faltava, mas a dificuldade era tanta e o esforço era enorme.

Comecei a ouvir o canto dos anjos e as pessoas passando indiferentes a esse que, para mim, era um acontecimento. Era apenas um ensaio, mas para mim era como se fosse um belo retrato de infância, uma das lembranças mais belas que ainda trago dentro dessa alma de adulto que ora insiste na inocência e despreocupação dos meninos do Indaiá.

Segui meu caminho e fui visitar o dono de uma fazenda onde se faziam pesquisas. Osvaldo não estava disposto a vender uma parte de seu terreno para nossa empresa e eu ia propor um negócio. Ele recebeu-me cordialmente, mas continuava arredio. Saí dizendo que a empresa estava bastante interessada e que poderia mudar a oferta. Ele ficou de pensar em um valor e eu voltaria posteriormente.

Com um segundo, consegui um arrendamento para dez anos. Não é o ideal, mas foi um avanço. Na volta ainda passei pela velha Matriz e vi a meninada brincando na praça. No interior da igreja prezava-se agora o silêncio. Desci com minhas conquistas e minhas lembranças, ainda sentindo o perfume das flores que se jogavam na imagem de Nossa Senhora nos dias de coroação.

A tarde chegou rapidamente. Ainda com um pouco de sono resolvi rever algumas anotações para conversar com os trabalhadores da pesquisa. Almoço e pé na estrada. De volta, apenas me reuni com os trabalhadores da escavação que me relataram as dificuldades de se perfurar mais profundamente. Traçamos algumas metas e voltei. Como havia ido sozinho, pequei a camionete e voltei para a cidade. Estava ansioso por rever uma das cenas mais perfeitas do meu tempo de criança. Não resisti e passei pela rua de casa, mesmo dando uma considerável volta. Foi quando ouvi barulho de crianças, sorrisos inocentes enquanto fitava por um momento mais aquela casa da esquina. Virei o rosto e vi um pedaço de mim, uma parte do que fui e ainda sou. Meu corpo também pareceu se transportar e voltei ao passado. Em um segundo estava de chinelos, bermuda e descendo para a Matriz na maior festa.