Você nunca sabe o que esperar do dia seguinte


Acordei com o interfone da cozinha tocando incessantemente. Era o síndico do prédio pedindo que eu descesse até a portaria pois havia um rapaz loiro com a minha foto falando uma língua que ele não entendia. Ainda fui obrigada a ouvi-lo falar que desde que me mudei para lá só acontece coisas estranhas nesse prédio. Absurdo! Passei pelo quarto de Samanta, e ela já tinha saído, mas deixou um bilhete em cima da cama.

“Bom dia, dona Malu!
Precisei ir ao centro da cidade para comprar algumas coisas para mim.
Não vou demorar, qualquer coisa me ligue.
Sam.”


Escovei os dentes apressada, vesti um conjunto de moletom e corri até o elevador. Apertei o térreo, e quando me dei conta de quem realmente era a pessoa que o síndico falava desejei que o elevador parasse e eu nunca mais pudesse sair daquele quadrado que me afastava de Thomas.

O elevador parou e a porta se abriu, com ela a voz firme e marcante de Thomas tomou conta do ambiente. Foi um baque. Coloquei a mão na porta por alguns minutos de sair. Um rapaz loiro, alto demais para os padrões do homem brasileiro e olhos azuis pacíficos se encontrava sentado no banco, próximo a bancada do síndico. Vestia uma camisa branca, com detalhes escuros na manga e uma calça jeans. Thomas era simples. Sempre fora. Demorou alguns segundos para me olhar, e nenhum segundo sequer para me dar um abraço daqueles sufocantes que só ele era capaz de me dar.

- Malu... – Sussurrou no meu ouvido. Dava para sentir a tranquilidade em ver que realmente eu estava ali. – Eu... – Respirou fundo, abrindo a boca duas vezes. Logo compreendi a dificuldade dele em falar o meu idioma.

- Keine Sorge, Ich mag Deutsch zu sprechen.* – Thomas segurou meu rosto e sorriu. Por um breve momento tive certeza que ele iria me beijar e aquilo me assustou.

- Eu fiz um esforço imenso para studi... Scheibe!** estudar português com meus amigos da internet.

- Você está indo muito bem, como sempre. – Sorri para ele, mas não foi exatamente um sorriso honesto. Thomas, completamente alegre e agitado não notara isso. Ele me puxou para seus braços novamente e tive vontade de chorar quando o ouvi bem baixinho um “eu te amo”.


Não se preocupe, eu gosto de falar alemão *

(...)


Tentei disfarçar meu estado de choque enquanto observava Thomas e o porteiro do prédio colocarem as malas dentro do meu apartamento. Ele irradiava uma alegria descomunal que só aumentava a minha agonia interior. Isso aconteceria alguma hora. Eu deveria ter imaginado.

- Obrigada! – Agradeci ao porteiro que sempre acabo esquecendo o nome.

- Não há de que, dona! – Ele saiu do apartamento encostando a porta. Eu o segui, para fechar a porta. Quando me virei, Thomas parou na minha frente com o mesmo sorriso bobo.

- Thomas.

- Malu.

E foi extremamente curto o momento em que ele me empurrou na parede e selou nossos lábios, forçando sua língua quente na minha boca. Não tive reação alguma além de retribuir. Primeiro porque eu era covarde demais para agir diferente com ele, e segundo porque sabia que não adiantava nadar contra a nova maré que minha vida entrava. Thomas, assim como Immanuel eram pessoas que eu não poderia evitar.

A mão dele entrou pelos meus cabelos, puxando com mais força que o normal. O olhar dele era quente, as íris pareciam mergulhar em mim como jamais tinham mergulhado antes. Thomas ergueu meus braços e segurou minha cintura. Os seus dedos ameaçavam levantar a minha blusa, mas fui salva pelo meu telefone.

- Não atende... – Ele sussurrou em meu ouvido, a voz totalmente rouca de excitação. Segurei sua mão, e delicadamente a afastei.

- Eu preciso.

Segui até o sofá e peguei meu celular. Olhei no visor e era o número de Michel. Respirei fundo, antes de encostar o aparelho na orelha.

