O seu fantasma - Parte 1


Três batidas na porta foram suficientes para que Alice, minha mãe, me recebesse. Ela olhou para Miguel, que dormia em meus braços, e depois para mim. Em seguida um abraço carinhoso me envolveu.

- Ah, como é bom ver você, filho. – Falou, com a voz extremamente embargada. – Eu estava cheia de saudades.

- Eu disse que vinha, Alice. – Nós entramos em sua casa. Era um lugar confortável e cheio de quadros, como ela sempre quis, mas eu não deixava. Não fui uma criança muito obediente.

Ela pegou minhas malas na porta e a bolsa de Miguel. Me sentei em seu sofá.

– Você encheu a casa de quadros.

- Sempre foi meu sonho, você sabe. – Ela sorriu. – E aí? Confesso que apesar de muito feliz pela sua vinda estou surpresa.

- É bobagem. – Dei de ombros. Tentando não recordar da minha última conversa com Maria Luíza. – Eu só preciso de um tempo longe.

- Da Malu?

- É.

- O que houve, Michel? – Minha mãe ficou ao meu lado no sofá e pegou Miguel do meu colo. – Ô, amorzinho da vovó...

Ela o ajeitou em seu colo, alisando seus cabelos. Depois me olhou novamente. Comecei a contar o que tinha me motivado a ficar uns dias longe da dona dos meus sentimentos. No final, não percebi que chorava até ver marcas de pingo na minha calça jeans.

- Ah, filho...

- Eu não sei mais se a conheço. Ela me esconde as coisas. Ela não é mais a mesma pessoa, Alice.

- E quem é, Michel? Você também não é o mesmo que era quando adolescente. Vocês mudaram. – Com a mão livre, ela acariciou meu rosto. – Ela o ama, filho. Se tem uma certeza nesse mundo é que Maria Luíza é completamente apaixonada por você.

- Ela nunca me disse isso.

Ela deu um risinho, balançando a cabeça daquela forma que só as mães maduras e profundamente conhecedoras de seus filhos fazem.

- Seu pai também nunca me disse. E ontem eu tive certeza de que nosso amor não morreu. – Eu franzi o cenho. – Eu não voltei com ele, calma... Mas ontem recebi sua visita.

- Uau...

Fazia um tempo que eu não parava para pensar em meu pai. Nas raras vezes que isso acontecia era uma estranha sensação de pensar em alguém que nunca fizera parte da minha vida. Existiu, mas não fez parte.

- É. – Alice segurou os dedos de Miguel e deu um sorriso. – Seu pai não está bem, Michel. Disse umas coisas sem o menor sentido.

- Como o que?

- Disse que havia algo de que ele se arrependia muito de ter feito, mas que não tinha coragem de dizer. E também me pediu desculpas por tudo o que me fez... Aliás, nos fez.

- Alice, eu preciso falar com ele.

- Eu acho que ele ainda não foi embora, amanhã te dou o telefone e vocês combinam de se encontrar.

- Certo.

Ela me olhou de forma reconfortante. Eu agradeci mentalmente por Alice me entender sem eu precisar falar muito.

- Ela é a mulher da sua vida, filho. Sempre foi. Não tenha dúvidas disso. - Vi minha mãe se levantar com Miguel no colo. – Vou colocar ele no meu quarto.

- Tá bom.

Sozinho, fui acordado de meus pensamentos pelo meu celular que tocava. Era o Bernard. Eu olhei o visor algumas vezes antes de ignorar a ligação. Seja lá o que ele tem para falar, pode esperar eu voltar para São Paulo.

O celular chamou 5 vezes, até que Bernard desistiu. Eu sabia que era uma infantilidade não atendê-lo, mas não conseguia me livrar do ciúme bobo de sua relação com Maria Luíza. E por mais que ela dissesse que não, havia uma profunda conexão entre eles. E aquilo de alguma forma me fazia ter cada vez mais certeza de que o grande segredo dela me envolvia.

Minha mãe dormiu com Miguel, o que me permitiu pensar melhor sobre Maria Luíza. O pensar, virou saudade. Do cheiro, do corpo, do olhar. Deitei no sofá, perdido nas lembranças que envolviam meu relacionamento com Malu.

Segurei o celular na mão por algum tempo, tentando resistir a minha vontade de ouvir a voz dela.

“Ela deve estar bem... Melhor do que eu, inclusive.”

Guardei o celular no bolso, e tentei inutilmente prender a minha atenção a um programa de TV. Quando, enfim dormi, sonhei com Maria Luíza. Sonhei que estávamos no baile de formatura da escola, eu a buscava na porta de entrada, onde Elena recepcionava os convidados. Vivíamos uma noite completamente diferente da realidade.

