Finge que o tempo não passou


Desde que Michel soube de Thomas, passou a me tratar de forma profissional e distante. Conversávamos sobre trabalho, reuniões e sobre os funcionários, mas nunca sobre nós. Me obriguei a respeitar sua decisão, mesmo sabendo que aquilo acabava comigo. E com ele também. Era visível.

- Maria Luíza? – Ao ouvir a voz dele, eu fechei a tela do computador, pois olhava fotos nossas de quando fomos ao Rio de Janeiro. – Licença! Eu preciso entregar umas coisas para você assinar.

Não respondi. Acho que não era necessário. Eu tinha medo de chorar caso falasse, como em toda vez que eu sentia que ia perde-lo.

- Aqui. – Ele deixou em cima da mesa, fazendo todo o trabalho de não tocar em mim.

Assinei em silêncio e devolvi. Michel recolheu, em silêncio e murmurou um obrigado. Quando ele colocou a mão na maçaneta, eu saltei da cadeira.

- Michel.

- Sim? – Ele me olhou.

- Eu preciso falar com.. – Antes que eu pudesse concluir minha fala, o celular dele tocou. Talvez aquilo fosse um sinal. – Atende.

Michel continuou me fitando com seus olhos verdes sempre cansados dos meus mistérios.

- É a Sam. – Ele se afastou um pouco. – Oi Sam. Tudo bem com o Miguel? – Eu olhei para seu rosto, acompanhando suas expressões. – Você o levou ao hospital que eu te falei? Certo. Fica calma. Ele sempre que gripa fica com falta de ar. Eu estou indo aí... Ok, tchau!

- O que aconteceu? – Perguntei, preocupada.

- Miguel acordou gripado e foi parar no hospital com falta de ar. Eu preciso ir, Malu. – Eu balancei a cabeça, assentindo.

- Michel, espera! – Eu o chamei. – Eu levo você.

Ele voltou até a porta.

- Não precisa, Malu.

- Vamos. Eu insisto.

Peguei minha bolsa e saímos em silêncio.

Michel ainda conseguiu protestar (mais) porque eu não queria deixa-lo dirigir. E para não discutir à toa, acabei cedendo. Quando já estávamos em meu carro resolvi puxar assunto. Michel estava muito calado, e eu sabia que não era apenas por causa de Miguel.

- Espero que Miguel fique bem.

- Ele vai ficar sim. – E me olhou de soslaio. A tranquilidade paterna em sua voz. Eu mordi o lábio, nervosa e querendo acabar com aquele clima. – E como está o Thomas?

- Bem. – Respondi, de forma simples.

- Que bom. E você, como está?

Paramos no sinal. Michel me olhou novamente, me estudando. Eu baixei a cabeça e depois dei de ombros.

- Estou bem.

- Não está não. - Suspirei, desolada. O carro voltou a andar. – Eu só queria que as coisas dessem certo. Só isso. Nada mais.

- Eu também quero isso!

- Você tem que concordar comigo que não parece.

- Michel... - Aquilo tudo também me cansava, mas eu não podia agir como se Thomas não tivesse valor algum. - Eu não posso simplesmente manda-lo embora.

- Você o ama? – Não havia agressividade na pergunta, mas sim uma expectativa pela resposta.

- Sim, eu o amo, mas não como um casal. Não esse tipo de amor.

- Não sei se consigo compreender.

- Eu sei que não é fácil.

- É uma boa resposta quando alguém não quer contar a verdade.

Eu poderia ter respondido? Poderia. Mas conheço Michel, sei quando ele quer brigar comigo para arrancar alguma coisa de mim. Voltei ao meu silêncio, o frustrando totalmente.


O carro estacionou em frente ao hospital e Samanta já nos esperava. Sua expressão era angustiada e os olhos se encontravam inchados.

- Que bom que vocês chegaram! Ele está com a enfermeira no pronto-socorro.

- Eu vou lá. – Michel avisou, e correu em direção a porta de entrada.

- Ei! – Eu abracei Samanta. – Calma! Ele vai ficar bem.

- Ai, Dona Malu, eu fiquei tão desesperada. Ele ficou roxo.

- Calma. Não precisa ficar assim. Vá para a casa do Michel, eu te aviso quando formos pra lá. Se é que o hospital o liberara hoje.

