A Arca de Zândrus Vol 1 - Cap. 07

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Capítulo 7

A PASSAGEM PELA MURALHA

– O que houve? Onde estamos? – perguntou Cogles olhando ao redor.

– Estamos próximos à Muralha de Fesgra. – respondeu-lhe Síva, após analisar calmamente o ambiente, vendo uma cadeia de montanhas ao leste.

Roguinil olhava à sua volta. Valmiro apoiava o pai em seu colo. Kalena e Meliel pareciam estar bem, assim como Tóro.

– O que aconteceu? Onde está Gorak? – indagou o príncipe.

– Volano nos teletransportou para cá. É uma de suas especializações. – explicou Meliel. – Mas isso vai de encontro a algumas leis do cosmos... Pode ser mortal para ele! Trazer todos nós a essa distância tirou-lhe muita energia. – acrescentou. – Ele já estava um pouco fraco porque tinha usado a mesma magia para livrar a si e a Tóro daquele pedregulho. Repetir o feito em um espaço de tempo tão curto e ainda mais com toda essa quantidade de pessoas... Isso pode custar-lhe a própria vida!

– Perdi o chicote. Ficou amarrado nas patas de Gorak... – lamentou Cogles.

– Bem, parece que foi só isso que não veio conosco... as outras Armas e a Arca estão aqui. – observou Kalena.

– O grimoire! Está com você, Valmiro? – perguntou o mago após refletir um pouco, como se estivesse tentando recapitular todos os objetos que podiam não ter sido teletransportados.

– Está sim... – respondeu o rapaz, com um ar de desolado.

– Bem, parece que, por enquanto, não nos resta outra opção a não ser descansarmos. Amanhã, Volano estará melhor, e aí poderemos continuar a nossa jornada. – sugeriu Meliel.

Tóro havia dado uma volta pelo local e retornou com um punhado de gravetos.

– Faça aquele feitiço de fogo. – pediu ao mago, o qual rapidamente lançou uma pequena chama da ponta de um dos seus dedos, acendendo uma fogueira.

Kalena aproximou-se de Valmiro.

– Você não parece bem...

O bruxo suspirava, como se tentasse segurar lágrimas. Seus olhos estavam levemente avermelhados.

– Mais uma vez eu falhei. Mais uma vez meu pai confiou em mim e eu não consegui corresponder às suas expectativas. – desabafava, soluçando, não mais segurando as lágrimas.

– Do quê está falando?

– Ele não podia fazer a magia para aprisionar Gorak porque estava fraco. Ensinou-me como fazer, mas eu não consegui! Mais uma vez coloquei todos nós em perigo! Aí ele concentrou o pouco de energia que ainda tinha para nos teletransportar até aqui e nos salvar. Isso pode matá-lo! E se ele não tivesse conseguido?

– Temos as nossas Armas. As poderosas Armas de Zilon...

– Não é o bastante quando se trata de uma criatura das trevas! Você mesma viu que só com as Armas não há como enfrentar Gorak... Ele é muito poderoso!

– Mas seu pai conseguiu nos teletransportar, é isso o que importa!

– É... é exatamente disso que eu estou falando: se não fosse por meu pai, eu teria matado a todos nós. De novo...

– Não é culpa sua. Você ainda não sabe tudo da sua especialização! Acho que nem mesmo seu pai! Você me disse que um grande problema que vocês têm é a falta de prática. Então? Deve ter sido a primeira vez que Volano tentou aprisionar um demônio. Provavelmente, nem ele mesmo tivesse êxito logo de início!

– Kalena está correta, Valmiro. – interferiu Meliel. – Seu pai não tem a mesma prática nessa especialização como tem com a do Ar, a qual ele é imbatível. Ele teve dificuldades para aprisionar o Guardião, que é um simples espectro. Gorak é muito mais forte e, portanto, mais difícil de ser pego. Não se culpe pelo ocorrido. Tenho certeza de que seu pai ocupará muito mais o seu tempo passando-lhe conhecimento do que lhe responsabilizando pelo que ocorreu.

– E se tem alguém aqui que merece ter a culpa por tudo que está ocorrendo, esse alguém é aquela caçadora de recompensas, e não você! – disse-lhe Kalena.

Roguinil preparava-se para dormir quando Cogles foi falar-lhe.

– Tem alguma coisa ali naquelas moitas...

– Peguem suas Armas. – ordenou o príncipe para Tóro e Cogles.

– Que Arma? – chateou-se Cogles.

Roguinil aproximou-se vagarosamente do restante do grupo.

– Tomem cuidado. Tem alguma coisa se mexendo nas moitas.

– Valmiro, seu pai nos disse que você tem treinado visão de águia. Consegue ver alguma coisa? – sussurrou Meliel.

– Vou tentar...

Enquanto o bruxo concentrava-se, os demais davam seus palpites.

– É apenas um animal silvestre. – arriscou Cogles.

– Talvez o Guardião. – apostou Kalena.

– Quem sabe algum dos soldados de seu pai... – provocou Síva.

– Não... é um lobo. E está nos observando, esperando o momento para nos atacar. – afirmou Valmiro.

– Ahá! Eu não disse? Um animal selvagem! Sou muito bom com animais! – empolgou-se Cogles.

Tóro correu em direção às moitas e sumiu nelas. Todos estavam apreensivos, apesar de saberem que um lobo não seria perigo algum para aquele xetriquênio. Após muitos urros e rugidos, o animal foi arremessado para próximo da fogueira. Estava morto, com o pescoço quebrado.

– É a nossa comida desta noite. – garantiu Tóro.

Após o bárbaro beber o sangue, Kalena cortou o animal em pedaços usando o Tripon. Cogles providenciou alguns outros gravetos, onde espetou pequenos pedaços de carne e pôs para assar na fogueira.

– Descanse esta noite, meu jovem. Ficarei atento, observando seu pai. – tranqüilizou Meliel.

Após degustar um pouco da carne de lobo, Valmiro deitou-se próximo à fogueira e pôs-se a continuar a leitura do grimoire. A princesa pensou em se deitar ao lado de Roguinil, mas Síva tinha sido mais ágil e conduzido o príncipe para um local um pouco afastado do grupo.

Cogles combinou com Tóro um revezamento durante a madrugada, uma vez que o xetriquênio já fizera vigília na noite anterior e não tivera a oportunidade de repor as forças durante a viagem. Demorou para que todos se acostumassem aos rosnados que o bárbaro fazia enquanto dormia.