Pela manhã quando acordei encontrei minha mãe sentada no outro sofá, com Miguel no colo. Eu passei a mão no rosto, abalado pelo sonho.

- Oi, Alice.

- Oi, filho. Você falou o nome da Maria Luíza diversas vezes. – Ela sorriu. – Foi um bom sonho pelo jeito.

- Sim e não. – Me levantei, dei um beijo na cabeça de Miguel. – Sonhei com o dia do baile.

- É um desejo de fazer as coisas diferentes. – Eu a vi se levantar com Miguel e ir até a cozinha. – Vou pegar o telefone do seu pai.

- Ok.

Fui para o banheiro e tomei um longo banho. O encontro com meu pai, por mais banal que fosse, começava a me deixar nervoso. Quando sai do chuveiro, me sequei o mais rápido que pude e vesti uma roupa escolhida na mala.

- Eu vou descobrir de uma vez por todas o que é que Maria Luíza esconde.

Voltei para a cozinha e minha mãe dava o café da manhã para Miguel. Olhei para a mesa e tinha um pedaço de papel, próximo a ela.

- Está aí o telefone e o endereço dele.

- Eu estou um pouco nervoso.

- Você quer saber a verdade, não quer? – Eu balancei a cabeça, assentindo. – Parece que a hora finalmente chegou.

- Sim, você está certa. Eu te ligo quando for embora.

- Tudo bem, fique tranquilo.

Dei um beijo em Miguel, e outro em minha mãe e depois saí. Segui o endereço no papel através de um mapa no celular, e quando cheguei, meu pai me esperava na calçada de uma padaria. Estacionei o carro do outro lado da rua, frente a um bar fechado e quando desci, foi um choque o que vi.

Atravessei a rua, me sentindo desconfortável com esse reencontro, além, claro, de ter pena do meu pai. E pena era uma das piores coisas que o ser humano podia sentir pelo outro. Era um homem magro, com uma barba por fazer e um olhar vazio, completamente perdido. Usava roupas amassadas, tinha postura desleixada. Nem de longe lembrava o elegante homem que eu me recordava.

“Logo ele, um homem que brigou comigo várias vezes por eu não conseguir fazer um nó na gravata!”

- Oi pai.

- Você está um homem, Michel.

- É, estou. - Concordei, com pouca simpatia. - Precisamos conversar.

- Eu sei. – A voz era ansiosa. O que mais uma vez me assustou. – Vamos tomar um café, o que acha?

- Pode ser. – Dei de ombros. Ele entrou na padaria e eu o acompanhei. Era uma típica padaria de bairro do interior. Calma, silenciosa e com uma meia dúzia de clientes. Meu pai escolheu uma mesa mais reservada e sentou. – Como você está? – Por mais que eu não me interessasse por sua vida, fazer aquela pergunta era necessário.

- Acho que bem, e você? Sua mãe me mostrou fotos do seu filho. É um lindo garoto!

- É... – Aquilo poderia ser uma informal de pai e filho. Aquelas conversas que eu desejei a minha vida inteira ter com meu pai, mas nunca tive. E agora era tão tarde para isso. - Obrigado.

Ele pediu dois cafés e dois pedaços de bolo de milho para nós. Apesar do esforço dele em não demonstrar o quanto aquilo era estranho para os dois, não conseguia disfarçar meu incomodo.

- Não sei por onde começar... Fiz muito mal a sua mãe. – Ele me olhou por algum tempo, mas não conseguiu sustentar meu olhar. Era de vergonha o olhar do meu pai. – Eu traí a Alice.

- Disso eu sei. – O cortei, sem me importar em ser ríspido. – Me lembro bem de quando vocês brigaram. Você disse que Alice era louca.

- Sim, eu disse. – A voz dele era tensa. – Eu não vou te enrolar, Michel.

- É o que espero.

- Eu traí sua mãe com a sua namorada de adolescência, a Elena.

Eu olhei para ele com um sorriso, incrédulo, esperando que meu pai dissesse que aquilo era uma piada de péssimo gosto. E ele não disse. Não houve uma palavra que amenizasse aquela confissão.

- Você só pode estar brincando!

- Não, Michel. Eu pos...

- Você está me dizendo que traiu a minha mãe com a Elena? A mãe do meu filho?

- Sim.

- E quando isso começou?

- Vocês tinham 16 anos.

Naquele momento já tinha me esquecido onde estávamos. Levantei, completamente furioso e o puxei pela camisa. Meu pai se amedrontou na mesma hora. Não queria mais saber se ele era o responsável por eu estar no mundo e o outro lado com certeza percebera que aquele garoto que se curvava as suas ordens absurdas não existia mais.

