Aos 20



Lana sentou-se na poltrona do avião lentamente. Lágrimas começavam a rolar pelo rosto e ela não se preocupou em limpar. Queria chorar. Precisava chorar. Chorou por sua juventude, quando deixou seus sentimentos de lado pelo bem da irmã gêmea. Chorou ao lembrar da primeira vez que vira Sérgio Fleming andando pelos corredores da faculdade. Era só um rapaz, curioso e extremamente gentil, dono de um coração de ouro. A amizade nasceu fácil, da mesma forma que o amor também se fertilizou. Lana amou Sérgio a vida inteira. Amou de forma altruísta, pois preferiu que Letícia fosse feliz ao lado dele. Não sentia arrependimento, mas também não conseguia evitar a tristeza. A dor tinha que ser sentida.

Agora tudo chegara ao fim.

Lana estava no avião rumo a Brasília para o enterro do ex-cunhado e grande amor da sua vida.



 

 

1 ano antes

 

 


- Eu confio tanto em você que assinei aquela montanha de papéis sem entender nada!

Sérgio e Lana saíram do escritório de advocacia rumo ao taxi que os esperava. Ele olhou na direção da ex-cunhada e sorriu.

- Para onde vamos? - Quis saber o taxista.

- Para a Café & Amor, nº 99, centro. – Sérgio respondeu, tranquilamente. – Eu explico tudo lá, Lana.

- Tudo bem.

A Café & Amor era uma cafeteria tradicional do centro de Brasília. Conhecida por sua decoração francesa e de preço acessível a todos os públicos era a queridinha desde as famílias aos jovens mais modernos. Sérgio e Lana sentaram numa mesa do lado de fora. A atendente se aproximou, anotou os pedidos deles e seguiu para o balcão.

- Lindo lugar! – Elogiou Lana, observando com certo encantamento as plantas que compunham a decoração. – Brasília não é só palco político, afinal.

- Não mesmo.

A atendente trouxe os pedidos, deixou a comanda na mesa e saiu. Sérgio bebericou seu café, calmamente. Lana o imitou, com seu chá de hortelã. Era fresco e agradável o clima na cidade.

- Você sabe que eu confiaria minha vida a você, não é? – Sérgio começou a falar. Lana concordou, com um meio sorriso. – Sabe que é e sempre será a minha parceira e melhor amiga.

Ela sentiu o mesmo arrepio que sentia toda vez que ouvia isso do homem. Já não era mais dois jovens, mas o sentimento que Lana nutria a fazia se sentir uma menina de 19 anos.

- Sei sim. Bom, se você for me convidar para roubar um banco saiba que não temos mais idade para fortes emoções. – Ele riu da brincadeira. – O que está acontecendo?

Sérgio colocou a xícara a mesa e fixou as íris azuladas em Lana.

- Há uns meses ando sentindo um cansaço muito esquisito. E não só cansaço, mas também uma dor no peito que é estranha. Eu gostaria de dizer que isso não me lembra a nada, mas meu pai faleceu com essas mesmas causas.

- Sérgi...

- Calma. Só me escute, está bem?

Ela assentiu, meio trêmula pela tensão da conversa.

- Aqueles papéis que você assinou te tornaram guardiã legal da Marine, no caso da minha morte. Ela só pode tomar posse da herança que deixei após os 21 anos de idade. Falta muito pouco, você sabe. Eu confio na minha filha. Eu confio demais nela, só que... - Ele passou a mão no rosto, numa agonia e tristeza. – A vida da Marine é cheia de perdas. Eu não sei como ela reagirá, mas não quero de forma alguma que minha filha caia numa depressão, como foi com a perda do namorado. Ela tem um caminho lindo para trilhar, Lana. Eu sei disso. Eu acredito tanto nisso que já passei noites chorando só de imaginar a Marine sozinha nesse mundo.

Sérgio e Lana choravam juntos.

- Ela não vai ficar sozinha, eu prometo.