"Oi, Malu"

Demorei alguns segundos para responder, porque sabia que assim que eu abrisse a boca ele notaria que havia algo de errado.

- Oi.

"Como você está?"

- Bem e você?

"Com saudades. Vem para cá! Vamos assistir um filme eu, você e o Miguel. Espero que você esteja livre."

Aquela frase dita de forma tão natural fez meu coração disparar de forma instantânea. Era a visão de um final de semana perfeito. Virei para olhar Thomas, que agora mexia em suas malas.

- Eu... Eu não posso.

"E se formos aí para te ajudar? A Sam me man.."

- Não! – Exclamei, tão alto e desesperado que se ele não desconfiava de algo, passaria a desconfiar naquele instante. – Não precisa... – Tentei suavizar a voz. – Eu estou bem. Se eu conseguir te ligo a noite. Ok?

"Tudo bem." – A voz masculina era de decepção. - "Qualquer coisa me ligue."

- Ligo sim, tchau.

Agir de forma evasiva com Michel era ruim e o faria criar teorias e com isso nasceria novas discussões, mas não posso contar sobre Thomas. Ainda não.


- Thomas, eu só tenho um quarto nesse apartamento que já está ocupado pela babá da filha de um amigo. – Falei com o maior cuidado para não dar espaço à perguntas.

- Eu durmo no sofá. Isso é o de menos. – Ele deu um sorriso de canto, que eu instantaneamente entendi. – Você está tensa, o que aconteceu?

- Nada. Está tudo bem... Vamos, eu te ajudo com suas malas.


(...)

- Eu não sou burra! – Samanta parou com as mãos na cintura em meio a papelaria lotada do centro da cidade. – E sinceramente, eu não aguento mais você! Maldita hora que aceitei sua carona.

Sob o olhar ansioso do vendedor Samanta deixou todas os materiais que ia comprar em cima da bancada e saiu com raiva. Bernard revirou os olhos e a seguiu. Tinha sido grosseiro com ela por uma bobagem à toa.

“Ela precisa mesmo ser tão sensível? Que garota chata!”

- Ô caipira! – Já na calçada ele a segurou pelo cotovelo e a puxou para seu encontro. – Foi mal. Eu não queria te magoar!

- Você é grosseiro. Me chamou de burra só porque eu não sei usar fichado!

- É fichário na verdade.

- Cala a boca.

- Você é muito nervosinha. – Bernard suavemente colocou a mão sob o rosto de Samanta. Não tinha como se conter. Ela era bonita e o atraia como jamais fora atraído antes. – Olha, eu não sou bom nisso... Mas me desculpe, ok?

Samanta baixou a cabeça, covardemente. Os olhos de Bernard a encaravam com uma sensualidade que deixou seu corpo mole. Ele colocou o dedo no queixo dela e o ergueu, lentamente. Queria beija-lo, mas não pediria isso.

- Você me desculpa? – A voz dele mudara de tom. Agora era baixa, mais concentrada em Samanta.

- Sim... – Ela diminuiu a distância entre eles, deixando os lábios tão próximos aos do rapaz que podia sentir o gosto. Não lembravam mais que estavam na rua, em meio a uma calçada agitada, de frente para uma papelaria. Eram só os dois. Só à dois.

Bernard tinha plena consciência do erro que cometeria caso a beijasse, mas não conseguia se afastar de Samanta. Ela colocou as mãos sob o pescoço dele, a respiração começava a falhar conforme os braços masculino a rodeavam. Foi nesse momento que o celular dele tocou. Ele ignorou a primeira chamada, sugando seu lábio inferior e dando uma mordidinha que fez o corpo dela entrar em erupção. O celular não parou de tocar e relutante, Bernard tirou o aparelho do bolso.

- É o seu patrão. – Avisou, se afastando de Samanta. Apertou a tecla do verde do celular e encostou na orelha. – Fala, meu rei. Eu estou com a Samanta, encontrei ela no centro e dei uma carona... Hã... Você acha que a Maria Luíza tá escondendo algo? Sim, quando eu sair do trabalho vou até a casa dela. Ok, tchau.

- Está tudo bem? – Samanta perguntou, o semblante sério. Bernard odiou Michel por alguns instantes.