Pouco mais de duas horas depois, Meliel e Cogles não mais conseguiram manter-se acordados, entregando-se ao cansaço e ao sono.

* * * * *

Os primeiros raios de sol figuravam no horizonte. Acima do Templo de Kira, uma sombra se formou. Seres alados sobrevoavam o local. Dois deles desceram e avaliaram cuidadosamente o ambiente.

– Não estão aqui, mas não devem estar muito longe. Ache-os! – ordenou um dos seres.

* * * * *

O sol surgiu por trás das montanhas, revelando toda a Muralha de Fesgra e a Grande Floresta. A fogueira já havia se apagado há horas e alguns espetos com a carne do lobo não haviam sido consumidos.

– Estou com sede. Não bebemos água desde que acompanhamos aquela caravana de mercadores.

– O Largo está a algumas horas daqui, princesa, a oeste. Se quiser, pode ir lá buscar para todos nós. – disse-lhe Síva, com um largo sorriso, em tom provocador.

– Tenho uma idéia melhor. Que tal ficarmos aqui aguardando viajantes? Aí, você, com toda a sua sutileza, rouba a água deles! – retrucou Kalena.

– Até que não é má idéia... – concordou Cogles.

A caçadora lançou um olhar para o guerreiro, o qual baixou a cabeça, desconcertado.

– Iremos todos ao Grande Lago. Beberemos água quando chegarmos. – afirmou Tóro.

– Então, vamos logo. Também estou com muita sede. – concordou Roguinil, que ainda ajeitava suas vestes.

– Montanhas... Passagem... – sussurrava Volano.

Meliel acordou assim que ouviu a voz de seu amigo, ainda que rouca.

– O quê você disse, meu amigo?

– Passagem... nas montanhas... – esforçava-se o Mestre para fazer-se entender.

– O que ele está dizendo? – perguntou Valmiro, aproximando-se de Meliel.

– Acho que ele quer que a gente atravesse as montanhas...

– Por quê? Fica na direção oposta do Templo de Kira. Precisamos voltar e capturar Gorak! – espantou-se Tóro.

– E o Guardião. – completou Cogles.

– Não sei qual a razão que Volano tem para querer ir até o leste. Ele ainda está fraco. É melhor não o forçamos a falar mais nada por agora. Mas, se é para a Muralha de Fesgra que ele disse para irmos, é para lá que nós vamos. – ordenou Meliel, pegando seu cajado e o do amigo.

Tóro arrancou alguns galhos grossos de umas árvores próximas. Cogles fez cordas utilizando folhas de amendésea, um vegetal muito utilizado para a confecção desse tipo de utensílio, amarrando os galhos providenciados pelo xetriquênio, o que resultou em um objeto onde puderam deitar Volano. Tóro puxava o objeto por alguns pedaços de corda que Cogles deixara soltos para essa finalidade.

Não fazia nem uma hora desde que haviam começado a caminhar quando chegaram a um campo repleto de arbustos com alguns frutos avermelhados, outros esverdeados e alguns alaranjados.

– Frutas silvestres. Estou faminto. – revelou Valmiro, partindo em direção a um desses arbustos, colhendo alguns frutos.

À exceção de Meliel e Volano, todos os demais se abastaram. Minutos depois, tiveram de interromper a viagem por alguns instantes devido a uma indisposição que tiveram causada pelas frutas.

Cogles correu para trás de uma moita para aliviar-se da indigestão. “Hmmm... que fedor horrível!”. O guerreiro assustou-se ao ouvir aquela frase vinda pelas suas costas. Olhou para trás e viu um homem alto e barbudo, com dois pequenos chifres nas laterais da cabeça, cabelos e olhos negros, de pele morena, com o peitoral e barriga expostos. Abaixo do abdômen, nada podia ser visto por causa dos arbustos.

O guerreiro deu um salto e correu para o lado de Meliel. Os demais ficaram atentos.

– O que houve? – perguntava Kalena, mas ninguém lhe respondia.

– O que viu, senhor Cogles? – perguntou-lhe o mago, já preparando o cajado.

Um relincho foi ouvido e o homem barbudo saltou de dentro dos arbustos. Agora o restante de seu corpo era visível. Não tinha pernas como os demais, e sim quatro patas. O restante de seu corpo era de um cavalo. Tinha uma corda presa a seu ombro que cortava o corpo diagonalmente até a cintura.

– É um centauro...! – admirou-se Cogles.

– Um arcontauro, para ser mais específico. – observou o ser.

– Está um pouco distante de casa. O que faz aqui? – perguntou-lhe Meliel.

– Suas vestes revelam que é um conhecedor dos mistérios da magia. Feiticeiros e magos sempre foram nossos amigos. – o ser mostrava-se amistoso. – Estou à procura de comida. Eu e mais uns outros. Desde que Tisha morreu, as nossas plantas não mais estão boas para comermos.

– Tisha? Quem era Tisha? – indagou Kalena.

– Um misto de mulher e árvore. Uma Criatura Mística. Mais uma Criatura Mística morta... – respondeu seu mentor.

– Tisha emanava uma aura que fazia com que as plantas ao redor crescessem saudáveis, produzindo maravilhosos alimentos. Mas agora... somos obrigados a sair de nossa área à procura de comida. – entristeceu-se o centauro. – Mas e vocês? O que os trazem a essa região de Fesgra? Mesmo os magos não são comuns por aqui. A aldeia de humanos mais próxima está a horas de distância.

– Estamos numa missão oficial do rei Endoro, de Dilames. Estamos indo para a Passagem pela Muralha. – respondeu-lhe Meliel.

– Lá é perigoso! – alertou o arcontauro.

– Humpf!... Já devia ter desconfiado disso... – sussurrou Cogles.

– Os garranosos habitam aquela região. – completou o centauro.

– Mas precisamos ir para lá. – assegurou o mago.

– É muito arriscado. Vocês não conseguirão enfrentar os garranosos sozinhos. Principalmente porque estão levando mulheres. – apontou para Síva e Kalena. – Elas irão atrapalhá-los.

A princesa e a caçadora iam protestar algo, mas o arcontauro deu um forte relincho, erguendo suas patas dianteiras no ar, balançando-as. Em poucos instantes, outros seis arcontauros apareceram.

– Esse é o grupo que está sob minha responsabilidade. Nós os levaremos até a Passagem pela Muralha.

