Memórias de um Beijo - Parte I

O primeiro beijo é difícil de esquecer. Pode até ficar esmaecido na memória, mas é como aquele gostinho de doce de leite que fica bem marcado na boca depois que a gente come. E o bom desse beijo não é só o ato em si, mas o que a gente passa para conseguir tocar os lábios daquela garota que excita os pensamentos e nos faz descobrir de verdade que adolescência e infância são palavras diferentes.

Eu ainda me lembro daquele dia, quando eu preparei todo o terreno para conseguir esse árduo primeiro beijo. Estava tudo planejado. Como acontece com todo plano, tudo saiu improvisado no momento, para o grande riso de quem quer que estivesse observando a vida adolescente de Itaúna em 1993.

A cidade era mesmo Itaúna, ali no interior de Minas Gerais. Era aquele tipo tradicional de cidade, aquela mesmice, com praça central onde estavam a Igreja Matriz, a prefeitura, o centro de compras, uma farmácia quase secular, uma fonte que não funcionava e mais um monte de coisas que tem em toda cidade do interior.

O fato mais importante em Itaúna, no entanto, era a tradicional festa matinê que acontecia no Automóvel Clube. Era promovida pela escola de inglês da cidade. Era A escola naquela época, do mesmo modo que havia A banca de revista e jornais, O supermercado e outros pontos únicos de referência. Lá, no caso, havia essa festa matinê, do Halloween. Eu a freqüentava desde cedo, quando ainda não sabia definir bem o que significava adolescência e foi nela mesma que descobri o que era essa palavra.

A grande idéia do beijo começou com um sonho e foi materializada pela ida à festa. Esse sonho, por sinal, começou quando eu vi Keila pela primeira vez. Eu acabara de entrar para a turma A da sétima série do Colégio Estadual. Quando eu vi aquela garota de bochechas fofas que davam vontade de acariciar, lábios avermelhados como rosas, pele clara como neve e macia como seda, eu não pensei nada disso! Pensei logo: Essa é bonita mesmo, uai!

Foi com esse pensamento que eu tomei a atitude mais óbvia, objetiva, sensata, racional e adulta dos meus treze anos. Eu passei os próximos seis meses sem trocar nenhuma palavra com ela que não fosse um bom dia. Conversava com todo mundo, menos com ela. Nossos diálogos eram quase como:

- Bom dia! – dizia ela com um sorriso tímido que me dava certeza de que naquela noite eu sonharia muito mais. E meus sonhos teriam gosto de doce de leite e a cor de um buquê do dia dos namorados.

Eu respondia com uma espécie de gemido que na minha língua apaixonada significava também um bom dia. Eu chegava a desconfiar que estava inventando uma língua nova, sub-sônica, ou que um vírus da “paixonite” havia inflamado a minha língua de modo que eu não conseguia falar do jeito certo. O fato era que eu parecia uma estátua pálida diante da garota que dominava os sonhos da minha adolescência, tendo até mais destaque do que algumas coelhinhas da Playboy que um dos amigos pegava escondido do irmão e levava para a escola para vermos.

O diálogo continuava com:

- Como foi o fim de semana? – ela perguntava, obviamente. Eu ainda estava paralisado.

Respondia de novo na língua dos anjos... talvez fosse algo espiritual. Ela entendia alguma coisa como sair de bicicleta com meus primos para fazer trilha e depois tomar alguma atitude que faria a minha mãe reagir de forma a fazer a minha consciência se arrepender.

Assim se passaram os meses. Esse meio tempo foi composto de semanas agitadas e felizes com ações que me levaram a expulsões da sala de aula, advertências da diretoria, a primeira vez que zerei uma prova e, ainda, a declaração vergonhosa para a melhor amiga da Keila, a Nívea.

Absurdo, alguns pensaram depois quando contei a verdade, mas naquela época, em que de algum modo achávamos que estava inserido nos Dez mandamentos o “Atormentarás a vida do próximo colega de sala usando tudo o que tiver como munição”, eu pensei que era melhor ser atormentado por algo que não existia do que pelo que realmente me incomodava.

O ano foi seguindo agitado, como nunca foi em minha vida. Sempre passei os anos no outro colégio onde estudara até a sexta série como um ótimo aluno, quieto, obediente e crítico em alguns pontos. Deixava as invencionices que seriam futuros arrependimentos para os finais de semana. Aos treze anos, a cozinha do diabo parou de funcionar só aos sábados e domingos para abrir de segunda a segunda, incluindo feriados.

Mente vazia, cozinha do diabo. Foi uma verdade naquele ano. Minha mãe até já sabia que precisava se preparar para problemas se a casa estivesse muito silenciosa, se ninguém aparecesse com alguma reclamação ou se não houvesse gritaria de criança em algum lugar. Era um código e um alerta. Um sexto sentido a avisava que os problemas aumentavam exponencialmente conforme o tempo em que eu ficava maquinando.

Foi com esse cérebro perspicaz, capaz de criar os mais incríveis problemas para minha mãe, que eu maquinei a estratégia para o meu primeiro beijo. A festa do Halloween se aproximava e todo estudante poderia vender seus ingressos. A cada seis vendidos, ganhava-se um. Com pouco dinheiro em casa, o que me restou foi partir para a luta. Doze ingressos. Isso, doze ingressos e eu garantiria meu primeiro beijo. Um para mim, um para Keila. Seria o convite perfeito.