Os Sonhos de Leila
Mãe — Nem eu nem o pai a conseguimos acordar.
Esmeralda — A senhora dá licença?
(A Mãe afasta-se para que Esmeralda chegue junto de Leila)
Esmeralda — Leila. (Tempo) Leila. (Paulo aproxima-se até ficar junto de Leila) Leila… acorda. Sou eu… a Esmeralda.
Paulo — (A gritar) Leila! Acorda!
Esmeralda — Mas tu és parvo o quê?
Paulo — A minha mãe chama-me é assim.
Mãe — Meu marido, o Flávio, já foi buscar o médico.
Paulo — Aposto que o médico não consegue gritar mais alto do que eu. (Grita novamente) Leila!!
Mãe — Ó filho… por favor, pára com isso. Ela pode ficar ainda pior.
Esmeralda — A senhora já tentou metê-la de pé?
Mãe — Ai… eu nem lhe quero mexer com medo que ela fique pior.
Paulo — Porque é que a gente não lhe despeja um balde d'água pra cima?
Mãe — Ó filhos vocês vaiam-se embora que estão mas é piorando as coisas.
(Eles vão a sair e cruzam-se à porta, fora de cena, com a vizinha Cesaltina que entra)
Cesaltina — Ai minha querida vizinha… soube agora, pelo teu marido… A tua filha tá doente… o que é que se passa?
Mãe — Ela não quer acordar.
Cesaltina — Já experimentaste picá-la com a ponta da agulha.
Mãe — É melhor não. Deixa ver primeiro o que é que médico vai dizer.
Cesaltina — Está bem. De qualquer maneira o médico deve trazer umas picas para lhe dar.
Mãe — Ai… ó vizinha… eu estou tão consumida.
Cesaltina — Anda cá pra fora um pouco pra te acalmar. Vamo-nos sentar na soleta da porta.
(O médico chega, dirige-se à cama, ausculta a menina, em silêncio, os pais estão um pouco arredados da cena. No fim de a observar dirige-se aos pais e encaminha-os para fora de cena. Os pais voltam ao fim de algum tempo e dirigem-se à cama)
Mãe — Ai nosso senhor querido que a nossa filha não acorda.
Pai — Ó mulher, não te consumas… vais ver que amanhã ela já está boa.
Mãe — Ai… ó homem… tu não conseguiste mesmo falar com outro doutor?
Pai — Eh mulher! Que tas dizendo praí? Achas quê tive no café bebendo em vez de procurar um doutor prá minha filha?
Mãe — Ai… que desgraça a nossa. E o médico que veio cá a casa não sabe dizer o que é que ela tem.
Pai — Eh mulher… anda daí que já são horas d'ir dormir.
Mãe — E quem é que vai conseguir dormir esta noite?
Pai — Plo menos a nossa filha vai.
(Passagem do tempo indicada pela luz e pelo tiquetaque do relógio. Domingo de manhã. A Mãe entra pronta para ir à missa.)
Mãe — Filha… acorda. Filha. Leila. A mãe está aqui, filha. Fala comigo. Ai filha… já dormes há quase dois dias. O que se passa contigo.
Cesaltina — (Entra também pronta para ir à missa) Ó vizinha… então que dizes da tua filha?
Mãe — Ai, ó vizinha… Ela está na mesma. Ai, o que é que hei-de fazer à minha vida.
Cesaltina — O que disse o médico?
Mãe — Ai… ele não veio cá a casa.
Cesaltina — Ai que desgraça. Ó vizinha, vamos mas é prá missa pedir a Deus que cure a tua filha.
Mãe — Vamos então vizinha que eu aqui não posso fazer mais nada.
(Saem as duas e ao fim de algum tempo entra o pai. Dirige-se à filha e fica um bocado a olhar para ela. Pega-lhe na mão e senta-se na cama ao lado dela)
Pai — Filha… é o teu pai… acorda, por favor… anda lá… que o teu pai está muito preocupado. Filha… Estás a ouvir-me?