– Estamos gratos pela oferta, mas não pretendemos desviá-los da sua busca por alimentos. – recusou Meliel.

– Não será um desvio. É um caminho de volta à nossa aldeia. Além do mais, centauros e garranosos são inimigos naturais. Acabar com alguns deles só irá nos alegrar.

– Gostei disso! – interferiu Tóro.

– Acho que não há como recusar sua generosidade, senhor... – o mago interrompeu, não sabendo como chamar aquele centauro.

– Andarilho, é como todos me chamam.

Meliel montou em Andarilho e notou que aquela corda que vinha de seu ombro e ia até a sua cintura segurava, nas costas, uma aljava, um saco de pele de raposa em formato retangular que servia para guardar flechas, as quais eram feitas totalmente de madeira, inclusive as pontas perfurantes. Havia ainda um pequeno arco, também de madeira, com um fino fio de amendésea ligando suas extremidades. Parecia que os outros arcontauros tinham os mesmos artefatos.

O mago colocou Volano à sua frente, segurando-o com um braço. Os demais montaram cada um em um outro centauro e partiram rumo à passagem pelas montanhas.

A Muralha de Fesgra era uma cordilheira de montanhas que se estendia por toda costa leste da ilha, desde o extremo norte, onde atingia grandes altitudes e era chamada de Montanhas Geladas, até o extremo sul. Muito antes de atingir esse ponto, uma outra cadeia de montanhas se formava em posição perpendicular, em direção oeste, rumo ao Grande Lago. Era nela que havia um penhasco, a Passagem pela Muralha, permitindo que viajantes passassem de um lado a outro da pequena cordilheira perpendicular, evitando terem de escalar as montanhas e acelerando em horas a jornada.

O problema, como dito por Andarilho, eram os garranosos.

Valmiro bem que tentou ler algumas páginas do grimoire, mas sentia-se um pouco enjoado e resolveu juntar-se a Kalena, que parecia apostar uma corrida com o centauro de Roguinil. Cogles e Tóro mantinham-se na retaguarda.

– Mago... no Templo... eu vi a imagem de um casal que parecia estar com medo de uma mulher... Eram Kira, Zilon e a artesã quem eu vi, não eram?

Meliel olhava meio constrangido para Síva.

– Possivelmente. As escadas estão impregnadas das rancorosas lembranças de Kira. – respondeu.

– E então... ela morreu ou não? – insistia.

– Do que está falando? É claro que Kira morreu!

– Estou falando da artesã... O que houve com ela?

Meliel mordeu seus lábios, parecia querer desviar-se do assunto, mas sabia que Síva insistiria naquela conversa até saber o que queria. Mais adiante, viu Kalena, Valmiro e Roguinil divertindo-se com a montaria. Pediu a Andarilho que diminuísse os passos, e o centauro da caçadora fez o mesmo.

– Sim e não.

A jovem demonstrava-se atenta às palavras do mago e ansiosa por outras.

– Quando Kira descobriu que Zilon tinha uma amante, imediatamente quis saber quem era. Seria mais jovem, mais bela, mais charmosa, mais inteligente? Ela temia que o “sim” fosse predominante nas respostas a essas perguntas. Criou elementais para irem atrás da misteriosa mulher. Se por um lado Kira ficou feliz em saber que a tal amante não era nem mais bela, nem mais inteligente, nem mais nada, por outro se sentiu humilhada pelo marido. Zilon traíra a mais poderosa mulher do mundo da magia com uma outra que era simples, humilde e sem nenhuma importância social. Nada mais e nada menos que uma artesã. Kira não compreendia quais as razões que levaram seu marido a trocá-la por aquela outra mulher. Sim, Kira sentiu-se trocada! “Amor”, foi a razão apresentada por Zilon. O ferreiro disse-lhe que amava a artesã mais do que tudo nessa vida. Foi aí que Kira o transformou em pedra.

– Sim, mas e a artesã? – perguntava Síva, impaciente.

– À ela Kira deu um castigo ainda pior. Transformou-a num ser que não é nem morto nem vivo. Um ser amaldiçoado a arrastar-se eternamente entre esse e o outro mundo. Um ser incapaz de sentir, de tocar ou de ser tocado. Um ser que jamais voltaria a provar o amor, pois ninguém jamais lhe amaria. Ao contrário, todos teriam repulsa, medo.

– Que ser é esse, mago? – perguntava, assustada.

– Um espectro.

A caçadora arregalou os olhos. Parecia entender aonde Meliel chegaria com aquela história. O mago continuou.

– Os irmãos de Kira discordaram da vingança, mas não podiam desfazer o feitiço. Enquanto Kira queria que o ser vagasse eternamente por toda Fesgra, testemunhando a história de amor de diversos casais pelos séculos, incapaz de voltar a sentir isso, Kerun e Koranus decidiram enviá-lo a um outro mundo. O mundo de onde provinha o encantamento que transformou a artesã em um espectro. O Mundo das Trevas. Foi aí que os irmãos criaram uma passagem, o Portal de Roncox, e mandaram a criatura através dele para as trevas. Mas a artesã havia jurado vingança.

Os olhos de Síva eram um misto de temor e susto. Sua respiração parecia ter parado. Olhava trêmula para Meliel, que segurou suas mãos e percebeu que estavam frias.

– O Guardião... a artesã foi transformada no Guardião...

– Isso mesmo, minha jovem. O Mundo das Trevas sempre existiu, assim como feiticeiros estudiosos dele. Mas uma passagem para ele foi criada pelos irmãos Pontrofo. Curiosamente, o espectro da artesã conseguiu reverter o Portal de Roncox, deixando-o apenas como entrada para o nosso mundo. Nunca mais se conseguiu enviar nada de volta ao Mundo das Trevas.

– E é por causa de Kira que existe o Guardião e toda essa ameaça dele trazer outros demônios para Fesgra...

– O ódio nos torna irracionais, minha jovem. Quer conhecer uma pessoa? Dê-lhe poder. Quer conhecê-la mais ainda? Tire-lhe o poder. Ninguém podia superar Kira na magia. Mas uma simples mulher foi capaz de superá-la naquilo que não se aprende em nenhum livro, em nenhuma academia: o amor. Zilon devia sentir-se mais amado pela simples camponesa do que pela mais poderosa mulher que toda Fesgra já viu.

– Mas... se foi possível uma vez criar uma passagem para o Mundo das Trevas, então é possível fazê-lo outra vez!