- Não deixe que ela se perca do caminho dela, Lana. Por favor. A Marine precisa de uma figura materna ao lado, mesmo que por um curto tempo. Ela precisa sentir isso. Sua irmã tirou isso dela muito cedo.

- Eu sei, querido. Eu sei. – Eles seguravam a mão um do outro. – A minha irmã se perdeu na própria dor. O que ela fez com vocês não foi justo. Principalmente com a Marine.

- Ela só tinha 5 anos! – Agora era Sérgio que se perdia em sua própria dor. Lana sabia que ele precisava falar, então não o interrompeu. – Eu me lembro da Marine chegando em casa ensanguentada, lembro de poder respirar, lembro que a dor que me dilacerava o peito diminuíra. Eu daria tudo para que Mariana estivesse viva, você sabe, não sabe?

- Sei sim.

- Mas será que era errado agradecer por ao menos uma filha estar viva? Será que era errado abraçar Marine e falar “minha filha, graças a Deus você está aqui”?

- Não, não era errado.

Lana fechou os olhos por algum tempo, tentando não assimilar a história de suas sobrinhas com a que a sua irmã vivera quando jovem.

- Eu só queria uma família, Lana! Eu só queria ser feliz. Uma única e terrível noite mudou toda a minha vida.

- Você não tem culpa de nada disso, ok? – Ela juntou as mãos dos dois. Sérgio balançou a cabeça, negando. De repente sentia vontade de falar tudo o que guardara esses anos todos. E guardara porque precisava ser forte por Marine. Precisava ser forte porque Marine já sofria muito. – Eu vou cuidar dela por você, pode confiar em mim.

- Eu confio. – Ele engoliu o nó que se formara na garganta e sorriu. – A grande verdade, Lana, é que eu escolhi a gêmea errada. Eu sinto muito por isso. Eu sinto muito por nunc...

Foi a vez dela interrompe-lo.

- Você não tem que se desculpar por isso. Você e a Letícia eram o certo. Ela precisava de você mais do que eu.

- E ela nunca me amou como você.

Lana prendeu o longo cabelo escuro, como o da irmã gêmea. Sérgio lembrou com uma expressão de saudade da época de faculdade em que a ex-cunhada era loira.

- Sim.

- Sei que é bobagem falarmos disso após tantos anos, mas muitas vezes me peguei pensando que se a vida tivesse sido diferente Marine e Renan seriam irmãos, não primos.

- Ou talvez não. – Ela deu de ombros, mas a voz não tinha resquício algum de mágoa. – Não me arrependo de minhas escolhas e nem quero que você se arrependa. Amar você foi uma das coisas mais bonitas que já aconteceu na minha vida.

- Você é uma grande mulher, Lana.

- Obrigada.


Lana dormiu em Brasília naquele dia, mas não encontrou Marine, que dormiu na casa de uma colega da faculdade. No dia seguinte quando foi embora, Sérgio a beijou ternamente nos lábios. Ela sabia que aquele beijo era uma despedida. E foi.

Sérgio morreu 3 meses depois do encontro com ela. A morte, de causa natural aconteceu numa tarde em que ele e Marine assistiam TV juntos. Ele levantou depois de algum tempo dizendo que precisava se deitar e foi para o quarto. Nunca mais acordou.

Marine foi encontrada desmaiada por sua vizinha ao lado do corpo de Sérgio. Mais uma vez fora parar no hospital, vítima de um choque traumático em decorrência de mais uma perda. Quatro perdas. O médico, ao reconhece-la se emocionou com a história e pediu para as enfermeiras entrarem em contato com parentes dela em São Paulo.

Ele deixou a jovem sob os cuidados de outra enfermeira e saiu da sala se perguntando se era possível uma menina de tão pouca idade aguentar toda essa carga emocional sem sucumbir. Torcia com todo o coração para que sim.

(...)

Marine não participou do enterro do pai. A jovem continuava internada devido à crise emocional que começava a se complicar. O médico recomendara a Lana, sua única responsável que evitasse qualquer evento desse tipo. Estiveram presentes no enterro colegas de trabalho de Sérgio, alguns poucos parentes mais próximos e vizinhos. Fora uma emocionante e simples despedida, como ele sempre quisera. Uma semana depois Marine se recuperou das complicações e acordou silenciosa. Desejava que sua memória falhasse para não ter que lembrar da perda do pai.

