Anedota corriqueira de pracinha de bairro

Anedota corriqueira de pracinha de bairro

Era uma pracinha normal dessas de bairro. Aconteciam coisas que costumam acontecer em todas as pracinhas de bairro; tinham quatro castanheiras; embaixo de cada castanheira tinha uma mesinha que hora ou outra os velhos usavam pra jogar dominó, o pessoal da caminhada pra descansar, a tia do picolé pra contar as moedas, os drogados pra fazer o que eles costumam fazer em horários de pouca movimentação, enfim.

Ele era meio nerd, meio intelectual, sei lá. Andava de uma maneira estranha desligado da realidade, tinha uns hábitos esquisitos e gostava de usar um colete igual ao do Ziraldo. Frequentemente fazia uso de palavras difíceis que nem eu mesmo sabia o significado_ E olha que eu sei de muita coisa sobre esse sujeito_.

Acho que era a única pessoa da história da pracinha a utilizar uma daquelas mesinhas pra um ritual diário que fazia com que quem olhasse pra aquela cena contraísse a sobrancelha. Ele armava um tabuleiro de xadrez na mesa, pegava um livro e ficava um bom tempo movendo as peças reproduzindo as jogadas do livro.Alguns se perguntavam: “Como é que pode alguém jogar isso sozinho?” Outros perguntavam isso a ele, o que fazia com que quebrasse a sua linha de raciocínio.Isso o irritava. Uma vez ele se enfezou com isso e na outra vez que apareceu na pracinha levou uma placa de papelão que fixou na mesa com letras vermelhas garrafais de pincel atômico: “ Estou estudando.

Se for parar pra olhar, não fale comigo”. Ele sempre ficava na mesma mesa, na mesma cadeira.Devia ter seus motivos, os quais eu nunca tive a curiosidade de querer saber. Ele morava em um sobrado de frente para a pracinha, e sempre depois da soneca após o almoço ele olhava lá de cima se seu lugar estava desocupado. Ele pegava sua bolsa azul colocava nela seu tabuleiro, o livro, garrafa d’água , biscoitos descia as escadas e ia pra lá.

Ela se vestia de uma maneira chamativa, fazia umas coisas estranhas no cabelo, usava umas roupas descoladas e fazia um estilo meio “moderninho e independente”.

Esqueci de dizer anteriormente_ Mas também nem era hora de dizer_ que do outro lado da rua em frente a pracinha tinha uma escola particular em cujas dependências havia uma rede wireless,para que os alunos pudessem acessar a internet mesmo na hora do recreio, e que esse sinal cobria um raio e alcance que abrangia alguns pontos fora das dependências da escola, dentre eles apenas uma das mesas da pracinha. Embora a rede fosse bloqueada, um aluno pichou a senha de acesso no muro; Quando a coordenação da escola ficou sabendo disso, mandou o zelador corrigir o problema. O zelador pegou o balde de tinta, o pincel e passou uma mãozinha de tinta sobre as letras da senha.

O problema é que o muro já havia sido pintado há um tempo razoável, e a tinta azul já estava um bocado desbotada. Quando o zelador passou tinta na pichação, ele só passou sobre os traços das letras, e quando a tinta secou contrastou uma tinta nova sobre uma desbotada, fazendo com que a senha da rede continuasse visível.

Pois bem voltando a falar sobre ela; Acho que ela estava sem internet em casa, porque na primeira vez que ela apareceu lá ela tirou da mochila tablet, notebook, celular, e mais um monte de coisa capaz de navegar na rede, colocou sobre a mesa e ficou lá durante o tempo que pode. No outro dia ela foi para o mesmo lugar, agora só com o notebook e com fones de ouvidos. _Não acredito! Tem três dias que aquilo está chegando ali na minha mesa, abre um notebook e fica o dia inteiro. Só sai quando o sol está indo embora!

_Quem é que está chegando na sua mesa? _Não sei. Não consigo reparar de longe. Usa umas roupas esquisitas, deve ser um travesti, sei lá. Anteontem eu vim até aqui umas oito vezes e aquilo estava lá sem a mínima vontade de sair! Como poderei ser um campeão se não nem lugar pra treinar eu tenho mais? Amanhã se eu acordar e aquilo estiver lá eu vou descer e tirar satisfações. Eu moro aqui desde que nasci e ninguém vai roubar meu espaço não!