– Em teoria, sim, minha jovem. O problema é que ninguém sabe como. Os irmãos Pontrofo, temendo que alguém de má índole criasse uma ligação com as trevas, jamais perpetuaram esse conhecimento. Não há nenhum registro desse feitiço.

– Por quê não nos contou isso antes?

– Porque, minha jovem, muito disso tudo fiquei sabendo nessa nossa jornada. Volano tem me contado alguns dos segredos do Mundo das Trevas e da história do Guardião. Também fiquei chocado com essa revelação. Nunca imaginei que os próprios Pontrofo, os quais nos deixaram como principal legado os seus Templos e a magia para aprisionar seres das trevas, fossem os responsáveis por eles em nosso mundo.

* * * * *

Cogles parecia sentir-se bastante à vontade com o centauro que montava.

– Diga-me, como você se chama?

– Raio. – respondeu o arcontauro.

– Raio? Hum... por que tem esse nome?

– Porque consigo correr na velocidade de um raio.

– Isso é bom... Explique-me uma coisa... você é um centauro, não é isso?

– Sim, sou.

– E o que é um arcontauro, então?

– É uma das raças da espécie centauro. Vê esse arco e essas flechas aí atrás? Somos excelentes no manuseio dessa arma e em sua confecção. É isso que caracteriza a nossa raça, além de nossa força.

– Então existem outros tipos de centauro? – admirava-se o guerreiro.

– Sim, existem outros.

– Você poderia me falar deles?

– Existe uma raça cuja parte superior de seu corpo é de um tom claro do azul. São os civitauros, centauros pacíficos, mas muito habilidosos com espada e escudo. Fazem de tudo para não se envolverem numa batalha, mas quando entram em uma... Ao menos são bastante honrosos.

Cogles deslumbrava-se com as palavras de Raio.

– Há ainda os engenhetauros, de pele alaranjada, que são excelentes construtores. Fazem maravilhas com árvores e pedras. Mas são péssimos numa briga. Várias vezes tivemos de enviar um exército para ajudá-los a combater os imoratauros.

– Imoratauros?

– Sim, imoratauros. Uma raça que não tem qualquer moral. Por um bom pagamento, aqueles indivíduos realizam qualquer tarefa. Os garranosos já ofereceram tesouros para que os imoratauros matassem todos os engenhetauros.

– E por quê?

– Porque são os engenhetauros os responsáveis pelas construções de diversas coisas em nossas aldeias. Sem eles, voltaríamos a morar nas florestas e seríamos um alvo fácil para os garranosos, que são em maior número.

– Mas por quê os imoratauros ajudam os garranosos a destruírem a sua própria espécie?

– Já lhe disse. Eles fazem qualquer coisa por um bom pagamento. Já se tentou de tudo, mas eles não mudam. É a natureza de sua raça. Há muito tempo foram expulsos de nosso convívio.

– E quanto aos garranosos? Já ouvi falar deles, mas nunca vi um. Não há meios de vencê-los?

– Somos muito mais fortes do que eles, mas somos em menor número. Para cada garranoso que matamos, aparecem uns outros dez! Eles se reproduzem muito rápido!

* * * * *

Tóro ouvia atentamente a conversa de Raio e Cogles. O centauro que o conduzia resolveu romper o silêncio entre ambos.

– Chamo-me Justoso. E você?

– Tóro.

– Você não se parece muito com um dilamésio...

– É porque não sou desse povo. Sou um xetriquênio.

– Hum... Já ouvi muitas histórias das batalhas entre esses dois povos...

– É... já lutamos muito...

– E hoje, vocês vivem em paz?

– Da maneira deles, sim.

– Perdoe-me... como assim “da maneira deles”?

– É uma longa história. Dilames sempre foi o reino dominante de todas as terras de Fesgra, desde que as primeiras comunidades começaram a surgir na ilha. Todas as terras, com exceção de uma.

– O reino que ninguém conquista... O Reino Celestial...

– Exato. Aos poucos, os povos começaram a reivindicar sua independência, mas os governantes dilamésios jamais cogitaram dar-lhes isso. Os metais das Terras do Oeste e do Sudoeste eram vitais para o crescimento de Dilames. Durante séculos, os povos daquelas regiões travaram batalhas pela sua independência, o que conseguiram, ao final. Quanto aos do norte e do sudeste... Os governantes dilamésios fizeram um acordo com Zilon, ganhando as suas famosas Armas e reconhecendo a soberania dos povos do oeste e do sudoeste. Jamais conseguimos nossa liberdade, por mais que reunamos forças. Sem termos mais como resistir, fomos obrigados a aceitar um acordo de paz, onde nossas obrigações para com os dilamésios aumentaram. Quase toda a nossa produção de alimentos é enviada a eles, sem pagarem nada por isso, e depois nos vendem esses mesmos produtos, às vezes transformados em outros.

– Vocês são obrigados a dar e depois a comprar o que produzem?! – espantou-se Justoso.

– Correto. Felizmente, permitem que comercializemos nossos apreciados bolos de madisca... Mas não é só isso! Ainda somos forçados a produzir armas com nossas madeiras e metais e entregá-las!

– E por quê ao invés de entregar essas armas, vocês não as usam contra os dilamésios?

– Porque a força deles é maior do que a nossa. Eles possuem as Armas de Zilon... E ainda há muitos oficiais inspecionando nossas produções, pois há uma imposição que nos impede de ter um grande número de armas e guerreiros.

– E os outros povos dominados? Não há como uni-los numa luta contra Dilames?

– Já tentamos fazer isso, secretamente, é claro. Mas o rei de Kan-Potras, além de ter recusado essa aliança, nos delatou ao Rei-Maior Endoro. Sofremos uma dura e implacável perseguição aos mentores dessa “conspiração contra a ordem”, como o próprio Endoro afirmou, enquanto os kan-potrenses ganharam o direito de permanecer com metade da sua produção agrícola.

– Isso não é justo!

– Não, não é. Mas, ao menos, somos um reino. A situação é bem pior na Federação de Povoados. Estamos em sua área. É a união de todos os vilarejos e aldeias das Terras do Sudeste que não estão nos limites dos reinos de Kan-Potras ou Dilames. Não constituem ainda um reino propriamente dito, aos olhos do Reino-Maior. Assim sendo, não têm nem mesmo o direito de produzir qualquer alimento que seja. Apenas exploram minérios em algumas minas subterrâneas e vendem homens para engrossar uma infantaria de linha de frente, quando Dilames está em guerra. Tudo de que precisam ou consomem, têm de comprar diretamente dos produtores de Endoro.