- Sim, só velhos problemas entre seu patrão e nossa amiga. - Ele foi para a porta do motorista e Samanta abriu a de passageiro. – Eu te deixo em casa.

Samanta respirou fundo sem evitar a tristeza. Dificilmente teria outro momento como aquele com Bernard. A volta até a casa foi silenciosa. Ela queria que ele falasse algo que significasse que poderiam ter outro momento como aquele, mas não houve essas palavras. Não houve qualquer palavra.

Quando o carro parou em frente ao apartamento do amigo, Bernard travou a porta para Samanta não sair. Ela o olhou, confusa.

- Eu preciso descer.

- Eu sei.

- Então?

Foi a vez do rapaz respirar fundo. Mal a conhecia e ela já tirava seu sono. Precisava cortar isso o quanto antes. Faria Samanta sofrer.

- Escuta, isso não vai dar certo. – Começou a falar. A voz tentava soar tranquila, mas ele vacilava. – Eu não sei o que você pensa, mas não é isso. Não é, e não vai ser.

Samanta não conseguia olha-lo nos olhos. “Era óbvio que isso ia acontecer.” Queria que Bernard não continuasse com aquele falatório desnecessário.

- Abre a porta do carro. – Ela o olhou de soslaio. - Por favor.

- Você não vai me dizer nada? – Perguntou o rapaz, surpreso com a reação fria dela.

- Eu tenho algo a lhe dizer? – Rebateu com a pergunta, seu modo era firme. - É o que você quer. Então é o que vai acontecer.

“Ela está certa em reagir assim.” – Ele pensou, a olhando inexpressivamente. “Eu teria reagido assim no lugar dela.”

Um click foi ouvido e a porta do carro foi aberta. Samanta desceu tão calada e absorta em seus próprios pensamentos que não conseguia ter uma reação diante da recusa de Bernard. Lembrou-se vagamente do quase beijo em frente a papelaria e se virou para olhar o carro, mas Bernard já havia partido.


“Eu não posso. Não posso. Eu já tenho total consciência do que vai acontecer comigo, não preciso envolver mais alguém na minha vida. Não preciso enterrá-la comigo.” – Apertou o volante com mais força. – “Ela é jovem, bonita e tem todo um futuro pela frente.”

Quando chegou ao apartamento de Maria Luíza, seguiu até a entrada, identificou-se com um guarda e foi até o porteiro que assistia a uma pequena televisão.

- Eu vim para ver a Maria Luíza. Meu nome é Bernard. – O porteiro o olhou, sem muita animação.

- Ah, a dona Maria Luíza... Só um momento que eu vou avisar da sua chegada. – Ele puxou o interfone. “Oi, Dona Malu. Tem um amigo seu querendo te ver. Bernard o nome. Ah, pode subir? Ok. Boa tarde.”

Ele colocou o interfone de volta ao lugar.

- Dona Maria Luíza é uma moça muito bonita, não é à toa que os rapazes estão sempre procurando por ela.

Na hora que ia responder o homem, Bernard notou um rapaz saindo do elevador. Ele franziu o cenho, sem entender o motivo daquilo ter chamado a sua atenção.

- Olha lá... – A voz do porteiro chamou sua atenção. – O alemão que é doido pela dona Malu.

A voz de Michel soou em seus ouvidos.

“Ela está estranha, Bernard. Eu a conheço, sei quando Maria Luíza esconde algo.”

- Posso subir? – Perguntou ao porteiro, mas ainda observava o rapaz loiro falando uma língua que o diferenciava dos outros. Até que ele saiu pela porta, indiferente as perguntas mentais que fazia Bernard.

- Pode sim.

Ele falou o andar de Maria Luíza e Bernard subiu.


Maria Luíza abriu a porta com um sorriso irônico, como se esperasse pela visita do amigo. Ela se encostou a parede e cruzou os braços diante, então riu.

- Por que será que eu esperava por isso, hein? – Perguntou, com suavidade. – Como vai a minha fada madrinha preferida?

- Muito engraçado, loira. Muito engraçado. E você sabe que ser engraçada não é bem seu forte.