(Fica algum tempo com a filha. Vai depois buscar o gira-discos para pôr disco que estiveram a ouvir no dia de anos. A Mãe e a vizinha voltam da missa ao fim de algum tempo. Encontram o homem junto da filha, ele disfarça, vai-se embora e ficam as duas junto de Leila como que num velório. O pai entra ao fim de algum tempo).
Pai — Tá lá fora a professora Cidália a perguntar porqué que a Leila não foi à catequese.
Mãe — Ela que entre pra ver o estado em que a nossa filha está.
(Entra a Cidália e dirige-se à cama)
Cidália — A senhora dá licença que eu entre.
Mãe — Faça favor, senhora professora.
Cidália — Eu passei por cá para saber porque é que a Leila não foi à catequese.
Mãe — Ai, senhora professora… eu não sei o que é que se passa, mas a minha filha não acorda desde ontem.
Cidália — Como é que é possível?
Cesaltina — A gente não sabe. O médico que veio cá a casa também não soube dizer e não veio cá mais nenhum.
Mãe — A senhora professora acha que a Leila pode estar a fazer isto de propósito?
Cidália — Não. Conhecendo a Leila como eu a conheço, acho que ela não seria capaz de fazer uma brincadeira dessas. Ela comeu alguma coisa que lhe fez mal?
Mãe — Nem sei, senhora professora. O que é que a senhora acha?
Cidália — Eu sou professora, não sou médica. Mas conheço bem um outro médico e posso ir falar com ele para vir cá a casa.
Mãe — Ai abençoada. Ai, senhora professora… a senhora é um anjo que caiu do céu.
(As duas acompanham a professora à porta e saem de cena. Nova passagem do tempo dada pela luz e pelo tiquetaque do relógio. Começa uma projecção em fundo com imagens autênticas, fotos e música dos anos 80. Consegue-se ver o evoluir da moda por meio das figuras que aparecem. As fotografias mostram as actividades de Rabo de Peixe. Leila dorme por dez anos. À medida que os anos passam, as imagens ficam mais rápidas, o tiquetaque aumenta. Aparece 1988, 1989 e 1990 na projecção. O tiquetaque torna-se mais lento e pára. Leila desperta na cama. Levanta-se e chama pela Mãe)
Leila — Mãe. Ó mãe!
(A mãe entra e vê Leila de pé. Corre a ela para a abraçar com gritos de alegria. Chama o marido que chega de imediato e abraça também a filha. A vizinha entra de rompante a perguntar o porquê de tantos gritos, com uma menina pela mão. Por fim chegam os amigos de Leila e ficam um pouco à distância. A mãe e a vizinha)
Leila — (Ao fim de algum tempo, depois de se libertar dos abraços) Mas… o que é que se passa?
Mãe — Filha! Acordaste! Acordaste! Ai, minha filha querida (abraça-a novamente).
Leila — Eu dormi muito?
(Riem-se todos um pouco)
Mãe — Ó filha… tu dormiste dez anos?
Leila — Dormi dez anos?
Cesaltina — Tu não te lembras? Deitaste-te no dia dos teus anos em 1980 e só acordaste agora!
Leila — E que dia é hoje? Não é sábado?
Mãe — Estamos em 1990, filha. Ai… se tu soubesses as agonias que tive estes anos todos. (Abraça-a novamente) Veio tanta gente para te ver. Vieram até doutores de fora e ninguém conseguia dar com a tua doença. Nós fizemos tudo!
Cesaltina — Ai. Eu rezei tanto!
Leila — Vocês estão a brincar comigo. Não estão?
Mãe — Ó filha! Achas que íamos brincar com uma coisa dessa.
Leila — Eu devo estar a sonhar. (Vê a menina pela mão da vizinha) Quem é essa menina?
Cesaltina — É a minha filha. Olha… vê bem. Ela já tem cinco anos.
Mãe — Olha para os teus amigos. Vê como eles cresceram.
Leila — (Olha para a Esmeralda e o Paulo) A Esmeralda está diferente mas o Paulo continua na mesma.
Paulo — Mas ainda posso crescer!