– A força foi o único meio que vocês usaram para tentar mudar a situação?

– Não. Primeiro, tentamos a via diplomática. Eu mesmo era paroler do meu reino, aquele que conhece a fala, cargo responsável de resolver, pelas vias civilizadas, qualquer impasse que surja. Mas percebi que isso era apenas uma grande enrolação de Endoro. Ele aceitava apenas as soluções que lhe eram favoráveis. Abandonei o cargo. Tornei-me um bárbaro e comecei a liderar homens para lutarem por nossa independência. Fui o único sobrevivente dos mentores da tal conspiração. Alguns parolers ainda acreditavam na força de uma convincente argumentação. Morreram frustrados, com certeza.

– Não consigo imaginar uma vida sem liberdade. Vivemos em comunidade, aprendemos com os civitauros. Temos líderes, como Andarilho, que têm a função de organizar nossas vidas, não de controlá-las. Tudo o que é produzido é repartido igualmente entre todos. Não permitimos que ninguém fique sem alimento ou qualquer outra coisa. Nada do que você me disse que os dilamésios fazem é justo. Algo precisa ser feito!

* * * * *

O grupo aproximava-se rapidamente da cadeia de montanhas e da Passagem. Com o balanço da cavalgada, Volano ia despertando lentamente, até que conseguiu por completo reunir condições de manter-se consciente.

– Centauros? – admirou-se, após olhar calmamente ao seu redor.

– Sim, meu velho amigo. Estão nos dando uma carona. Aí está a Muralha de Fesgra e o penhasco.

A Passagem pela Muralha estava há algumas dezenas de metros de distância.

– A propósito, o que você quer por lá? – perguntou-lhe Meliel, entregando-lhe seu cajado.

– Uma Criatura Mística que vive nessa área. – respondeu o Mestre.

– A Pegasus? – espantou-se Meliel.

– Exato. Precisamos encontrá-la.

– Mas ela está morta faz quase um ano! – informou Meliel.

– Morta?! – assustou-se Volano.

– Sim, assim como diversas outras Criaturas por toda Fesgra.

– Soube de algumas quando estive em Terafes há alguns meses. E depois, a Mantícora, na Floresta Petrificada, há pouco mais de uma semana. Não soube nada a respeito da Pegasus. Ou então essa informação passou-me despercebida...

Meliel fez um gesto e Andarilho parou, emitindo um som para que os outros fizessem o mesmo. Valmiro, após ver seu pai acordado, solicitou ao centauro que montava que se aproximasse do líder do bando.

– Os centauros nos informaram que Tisha também está morta. Sei que criaturas das trevas não se aproximam de Criaturas Místicas. Você pretende usar uma delas, Volano?

– É nossa única salvação. Não há como enfrentar Gorak sem... – o mago interrompeu suas palavras com o forte abraço que seu filho lhe deu.

– Perdoe-me, meu pai. Mais uma vez o decepcionei.

– Não, meu filho, você não me decepcionou. Estamos nós dois tendo um aprendizado prático de tudo que lemos nos livros. Estamos suscetíveis a falhar. – falava com um leve sorriso. – É claro que essa falha dobrou nossos problemas... Mas conseguiremos consertar isso. Tenha certeza!

– É bom vê-lo bem, mago. – aproximou-se Síva, com um semblante tranqüilo.

– Teletransporte... Isso é incrível! Estar num lugar e, de repente, puft! Já se está em outro! Vocês magos são mesmo cheios de surpresas! – admirava-se Cogles.

– Obrigado pelo elogio. O que fiz deixaria muitos colegas de magia com os cabelos em pé e eu seria amaldiçoado por todas as minhas próximas vidas.

Os não-iniciados em magia entreolharam-se. Suas fisionomias denunciavam que não haviam compreendido as últimas palavras de Volano.

– Bem, senhores, pedi que viéssemos até aqui porque precisamos encontrar uma Criatura Mística. A que vive por aqui... acabei de ter a notícia de que não vive mais.

– Deixe-me adivinhar... “algo” a matou... certo? – ironizou Cogles.

– Infelizmente, sim. E pelo que sei, a Pegasus não estava em época de gerar um filhote. Talvez tenhamos mais outra tarefa além de aprisionar Gorak e o Guardião. Mais do que nunca precisamos das Criaturas Místicas.

– Meu mestre nos falou que as criaturas das trevas não se aproximam de Criaturas Místicas...

– Correto, princesa. Precisamos do coração de uma dessas Criaturas. É a única coisa que pode nos proteger dos demônios. – explicou Volano.

– E, convenientemente, “algo” vem matando essas Criaturas há algum tempo... – observou Tóro.

– Pouco sei de Criaturas Místicas, mas sei que quase todas que habitam as terras pertencentes a Dilames estão mortas. Agora que sei de Tisha, apenas uma ainda vive... – colocava Meliel.

Volano olhava atentamente para o amigo. Após percorrer seus olhos em todas as direções, o Mestre dos Magos pôs fim àquele suspense.

– É mortal enfrentá-la. Talvez por isso esse “algo” não a tenha matado ainda. – o mago tinha um ar preocupado. – Mas ela já alcançou seus cem anos de vida... está bastante velha... Talvez o próprio tempo já tenha feito o serviço... – suas palavras agora eram em tom ponderado. – E, se assim for, talvez seja mais fácil. É certo de que deixou uma cria.

– Estou ficando assustada. Que Criatura é essa de que vocês estão falando?

– De Dragonesa, princesa. – afirmou Meliel.

– Tenho até receio em perguntar, mas a dúvida é pior do que a certeza. O que é essa Dragonesa?

– Um dragão, senhor Cogles. Um dragão fêmea que vive nas Montanhas Geladas. – explicou Volano.

– Um instante. Está querendo dizer que vamos voltar tudo? Saímos do Muntal, seguimos pelo norte até a sua cabana, fomos rumo oeste para Terafes e o Largo, navegamos ao sul até o Grande Lago para agora retornarmos até às Montanhas Geladas, o extremo nordeste de Fesgra, a leste da Floresta Petrificada!? – esbravejava Tóro.