Ela revirou os olhos e deu passagem para Bernard passar. Quando o rapaz entrou, a porta foi fechada. A primeira coisa que ele viu foi uma camiseta masculina no sofá. Seus olhos pousaram sob a garota.

- O que está acontecendo, Malu? – Os olhos dela também pararam na camiseta masculina no sofá. – Michel está preocupado com você.

- Eu não sei porque o... – Ela seguiu para a cozinha, para fugir do olhar inquisitivo, mas não foi muito longe, Bernard a puxou pelo braço.

- Maria Luíza!

Surpreso, viu a amiga baixar a cabeça. O clima, que antes era leve, pesara de forma imediata.

- Você viu um rapaz alemão passando pela portaria... Não é? – A voz dela era chorosa. Bernard colocou o dedo no queixo dela, e o ergueu lentamente. Os olhos azuis tão marcantes agora eram tristes.

- Vi. Quem é ele?

- Thomas. Meu ex-namorado. Ou, atual, já que ele não aceita que eu não quero voltar.

Bernard soltou o ar que prendia. Já podia imaginar a reação de Michel e as futuras brigas com Malu. Anos se passaram e Maria Luíza ainda era um imã de problemas. Ele aconchegou a amiga em seus braços e não demorou muito a ouvir seu choro.

- Eu não posso falar pra Michel sobre ele. E vice-versa. O Thomas é uma pessoa especial. Eu o amo, eu o amo muito! – Ela olhou Bernard. – Mas não é mais esse tipo de amor. Eu escondi coisas horríveis de Thomas. Eu sou um monstro, Bernard! – Presa a sua própria agonia, Maria Luíza começava a se descontrolar.

Ela falou sobre a traição de anos, de como começou e como terminou. “Achei precisar daquilo, que precisava ter um homem para inflar meu ego, para fazer eu me sentir mulher. Viver algo perigoso, que me desse emoção.” – Revelava entre lágrimas grossas que desciam por seu rosto delicado. “Eu só pensei em mim, não pensei em Thomas, não pensei no ódio dele pelos Babinsky. Eu só queria não me sentir mais uma garotinha.” Confessou toda uma vida regada a pecados e luxúrias.

Agora sentados no sofá de Malu, Bernard a segurou pelos ombros e a olhou consternado com a situação em que ela vivia.

- Malu, você precisa contar a verdade para ele. – Ela balançou a cabeça em um não frenético. Parecia estar a ponto de um delírio. – Você só está piorando a situação deixando ele viver contigo como fossem um casal! Fale a verdade.

- Ele não vai aguentar, Bernard. Thomas é que nem eu! Ele não tem ninguém além da irmã. A família Babinsky levou os pais dele à morte. Ele não vai me perdoar nunca. – O rapaz respirou fundo segurando a vontade de abraçar Maria Luíza. – Ele não vai me perdoar...

O abraço que Bernard deu em Malu foi forte, daqueles sufocantes e protetores. Queria que ela não estivesse nessa situação. Sabia que a amiga merecia ser feliz ao lado de Michel. Ambos precisavam um do outro, porém quando estavam próximos da tão sonhada paz sempre aparecia algo para afastá-los. Conhecia Michel o suficiente para saber que sua reação não seria das melhores. E temia por isso.

Ficaram em silêncio por algum tempo, Bernard aguardou, paciente que Maria Luíza se acalmasse.

- Bernard... – A loira fungou, tentando controlar as lágrimas que desciam sem parar pelo rosto. Ele a olhou, atento. – Eu preciso que você enrole o Michel. Me dê só um ou dois dias. Resolverei isso, eu juro.

Era um erro se envolver em mais um problema de Maria Luíza, mas era incapaz de dizer não a ela. Um de seus poderes continuava sendo deixar qualquer um disposto a fazer qualquer coisa por ela.

- Tudo bem. Eu vou ver o que faço.

Sua parte ele faria, mas isso não significava que Michel se manteria inerte a distância da mulher que amava.

Bernard que nunca fora religioso se viu rezando baixinho, pedindo que Deus ajudasse seus amigos.

Tamiris Vitória
Enviado por Tamiris Vitória em 14/04/2016
Reeditado em 05/06/2022
Código do texto: T5604565
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