Esmeralda — (Para Paulo) Podes crescer como? Estás com 18 anos! Tu lá cresces agora…
Leila — Dezoito anos?! Não pode ser.
Paulo — Ainda posso crescer sim senhor! Tenho um primo que só cresceu a partir dos 18 anos!
Mãe — Meus queridos. Então vocês não estão contentes por ver a Leila com saúde? Deixem essas conversas agora. (Eles aproximam-se de Leila e abraçam-na)
Esmeralda — Mas… tu tens ainda dez anos?
Leila — Eu não sei. Penso que sim. Não sinto nada. Tu sentes que tens… vinte anos?
Esmeralda — Não sei. Acho que sim. Quando penso em tudo o que vivi… acho que sim. Acho que sinto que tenho vinte anos.
Leila — Eu não consigo acreditar nisto. Como é que é possível dormir por dez anos?
Pai — Isso, cá para mim foi bruxaria. Eu sempre disse à tua mãe mas ela nunca quis saber.
Mãe — Ai! Cala-te lá com isso homem. Ó filha… não queres ir lá fora apanhar um pouco de ar? A gente, durante estes anos todos, bem que te abria a janela sempre que estava bom tempo, mas deve-te fazer bem dar um passeio.
Cesaltina — Isso mesmo. Vai dar uma voltinha por aí. Vais ver como a freguesia mudou nestes dez anos.
Paulo — A gente vai contigo.
Leila — Esperem então. Eu vou só calçar-me e vestir um casaco.
Esmeralda — Vai ser uma surpresa para toda a gente!
(Leila vai-se calçar e vestir um casaco)
Mãe — Eh homem! Temos que fazer uma festa!
Pai — Uma festa pra quê?
Mãe — Então a nossa filha acorda ao fim de dez anos e não lhe havíamos de fazer uma festa?
Pai — Mais essa! Eu acordo todos os dias e tu não me fazes festa nenhuma.
Cesaltina — Não seja assim, homem! Não é todos os dias que uma filha volta pra casa ao fim de dez anos.
Pai — Até parece que ela esteve prá América estes anos todos! Ela não saiu de casa.
Mãe — Ai homem! Mexe contigo! Anda lá arranjar as coisas enquanto a menina vai dar um passeio.
Leila — Já estou pronta. (Esmeralda pega-a pela mão e encaminha-a para fora. Saem pela direita e voltam a entrar, descendo a escada ou a aparecendo na sala , como se estivessem na rua.)
Esmeralda — Ainda bem que acordaste neste dia. Temos festa!
Paulo — Nem de propósito. Até parece que a freguesia estava à tua espera.
Esmeralda — Não tarda nada passa aí a filarmónica. (ouve-se a filarmónica a tocar fora da sala) Ouve! Ela aí vem. (As portas do fundo abrem-se e entram alguns elementos da filarmónica, desfilando pelo corredor principal, dividindo-se para os corredores esquerdos e direitos para voltar a sair)
Leila — Mas… mas a filarmónica é a mesma!
Paulo — Claro que é a mesma. Mas está diferente. Não está?
Leila — Eu não acho. Se é verdade que eu dormi dez anos, parece que não mudou muita coisa.
Leila — Vais ver o rancho da despensa.
Paulo — Pois é!
(Entra o rancho da despensa, como a filarmónica anteriormente. No fim deles sairem)
Leila — O que é que este rancho tem de diferente? Ainda o ano passado dançaram assim.
Paulo — O ano passado para ti. Para nós foi… foi há onze anos.
Leila — Mas continuam a dançar da mesma maneira.
Esmeralda — É claro. É a tradição. O que é tradicional não pode mudar de um ano para o outro. Nem em dez anos muda.
Leila — Então continua tudo na mesma. As casas são iguais.
Paulo — Há umas casas novas…
Leila — Mas em dez anos, porque é que não há mais casas?
Paulo — Não sei. Não há dinheiro. Leva tempo a construir casas.
Esmeralda — Olhem. Vem aí o rancho.
Leila — Outra vez?
Parei por aqui mas tenho uma ideia do final.
Se tiver alguma contribuição para dar... por favor contacte-me