– As coisas se complicaram, xetriquênio. Sem o coração de uma Criatura Mística não há como se proteger dos demônios. Ou vamos até as Montanhas Geladas, onde é certo de que há uma dessas Criaturas, ou nos arriscamos em procurar alguma pelo restante de Fesgra que o “algo” ainda não tenha matado. – explicou-lhe o Mestre.

– Se vamos até as Montanhas Geladas, não precisamos mais passar por aqui. Podemos fazer a volta e...

– De jeito nenhum, senhor Cogles! O que menos temos agora é tempo. Precisamos encontrar Dragonesa e pegar o seu coração, achar e aprisionar Gorak e impedir que o Guardião alcance o Templo de Koranus. Tudo isso precisa ser feito antes da primeira lua cheia. E hoje já é a segunda noite de lua crescente. Ganharemos tempo se atravessarmos a Passagem pela Muralha. – aconselhou Volano.

O grupo organizou-se em duas fileiras, com Andarilho levando os magos na frente de uma, sendo seguido por Valmiro e Síva, e Justoso conduzindo Tóro na frente da outra, com Kalena, Roguinil e Cogles logo atrás.

Àquela localização, as elevações raramente chegavam a trinta metros de altura. Contudo, o ponto máximo da cordilheira ultrapassava os três mil metros de altura, nas Montanhas Geladas. A redondeza da Passagem pela Muralha era justamente o ponto de menor altitude.

– Uma caravana comum leva pouco mais de três horas nessa travessia. Em quanto tempo você acha que podem nos levar até o outro lado? – perguntou Meliel.

– Menos de uma hora... se o caminho estiver livre. – respondeu Andarilho.

– Esse é o problema... – sussurrou Cogles.

As nuvens no céu ficaram mais densas, acinzentadas e algumas gotas começaram a cair. A luminosidade diminuíra e a Passagem tomara um ar sombrio, temeroso. Algumas rajadas de vento soavam como uivos.

Cogles olhava em todas as direções, à procura de sinais de algum garranoso. Já ouvira milhares de histórias dessas criaturas, mas nunca conseguiu ver uma. A verdade é que não queria essa experiência. Quantas pessoas ele conhecia que já enfrentaram um garranoso e sobreviveram para contar o ocorrido? Umas seis? Talvez, num universo de mais de cem!

Kalena deixara o Tripon armado, pronta para um ataque surpresa. Surpresa desagradável, por sinal. Roguinil também estava com a espada à mão, preparado para proteger o grupo. Valmiro relia alguma coisa no grimoire. Síva também olhava atentamente para o alto. Seu bracelete esquerdo estava com três pequenas flechas em ponto de disparo. Meliel e Volano pareciam ser os únicos despreocupados naquele extenso e curvilíneo corredor cercado pelas paredes de rocha.

Os arcontauros cavalgavam não muito rápido, para não fazer demasiado barulho, nem tampouco num ritmo lento, o que tornaria o grupo presa fácil. Tóro, como sempre, apenas olhava adiante, parecendo alheio a qualquer movimentação ou ruído em volta. Foi o primeiro a perceber a presença de seres próximos.

– Estamos sendo observados...

– Caçados, eu diria. – observou Justoso.

Volano pediu a Andarilho que aumentasse a velocidade, o que foi feito e seguido pelos demais centauros. Uma curva se aproximava. Síva olhou para trás e viu alguns garranosos descendo pelas encostas.

– Parem! – gritou a caçadora. – É uma emboscada! Estão nos empurrando para frente. Devem ter preparado alguma armadilha depois dessa curva!

Todos os centauros pararam. A suposição de Síva não era incoerente. Mas ficar ali parado também não era possível, pois os garranosos que vinham por trás estavam fechando o cerco.

– Eles não estão atacando. Sabem que estão em desvantagem. Querem que continuemos. Têm algo adiante para nós. – afirmava a jovem.

– O que faremos? Recuamos? – perguntava Cogles num tom quase que sugestivo.

– Não! Temos de continuar! Preparem-se para qualquer coisa que possa estar depois daquela curva. – encorajava Volano.

– Só que eu não gosto de sentir-me pressionada! – Kalena desceu do centauro e rumou o Tripon na direção dos garranosos que estavam atrás do grupo. A Arma percorreu rapidamente o bando daquelas criaturas, cortando-lhes as cabeças e retornando à mão da princesa. – Agora, sim, podemos continuar...

– Esperem um instante aqui. – Roguinil pôs seu centauro à frente e aproximou-se cautelosamente da curva. Não via nada, apenas caminho livre. Retornou ao grupo. – Bem, caçadora, acho que você equivocou-se. Não tem nada...

– Mesmo assim, passaremos mais alertas por esse trecho. – pediu Meliel.

Os arcontauros conduziram os humanos até o início da curva. Como Roguinil afirmara, não havia nada. Prosseguiram. A passagem parecia estar ficando mais estreita, mais apertada. Tiveram de fazer uma fila única.

– Estamos mais vulneráveis assim. – observou Tóro.

Síva percebeu pequenas pedras escorregando por uma das encostas. Olhou para o alto. Milhares de garranosos estavam empurrando várias rochas gigantescas, dos dois lados.

– Emboscada! – gritou a caçadora. – Corram!

Os centauros dispararam, mas dezenas de pedras imensas tomaram conta do caminho, impedindo a passagem.

– Voltem! – ordenou Volano.

Outras dezenas de grandes rochas também tomaram conta da passagem oposta.

– Estão nos prendendo! – observou Kalena.

Andarilho deu um forte relincho e todos os outros arcontauros pegaram seus arcos e começaram a disparar flechas para o alto, acertando diversos garranosos. Dezenas deles surgiram nas duas pontas que cercavam o grupo de humanos e centauros. Kalena arremessou o Tripon e Síva também disparou flechas de seu bracelete.

Enquanto alguns garranosos caíam ao chão, outros corriam em direção a Meliel e os demais. O mago concentrou-se para criar elementais de fogo, mas uma das criaturas bateu em sua cabeça usando o dorso de uma das garras, deixando o mago inconsciente, aprisionando-o numa teia logo depois.

Vários garranosos vinham dos dois lados para capturar Volano, mas o Mestre os repeliu com fortes rajadas de vento que saíam de suas mãos.

– Não posso fazer nada mais do que isso porque estamos num ambiente fechado. Poderia provocar o deslizamento de pesados blocos de pedra, que nos esmagariam como insetos. – comentava com seu filho.