- Que tipo de doente você é?

- Foi um erro filho, eu sinto muito! Ela é uma garota completamente psicopata e...

Eu não esperei ele terminar a frase. Acho que não era necessário. Soltei a minha mão contra seu rosto com tanta força que vi o sangue jorrar de seus lábios. Meu corpo inteiro tremia.

- Você é um lixo! – As pessoas se aproximaram de nossa mesa e tentaram socorrer meu pai, agora no chão. Ele se recusou, ficando de pé sozinho. Seu lábio sangrava muito. E o meu desejo era dar mais um soco naquela figura repugnante que eu tinha como pai.

- Michel... Eu mereço isso, mas você precisa me ouvir.

- O que mais você tem para me dizer além dessa imundice toda já confessada?

- A Elena me ligou semana passada dizendo que precisava da minha ajuda. Eu perguntei para o que era, e ela disse que era algo relacionamento com aquela garota que você namorava... A loirinha!

Após ouvir aquilo eu travei por alguns minutos. Me aproximei de meu pai, que agora recuava, com medo.

- Maria Luíza?

- Essa! Elena tem uma obsessão por essa garota! Eu percebi isso desde o dia que...

De repente, ele se calou.

- Desde que você matou a tia dela, não é? – Completei, enojado. O meu pai era o responsável pela morte da tia da mulher que eu amo. Eu vivia numa teia de aranha sangrenta. – VOCÊ MATOU A ÚNICA PARENTE DELA POR CAUSA DE SEXO COM UMA ADOLESCENTE!

- Nada que eu vá dizer vai fazer me odiar menos ou me perdoar. Você precisa voltar e salvar a garota. Elena não brinca em serviço.

- Você vai pagar por tudo o que você fez, Robert. Eu juro pelo nome do meu filho que te farei pagar!

Eu saí da padaria desesperado, entrei no carro e dirigi em alta velocidade. No caminho, liguei para Alice avisando o ocorrido, e pedi que ela cuidasse de Miguel.

“Qualquer coisa me liga, e por favor, filho, cuidado.”

- Eu vou me cuidar.

Finalizei a ligação com ela, trêmulo. Dividindo minha visão entre as ruas e o celular, vi uma mensagem de Bernard.

“PARA QUE INFERNO VOCÊ TEM ESSE CELULAR SE DEIXA ELE DESLIGADO? ME LIGA, É URGENTE E SÉRIO!”

Retornei para ele. E fui atendido no primeiro toque.

“PUTA MERDA MICHEL SÓ ME ESCUTA! A SEGURADORA DO MEU CARRO LIGOU, DISSERAM QUE ENCONTRARAM O VEíCULO NUM MATAGAL NA ZONA OESTE. TINHA MUITO SANGUE NOS BANCOS E AS COISAS DA MARIA LUÍZA LÁ, MENOS O CELULAR.”

- A Elena está com ela. – Acrescentei, com uma frieza repentina na voz. Eu precisava daquilo para não perder o controle dos meus atos. – Eu estou voltando para São Paulo.

“Eu tento ligar para o celular, mas ninguém atende, nem a Samanta está me atendendo!”

Eu deixei o celular cair no banco do carro. Não conseguia mais falar, mesmo sabendo que Bernard estava tão preocupado quanto eu. Dirigi o mais rápido que pude, claro, com a ajuda das ruas vazias da cidade, e sem me importar com os sinais fechados que dificultavam a minha ida até Maria Luíza. Agora tudo fazia sentido. Todo aquele mistério. Ela sabia que eu teria dificuldade em viver com isso, que NÓS teríamos dificuldade. Ela havia perdido a tia por causa do meu pai e da mãe do meu filho. Todas as suas ações e reações ao chegar no Brasil. Maria Luíza só queria se proteger. - Respirei fundo, e tentei controlar a volta da tremedeira apertando o volante com mais força. Não posso fraquejar.

- Eu vou salvar você, Malu. Eu juro por Deus que vou. – Repeti diversas vezes, memorizando o sorriso dela, o rosto, lembrando de alguns momentos. Não demorou muito e eu já chorava. – Em nome da nossa vida juntos, do que não fomos, mas poderemos ser. Em nome do Miguel e de tudo o que já vivemos. Aquela discussão não foi o nosso último dia juntos.

Naquela altura já não sabia se o que eu falava era uma frase de conformismo ou um pedido à Deus.

Tamiris Vitória
Enviado por Tamiris Vitória em 24/08/2016
Reeditado em 20/08/2023
Código do texto: T5738085
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