_Ué, é só você chegar mais cedo que ela. A praça é pública, você não pode tirar ninguém de lugar algum de lá sem um bom motivo.

_Chegar mais cedo? E minha sesta? Preciso estar completamente descansado para poder treinar. Não, não vou ceder. Quero meu lugar de volta e amanhã vou pedir e ela ou seja lá o que for aquilo para ficar em outro lugar!

No dia seguinte, depois da sesta, de sua casa ele olhou a praça e viu que ela estava lá no mesmo lugar. Ele saiu determinado . Pegou sua bolsa azul convicto de que

treinaria como sempre e foi em direção a ela. Ele foi se aproximando, mas ela estava tão concentrada no notebook que não reparava ao redor.Quando ele chegou perto, deu meia volta e retornou rápido pra casa.

_ O que aconteceu? Desistiu de bater boca por causa de um lugar na praça?

_Mudança de planos.

_O que foi? _

Não é um travesti. Ela é...linda!

_Ela quem?_A menina que está na minha usando a mesa. _E o que você pretende fazer?

_ Me casar com ela! _E como você pretende fazer isso? _Estratégia, meu caro. Estratégia enxadrística...

Depois dessa conversa ele se sentou no sofá da sala e pos-se a rascunhar no caderno um plano para essa conquista.

_Ok, a primeira coisa a se fazer em uma situação como essa é fazer um balanço das forças inimigas e identificar pontos de infiltração.

_Peraí; forças inimigas? Você não quer conquistar ela?

_E o que você faz para ganhar uma guerra? Vai conquistando territórios aos poucos até tomar por completo seu objetivo.

_Você é muito estranho. Porque não chega nela diz que a achou bonita e a chama pra sair, tomar um sorvete, sei lá?

_ Ah! Sim, é claro! E agir como uma dezena dos que provavelmente já tentaram se arriscando a perder antes mesmo dos 5 minutos de luta, não é? Meu caro; você acha que os grandes homens conquistaram vastos territórios apenas abrindo seu coração? Quando um jogador de xadrez tem um objetivo, ele precisa prever todas as possibilidades e reações possíveis, analisar cada plano, e os desdobramentos de cada plano, e ainda por cima tem que ver se a situação final de cada plano compensa, ai ele pega as melhores opções compara e age. É assim que eu farei.

_Acho que no tempo que você vai ficar planejando isso vai aparecer um cara que vai chamar ela pra tomar um sorvete e vai pegar ela antes de que você consiga pensar nos seus planos.

_Meu primeiro passo vai ser seguir a recomendação do Sun Tzu. Traçar um perfil completo do inimigo.Preciso levantar informações, saber coisas sobre ela.Mas ela não pode nem sonhar que está sendo investigada;não posso de maneira alguma perder o controle da situação. Eu tenho que fazê-la agir como eu determinar.

_Você é muito esquisito. No dia seguinte ele não tirou seu cochilo pós almoço. Ficou olhando com um binóculo ela chegar e se estabelecer lá, e quando deu a hora de ela ir embora ele resolveu segui-la. Ela andou por umas três ruas bairro a dentro e entrou em casa.Era uma casa com muros altos, que na semana anterior estava com uma placa de aluga-se. Ele colocou no caderno todas as informações que achava relevantes sobre a ida dela pra casa.

No outro dia, sua tarefa era mais complicada. Descobrir o nome dela.

_Já sei como vou fazer. _Como? _Com isto! _Seu celular? Você vai descobrir o nome dela com seu celular?

_Preste atenção: Em menu, Bluetooth, interconexão de dispositivos, agora eu espero alguns segundos e veja só o que aparece _O que aparece?

_Aparece o Bluetooth do celular de todo mundo aqui de casa, com seus respectivos nomes. Eu costumo ligar o Bluetooth dentro do ônibus só pra ver os nomes e ficar imaginando a quem pertencem.

_Você realmente é muito estranho!

_Agora vá lá e tente localizar o sinal do Bluetooth dela. Não precisa se aproximar muito.Ela vai estar concentrada, não vai reparar em você.

_Porque eu? O interessado nela é você!

_Porque você me deve alguns favores, e eu não posso aparecer lá até que chegue a minha hora de aparecer.

_Ok, Ok.