Roguinil e Tóro correram ao encalço de Meliel. O príncipe usava a espada para cortar ao meio diversos garranosos, enquanto o bárbaro o fazia com suas próprias mãos. Um grupo dessas feras empreendeu um ataque múltiplo contra o xetriquênio e conseguiu prendê-lo em teias. Mas nada parecia derrubá-lo. Tóro libertou-se facilmente das teias, apenas rasgando-as.

Um dos garranosos saltou frente a Cogles. Era uma criatura com o corpo de aranha, de um azul escuro muito forte e alguns traçados de um vermelho vivo, tronco e cabeça de homem amarelados, e braços robustos com grandes garras de escorpião no lugar das mãos, num tom leve de vermelho. O guerreiro estava paralisado, não conseguia ter nenhuma reação. Finalmente vira pessoalmente um garranoso e não gostara nem um pouco disso.

A criatura abriu sua boca e dela saíram fios de teia que foram se envolvendo pelo corpo de Cogles, prendendo-o e derrubando-o no chão.

Valmiro viu a cena e correu para salvar o guerreiro. Ao aproximar-se, percebeu outros dois garranosos vindo por trás. Concentrou-se rapidamente e criou pequenas esferas violetas em suas mãos, arremessando-as no chão e seguindo em frente. Quando as criaturas passaram por cima das esferas, estas se expandiram em raio, perfurando o corpo dos seres e estraçalhando-os por fim.

O bruxo agora estava frente ao garranoso que aprisionara Cogles. A criatura abriu a boca e expeliu um emaranhado de teia, mas Valmiro desviou, pulando para o lado. O ser tentava acertar o corpo do bruxo com as garras, e acabou encurralando-o na parede, deixando o jovem sem saída. Mais uma vez, Valmiro concentrou-se e citou algumas palavras. A fera ergueu sua garra direita no ar e preparava-se para enfiá-la com toda força no peito do rapaz, mas uma mancha violeta surgiu embaixo da criatura e esta sumiu, como se tivesse caído num buraco.

– Viu aquilo? – perguntou Valmiro a Cogles enquanto libertava-o da teia, entusiasmado. – Aprendi no grimoire!

– E o que aconteceu ao garranoso? – espantou-se o guerreiro.

– Não sei... O importante é que ele sumiu!

– Temos companhia...

O jovem olhou para trás após o comentário de Cogles. Era impossível contabilizar quantas criaturas estavam vindo em sua direção. O bruxo fechou os olhos e passou a dizer em voz alta algumas palavras. O guerreiro não entendia nenhuma delas, mas conseguiu perceber que era uma sentença que se repetia. As mãos de Valmiro ficaram violetas e o rapaz tocou o chão. Da terra, surgiram dois pequenos seres espectrais, da mesma coloração, que avançaram nos garranosos, atravessando seus corpos, implodindo-os.

– Vamos, senhor Cogles, antes que surjam outros.

Os dois correram rumo a Volano.

A fera que aprisionara Meliel carregava-o enquanto escalava facilmente a elevação rochosa. Roguinil prendeu a espada em seu cinto e foi atrás da criatura.

Kalena via a cena, mas não conseguia livrar-se dos garranosos tamanha era a quantidade. Um deles avançou furiosamente por trás com as garras empunhadas. Síva pôs-se em seu caminho e utilizou o bracelete esquerdo. As pedras de esmeralda brilharam intensamente e projetaram-se ampliadamente num escudo circular de um verde translúcido, protegendo a ambas daquele ataque. Com o outro bracelete, disparou uma flecha, a qual penetrou completamente bem no meio do garranoso, que explodiu, tendo partes destroçadas de seu corpo e muito sangue espalhados.

Os centauros, aos poucos, foram deixando de disparar suas flechas.

– Por quê estão parando? – reclamava Cogles, aproximando-se de Raio.

– Porque nossas flechas não são ilimitadas! Elas acabaram. Precisamos fazer mais, só que não há madeiras por aqui e nem tempo pra isso!

A quantidade de garranosos havia diminuído, mas muitos outros começaram a surgir no alto da elevação rochosa.

– Não conseguiremos! Eles são muitos! – esbravejava Kalena.

– Minhas flechas acabaram e estou com poucas estrelas também. Só me restará o escudo, a corda e a capa. – argumentava Síva.

– Estou sem o chicote. Só posso ajudar numa luta corporal com minhas adagas.

– Adagas? Onde as conseguiu? Pensei que tivessem ido à reunião com meu pai desarmados.

O guerreiro ficou desconcertado com o comentário de Kalena.

– Não, senhor Cogles, isso seria fatal. Os garranosos possuem um forte veneno em suas garras. Temos de enfrentá-los à distância. – informou Andarilho.

– O único jeito é teletransportar todos nós para além da Passagem. – sugeriu Volano, já erguendo suas mãos.

– Não! Acabou de repor suas energias! Da outra vez que fez isso, com menos gente, quase morreu! – impediu Valmiro, segurando os braços do pai. – Tentaremos de um outro jeito.

Tóro impedia que os garranosos se aproximassem do restante do grupo. Pegou um deles pelas garras e começou a rodopiá-lo, jogando-o em cima de outros. Mas isso apenas os retardava.

Roguinil continuava sua escalada atrás de Meliel. Algumas criaturas começaram a vir em direção contrária. O príncipe defendia-se com a espada, apesar da dificuldade de fazê-lo com apenas uma das mãos, pois usava a outra para segurar-se. Não conseguiu equilibrar-se por muito tempo e acabou escorregando, despencando.

Kalena desconcentrou-se do Tripon e voltou-se para Roguinil, controlando o corpo do kan-potrense, aparando a sua queda através de telecinese. Síva não pôde impedir a aproximação de um garranoso, o qual feriu o braço da princesa com uma de suas garras.

A caçadora lançou sua última estrela brilhante, que circundou freneticamente todo o corpo do garranoso, cortando-o em milhares de pedaços. Kalena não suportou a dor e desconcentrou-se, mas Volano deu continuidade à magia, evitando que Roguinil caísse.

O garranoso já havia alcançado o cume quando Meliel despertou. Seus olhos tornaram-se avermelhados e a teia dissolveu-se. De pé, pôde analisar o ambiente e milhares daquelas criaturas que se aproximavam. Embaixo, outras dezenas cercavam o restante do grupo.