Ela viu quando a tia entrou no quarto com um pesar no olhar e não conseguiu segurar as lágrimas. Num mundo perfeito, o mundo em que Marine criara quando criança, Lana seria sua mãe e a protegeria de todos esses males que a atingiam desde muito pequena. Ela não teria que conviver com o peso de ter sido a única sobrevivente do sequestro. O pai não sofreria. Ela teria conforto para lidar com a perda de Finn. E nunca, nunca mesmo seria refém de suas emoções. Lana jamais deixaria que Marine sofresse.

A realidade era uma só: Lana não era sua mãe. A realidade, sempre tão cruel para Marine era que ela não tinha mais o pai para ama-la incondicionalmente, não tinha Finn para lhe dizer que tudo ficaria bem e no final, sempre ficava. Não tinha e nunca teve Letícia como mãe. E por fim, jamais teria Mariana para dividir todas as suas dores, vitórias e angustias. Vivera ao lado da irmã por pouco tempo, mas sempre lembrava dela com uma culpa, uma solidão que não tinha fim. Carregava uma culpa maior do que sua existência podia aguentar.

- Oi, minha querida. – A voz da tia era doce e carinhosa. Lana sentou ao lado dela e segurou-lhe a mão. – Fico feliz que tenha acordado.

- Não é mentira, não é? – Perguntou, com tanta força na voz que assustara a mulher mais velha. – Eu não estou num pesadelo. Ele realmente se fora.

- Marine...

- Tia... - Marine agora apertava a mão da tia e tinha o rosto inchado e vermelho de tanto que chorava. – Me diz uma coisa... Quando a gente perde a irmã gêmea, a mãe se mata por não aguentar conviver com você, o namorado morre num acidente e o pai dorme e simplesmente morre, te sobra exatamente o quê?

Lana não sabia responder. A dor da sobrinha era tão forte e pesada que ela se pegou chorando no mesmo instante.


- Eu não tenho nada, tia. Eu não tenho ninguém. O meu pai me deixou, a minha mãe nunca me amou.

Ela aninhou a sobrinha nos braços quando a viu se descontrolar.

- Marine, você precisa ficar calma, eu sei que...

- Eu só queria ter morrido no lugar da Mariana, tia! Ou então morrido junto! Assim eu não teria que lidar com o desprezo da minha mãe. Eu não teria que ver a minha mãe me culpar por ter sobrevivido!

Lana surpreendeu-se em como Marine, sempre tão calada e retraída, falava e falava sem cansar. Colocou tudo para fora. Toda a sua dor, toda a sua mágoa com a mãe. Todos os seus 19, quase 20 anos de vida marcados por perdas, culpas pelo desprezo materno e pelo incondicional amor paterno. Ela era só uma jovem.

- O que a sua mãe fez contigo foi imperdoável. Eu nunca vou entender como Letícia conseguiu se virar contra você daquele jeito... – Marine tremia e chorava, sem conseguir se conter. – Escute, querida. Você não estará sozinha. Você tem a mim, ok? Eu vou cuidar de você. Não deixarei mais que nada disso te aconteça.

- Tia... Eu não quero que a senhora conviva comigo. Eu não quero perde-la.

- Você não vai, eu prometo.

Elas se abraçaram por algum tempo. Era um silêncio doloroso.

- Olha... Eu quero te contar uma história. – Marine olhou para a tia, que delicadamente limpou as lágrimas de sua bochecha. – Eu só quero que você ouça, não quero que ache que ao contar isso estou influenciando o seu pensamento sobre a Letícia. Cada um sabe o que passa, Marine. Cada um sabe as alegrias e as dores que carrega.

- Tudo bem.

A atenção de Marine era total.