- Tem certeza? O seu Michel pode não gostar...

- Fica tranquila.

- Tá bom, me dê notícias!

Eu apertei sua mão, num gesto de carinho e depois ela foi embora. Entrei no hospital e procurei por Michel, mas ele não estava mais por ali. Fui até a recepção e pedi informações. A atendente disse que ele fora para a sala. Segui para a sala de espera.

Estava vazia. Havia uma televisão numa mesinha branca e um jogo de sofá preto. No fundo uma janela de vidro dava visão para o estacionamento. Sentei-me no sofá e folheei as revistas em cima da mesa de centro. Nada me atraia a atenção. Tirei o celular do bolso e mandei uma sms para Michel avisando onde eu me encontrava.

Cruzei as pernas e nem reparei quando comecei a mexer o pé, nervosa. Um hábito que eu tinha na adolescência e só aparecia nesses tipos de situações. Uma moça sentou no sofá a frente, usava uma boina preta e um vestido azul marinho que a fazia parecer ainda mais nova. Eu olhei seu rosto, ela olhou o meu também, como se me reconhecesse.

- Eu conheço você? – Perguntei, tentando me lembrar de onde sua fisionomia era conhecida.

- Claro que conhece. – E sorriu de forma que deixava seus olhos pequenos ainda mais gentis. - Tainara.

- Caramba, Tainara! – Nós levantamos ao mesmo tempo. – Meu Deus, garota! Quanto tempo!

- Ah, Malu!! – Nos abraçamos por um longo tempo. – Como o tempo fez bem a você. – Ela me olhou dos pés à cabeça e sorriu. – Sinto um pouco de inveja, não vou negar.

- Ah, para! Você está maravilhosa. – Tainara balançou a cabeça em um não. E seu rosto mudou a expressão. – Está aqui por quê? Esperando por alguém?

- Eu tenho câncer, Malu. – Ela deu um sorriso duro. E essa foi mais uma daquelas situações que eu não sabia como lidar. – Calma, não precisa fazer essa cara.

- Desculpa, eu... Hã, eu não imaginei.

O meu constrangimento não poderia ser maior. Meu Deus porque eu falo demais em hora errada?

- É. – Ela tirou a boina, mostrando a cabeça com seus poucos fios ruivos. – Eu tenho tanta coisa para falar... Não só pra você, mas para Bernard e Michel também. Espero que vocês estejam casados. – Ela riu. – Eu sempre imaginei que vocês se casariam...

- Hã, ele casou e teve filho. – Os olhos dela se encheram de alegria. – Não comigo.

- Ah, não brinca! Ele casou com a Elena?

- Exatamente.

- Vai entender... Mas você está aqui com ele?

- Sim.

- Então vocês estão juntos? – Ela franziu o cenho. – Estou confusa, sério.

- Você está com tempo? É uma história longa...

- Sim, minha mãe vai demorar para me buscar. Eu preciso te contar algumas coisas.

Quando nos sentamos novamente, Michel me mandou uma mensagem dizendo que não sabia quando sairia da sala. Eu o respondi rapidamente e guardei o celular no bolso.

- Está tudo bem?

- Mais ou menos. O filho dele teve falta de ar... Mas então... Deixa eu te contar.

E por cerca de 1 hora eu contei a Tainara sobre a formatura, minha vida na Alemanha, Thomas, Immanuel, meu encontro com Bernard quando voltei ao Brasil e minha vida ao lado de Michel. Ela ouviu a tudo sem esboçar reação.

- E agora que Thomas está aqui no Brasil eu voltei a me “afastar” de Michel...

- Você precisa falar a verdade para o Thomas. - Ela disse, categórica.

- É... Bernard me disse a mesma coisa. – Dei um longo suspiro. – Eu só estou sem coragem.

- E como o Bernard está? – Notei que na voz de Tainara havia uma saudade do que vivera com meu amigo. Eu dei um meio sorriso. – Aposto que casou.

- Só se for com o ego dele.

- Ah, não brinca.

- É verdade. Ele está solteiro.

A expressão dela voltou a mudar, agora para uma tristeza profunda. Ela respirou bem fundo e me olhou.