E não é que deu certo? Ela estava com o bluetooth ligado! O apelido dela foi localizado tal como imaginado.

_O que vai fazer agora?

_Simples, coloco esse nick dela em alguma rede social, e encontro os dados dela em seu perfil.(...)Viu só! É ela,é ela! Agora vou em bandas, filmes, prefêrencias,livros... e aqui estão os dados eu eu preciso!Agora é só copiar aqui pro meu ralatório...

_Ótimo; agora que você já tem os dados dela, o que pretende fazer?

_Eu não sei ainda. Mas o que importa é que eu já avancei uma fase no meu plano.

_Olha aí, ela diz que gosta de malhar.Você pode se matricular na academia e tentar se aproximar dela.

_Isso não. No meio daquele monte de fortões a única maneira de um magrelo como eu chamar atenção de alguém é atrasando a mensalidade!

No outro dia ela não apareceu , nem no outro, nem no outro.Ele já estava aflito e foi investigar o que estava acontecendo. A companhia telefônica havia instalado a fiação a internet na casa dela e ela não tinha mais motivos para filar internet na pracinha.

_Viu só? Eu disse pra você chamar ela pra tomar o sorvete.Agora ela não voltará mais e você já era. _Não! Eu não posso perder o controle da situação.Eu tenho que controlar a dinâmica dos acontecimentos, ela vai voltar pra lá quando eu quiser. Que solução ele encontrou?Pegou duas botinas velhas, amarrou-as a um cadarso, colocou delicadamente duas notas de 10 reais em casa botina, pegou uns brinquedos antigos, amarrou um em cada cadarso, e na calada da noite jogou isso no fio de telefone da casa dela.Quando ela saiu de casa na manhã seguinte, viu um monte de crianças e moleques brincando e a fiação telefônica de sua casa no chão.

Ela voltou para a pracinha naquela tarde.

_Está vendo? Ela voltou! _

E o que você está pensando em fazer?

_Uma vez caiu um galho em cima da fiação telefônica aqui em casa e eles só vieram consertar em 48 horas.Isso quer dizer que tenho hoje e amanhã pra agir.Pensei em arrumar uns falsos assaltantes pra ameaçarem ela, aí eu apareceria e a defenderia escurraçando a todos.Seria um herói! Quer coisa mais romântica que essa?

_Você está louco? Se essa menina for cardíaca você mata ela!

_Estou apenas avaliando todas as possibilidades possíveis!Mas relaxa que eu já sei como agir. Não tem nada a ver com isso não.

Ele ficou durante boa parte da noite analisando seu caderno com as informações que obtivera dela,refletindo,pensando em criar uma situação especialmente casual, até que chegou àquilo que chamou de “algoritmo”, que deveria ser a forma infalível de emprego das atitudes para alcançar seu objetivo.

_Pronto! Viu só como foi fácil? Agora a única coisa que eu tenho que fazer é esperar o momento certo, e aplicar o método de abordagem específico para pessoas como ela que eu desenvolvi.Pensei em todas as possibilidades. Todas as manobras evasivas possíveis por parte do adversário foram previstas e poderão ser prontamente respondidas com atitudes certeiras e delicadas.

Naquele dia ele tirou sua sesta, e estava muito tranqüilo e confiante. Ele esperava começar suas operações com uma surpresinha pra ela, a primeira coisa que iria fazer seria se aproximar e enviar via Bluetooth uma versão original da música preferida dela que era um remix. Assim que ela aceitasse a música ele iniciaria a abordagem puxando assunto de maneira que ela pensasse que eles tinham gostos parecidos. Não sei como ele conduziria o resto. O fato é que ele olhou lá de cima do sobrado e a viu se aproximando da praça. Foi executar sua tarefa. Desceu como um guerreiro, determinado foi até lá em uma marcha implacável. Em mente apenas o êxito do plano, tentava recordar-se das variantes de cada necessidade específica.

_Se ela reagir dessa maneira, eu faço isso, se ela se assustar, eu digo aquilo.

Chegou ao campo de batalha, fitou o alvo e volveu em meia volta. Retornou pra casa no mesmo ritmo.

_O que aconteceu? Porque você voltou? O que você viu quando chegou lá?

_A vadia estava pegando o filho do sorveteiro!

Historiailton
Enviado por Historiailton em 12/02/2016
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