- Essa história é algo que nem o seu pai sabia. Somente sua mãe e eu. Desde o início a vida da sua mãe foi marcada por coisas que de alguma forma sempre a perturbaram. Quando nascemos, sua mãe veio ao mundo dois minutos depois de mim... E morta. Pode parecer bobagem para quem não acredita em karma, espiritismo ou mau pressagio, mas uma vez quando sua mãe teve uma crise nervosa aos 13 anos, o seu avô disse que crianças que nascem mortas tem um mau presságio na vida. E era verdade. A sua mãe não era de muitas amizades, poucas pessoas tinham acesso a vida dela além de mim. Letícia era extremamente reservada, falava pouco, observava muito e não confiava nas pessoas. – Marine, surpresa, viu como era parecida com a mãe. – Na única vez em que ela se permitiu fazer isso nós tínhamos 12 anos. E esse talvez tenha sido o primeiro maior erro da sua mãe. Naquele dia nós saímos da escola e ela insistiu que queria tomar sorvete com o pessoal da sala dela. Eu disse, repeti e insisti para que fossemos embora para casa, sabe? – As lembranças, apesar de tanto tempo, continuavam vivas. Ela sentia a mão tremer e o coração disparar. – Os nossos pais não gostavam de atrasos, eram rigorosos e...

Ela fungou alto, e o dedo indicador da mão esquerda fora para o olho, limpando a primeira lágrima.

- Tia.

- Eu falei tantas vezes para ela “vamos embora, Letícia!”, mas ela teimou tanto que acabei cobrindo o atraso dela. Só que a sua mãe só voltou no dia seguinte, de manhã. Eu não tinha um bom pressentimento sobre aquilo, entende? E infelizmente estava certa.

Não adiantou muito Lana segurar a primeira de muitas lágrimas que vieram logo depois.

- Tia... O que houve com a minha mãe?

- Sua mãe foi obrigada a entrar no carro de um vizinho nosso na hora em que ela vinha da sorveteria...

- Meu Deus! – A mão de Marine foi a boca.

- E ele estuprou a sua mãe.

A revelação pegou Marine de surpresa. Ela entrou em silêncio, sem saber o que falar diante daquilo que ouvira. Lana chorava, lembrando de como a inocência da irmã fora cruelmente tirada. E nada pudera fazer por Letícia.

- Ela chegou em casa e nossos pais deram uma surra nela, mas sua mãe não derramou uma lágrima, estava horrorizada demais para ter reação. Só a noite quando eu entrei no quarto que ela me contou tudo e chorou por uma madrugada inteira.

- E por que você não o denunciou?

- Letícia me fez prometer que nunca contaria isso para ninguém. Uma vez eu voltava da escola sozinha e esse vizinho me ameaçou. Nós tínhamos 12 anos, Marine... Tivemos medo. Sua mãe se fechou num universo em que eu mal podia entrar. Anos depois quem conseguiu mudar um pouco disso foi seu pai, mas alguns traumas nunca nos deixam.

Marine não fez julgamento da atitude da tia e da mãe. A história a pegara desprevenida. Saber que Letícia sofrera esse tipo de abuso a fez sentir algo diferente em relação a ela. Não que sua mágoa por ter sido rejeitada tão pequena acabara, mas a revelação da tia a fez ter empatia pela mãe. E aquilo mexera profundamente com a jovem.

- Não dá para mudar o passado, Marine. Nem o meu, nem o da sua mãe, mas nós podemos fazer com que a vida seja diferente para você a partir de agora. Eu quero que você vá morar comigo em São Paulo por algum tempo, até que você se sinta pronta para ter seu próprio lar.

Marine aceitou. No fundo imaginara que o pai colocaria a tia como sua guardiã e não via mal algum, mesmo sabendo que teria que conviver com Renan.

- Tudo bem, tia. Antes de irmos eu quero ir ao cemitério me despedir do meu pai.

- É claro, querida.

Cinco dias depois Marine e Lana estavam partindo para São Paulo.

 

 

Tamiris Vitória
Enviado por Tamiris Vitória em 01/05/2018
Reeditado em 04/06/2023
Código do texto: T6324448
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