- Eu fui embora da vida de vocês daquele jeito pois descobri um câncer. Eu não sabia como lidar, Malu. – Sem saber como agir, eu simplesmente coloquei minha mão por cima da dela. – Fiquei mal, sabe? Eu culpei meus pais. Culpei a Deus. Culpei a minha mãe. Ela ainda me aconselhou a não ficar longe dos meus amigos, que não me faria bem me esconder do mundo... E ela estava certa. – Nem notei quando uma lágrima deslizou por minha bochecha. – Depois meu pai ficou doente, acho que por me ver doente e deprimida e faleceu logo em seguida. Foi tudo muito complicado. Eu não soube digerir... Você lembra como é ter 17 anos. É uma idade complicada.

- Me lembro bem demais... – Sorri, com tristeza. – Não dá para saber como teria sido caso você tivesse nos contado, mas da minha parte você pode ter certeza que continuo sua amiga. Não direi por Michel e Bernard, porque ambos são meio complicados...

- Você falaria com eles?

- Sim, claro. Deixa seu telefone que eu ligo e marcamos de nos reunir.

- Beleza! – Peguei meu celular novamente e dei para ela salvar seu número. – Eu quero muito mesmo que possamos nos reunir.

- Eu também...

O olhar de Tainara foi para a porta e logo ela ficou de pé. Era a mãe dela que tinha chegado.

- Malu, eu tenho que ir... – Eu me levantei. – Foi ótimo revê-la. Você está linda!

- Ah, Tai! – Nos abraçamos por um tempo. – Foi ótimo revê-la. Você é uma mulher incrível.

- Até breve!

- Até!

Observei ela sair junto com a mãe. A minha lembrança da mãe dela sempre fora a de uma mulher que vivera em prol da filha e do marido. Perdera o marido e em breve ficaria sem a filha. É nesses momentos que notamos que os nossos problemas nem sempre são tão difíceis como achamos. Tem sempre alguém vivendo algo pior, e ainda assim consegue sair da cama e sorrir. E sorrir bonito, como Tainara.

(...)


- Você está me dizendo que encontrou a Tainara. Aquela Tainara? – Michel perguntou, surpreso. Estava sentado na ponta da cama em que Miguel dormia tranquilo. O pior, enfim, passara. Balancei a cabeça, assentindo e segurei a mãozinha dele. – O mundo é realmente pequeno.

- Demais. – Eu olhei para Michel. Sua expressão era pensativa. – O que foi?

- Só me lembrei que a Tainara participou de uma época boa de nossas vidas.

- Sim. Era bom.

- E o que ela fazia aqui?

- Ela está doente. Câncer.

- Nossa. – Michel ficou sem reação. – Mas...

- Ela está bastante tranquila quanto a doença. Parece já ter aceitado o inevitável... Mas pediu para nos reunirmos.

- Isso é mesmo necessário? Sei lá, ela saiu das nossas vidas de forma tempestuosa.

- Eu sei, Michel. – Parei na frente dele e segurei sua mão, entrelaçando nossos dedos. Seus olhos encontraram os meus, mas não houve nenhum sentimento ruim, só a cumplicidade de duas pessoas que se conheciam bem demais. – Ela gostaria de falar com você.

Michel foi me puxando ao seu encontro aos poucos. Eu não resisti. Não falei nada que pudesse estragar aquilo que acontecia no silêncio do quarto do hospital.

- Você acha que o Bernard vai? – Perguntou.

- Acredito que sim.

As mãos dele pararam em minha cintura, mas continuamos ali, fingindo que nada acontecia.

- E você também vai.

- Sim...

- Então eu também vou.

- Michel, eu... – Ele colocou o dedo sob meu lábio, me silenciando. Seus olhos fixos aos meus.

- Obrigado por estar aqui.

Nasceu em mim uma expectativa do que poderia vir a seguir. Eu queria um beijo? Muito. Queria que ele me entendesse sem perguntar? Sim. Porém há uma longínqua linha entre o querer e o merecer.

Michel me afastou com bastante delicadeza e foi para o lado do filho, que acabara de acordar. Respirei fundo e tratei de me recompor do que quase acontecera. “Você só está lidando com as suas próprias escolhas, Maria Luíza.” – Uma vozinha dizia ao pé do meu ouvido.

Insistente, firme, cruel.

Tamiris Vitória
Enviado por Tamiris Vitória em 13/05/2016
Reeditado em 05/06/2022
Código do texto: T5633992
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