O mago ergueu seus braços o máximo que pôde e faíscas de lume começaram a surgir da palma de suas mãos. Focos de fogo emergiram em diversas partes do terreno rochoso e foram ganhando força e tamanho. Aos poucos, iam tomando toda a área, incendiando milhares de garranosos. Algumas das criaturas, encurraladas pelo fogo, enfiavam ferozmente suas garras em seu próprio corpo, morrendo com o veneno antes das chamas as consumir.

Volano ordenara que os demais se aproximassem e criou um círculo de vento para protegê-los das chamas, que já haviam tomado conta de toda a área.

A fraca chuva que caía engrossou, apagando alguns focos. Centenas de garranosos ainda eram consumidos pelo lume, mas alguns conseguiram fugir. Meliel, ainda com os olhos avermelhados, ficou na beirada da montanha e deixou seu corpo cair. Seus olhos mudaram para uma tonalidade incolor. As chamas de fogo se extinguiram e o mago começou a levitar no ar, até alcançar o solo. Volano desfez a proteção de vento.

– Não teremos condições de suportar outro ataque desses! Sem nossas flechas, ficamos vulneráveis aos garranosos por causa de suas garras venenosas. – observou Andarilho.

– Encontro-me na mesma situação... – colocou Síva.

– Vamos atravessar logo esse obstáculo de pedras que eles criaram e chegar ao outro lado. – ordenou Volano.

– Kalena, você está ferida! – assustou-se Meliel.

– Ela foi atingida por um deles. – comentou a caçadora.

– Então ela está envenenada! – informou Andarilho.

– A palmira que eu havia trazido caiu na água quando as serpentes nos atacaram... – observou Valmiro. – E ela só nasce em regiões pantanosas...

– Como vocês combatem esse veneno? – perguntou Meliel a Andarilho.

– Não combatemos. Não sabemos como fazê-lo. Quando um dos nossos é envenenado, só lhe resta aguardar a morte abatendo o máximo de garranosos que puder.

A princesa dilamésia gemia de dor e suava. Seu braço estava inchado e com uma coloração anormal, enquanto placas avermelhadas surgiam pelo restante de seu corpo.

– Então, só nos resta voltar ao Templo de Kira. – falou Meliel. – Tóro, ajude-me a colocá-la em cima de Andarilho.

– Não voltaremos ao Templo. Continuaremos rumo às Montanhas Geladas. – interrompeu Volano.

– Precisamos levá-la ao Templo! Ela pode morrer! – insistia Meliel.

– E o mundo como o conhecemos pode ser destruído! – esbravejava o Mestre. – Entendo a preocupação com sua aprendiz, mas muitas outras vidas correm perigo. Temos de ir atrás de Dragonesa nas Montanhas Geladas! Quando voltarmos, levaremos a princesa no Templo de Kira.

– Não há tempo para isso. O veneno pode matar em questão de horas! – observou Andarilho. – Se a cura está no Templo de Kira, devem levar a garota para lá agora!

– Como o Templo pode salvar Kalena? – indagava Roguinil.

– Nem tudo naquele Templo é ódio, príncipe. Ao desafiar o cosmos, vivendo por muitos anos devido à maldição que lançou em si mesma, Kira deixou impregnada em sua casa a força da vida. Por isso, sua antiga moradia é considerada um Templo. Um Templo capaz de restabelecer a energia de cada ser. – respondeu Meliel. – Já que não temos erva de palmira aqui e nem os centauros conhecem outra forma de vencer o veneno dos garranosos, a única opção que temos de salvar Kalena é levando-a ao Templo.

– Isso tomará o nosso tempo! – irritava-se Volano.

– Eu sou o Mago-Maior e líder do grupo. E digo que devemos voltar ao templo para salvar minha pupila.

– E eu sou o Mestre dos Magos aqui, o único especialista em Mundo das Trevas. Se digo que devemos ir para as Montanhas Geladas para cumprir nossa missão de aprisionar os demônios, então é para lá que nós iremos!

Os magos prepararam seus cajados para um confronto. Seus semblantes eram de ódio. Uma fúria que parecia estar há muito contida revelava-se e queria explodir.

– E se nos dividíssemos?

Os magos se olharam com mais calma.

– Péssima idéia, senhor Cogles. Dividir forças nunca foi uma boa estratégia. – irritou o Mestre. Deu um forte suspiro. Baixou o cajado e encarou Meliel. Via a decepção em seu rosto. – Mas, diante da circunstância de que temos duas tarefas importantes a cumprir em dois lugares diferentes, sem o tempo a nosso favor, talvez nos separar seja a única opção. Tóro, Síva e Valmiro, venham comigo. Os demais acompanhem Meliel de volta ao Templo...

– Senhor Andarilho, será que poderíamos continuar desfrutando da generosidade de seu grupo? – perguntou Meliel, com uma voz mais suave e aliviada.

– Não haveria qualquer problema, mago, mas precisamos continuar a procurar alimento para a nossa aldeia. Há outros grupos que também estão nessa tarefa, mas não sabemos se terão êxito.

– Então, teremos de continuar a pé mesmo. – lamentou o Mestre.

– Andarilho, será que não poderíamos ajudar? Talvez os outros grupos consigam alimento... – interferiu Justoso.

– Gostaria de poder atender a esse pedido, mas temos um compromisso com nossa aldeia.

– Não se preocupe, entendemos perfeitamente. Bem, vamos, então. – ordenou Volano.

– Um momento, mago. Pensando bem, talvez consigamos fazer as duas coisas. Se nos separarmos, poderemos cobrir uma área maior, ao mesmo tempo. – concluiu Andarilho – Raio, concedo-lhe a chefia do subgrupo que irá com os humanos ao Templo de Kira. Após deixá-los lá, se encontrarem alimento, voltem à aldeia. Faremos o mesmo depois que retornarmos das Montanhas Geladas. Acho que assim poderemos atender a todos.

Kalena e seu mentor utilizaram a mesma montaria. Cogles continuou com Raio; Roguinil montou em outro centauro. Meliel esforçou-se na telecinese para levitar seu grupo ao alto do obstáculo de pedras criado pelos garranosos.

Justoso continuou como montaria de Tóro e acompanhou o restante do grupo numa escalada pelo outro obstáculo de pedra. Volano, montado em Andarilho, auxiliava a força dos centauros com a sua telecinese. Do alto, os magos entreolharam-se.

– Espere-nos no Templo. Estaremos de volta em três dias. – gritou Volano para o amigo.

A chuva cessou e o céu se abriu. O dia clareara.

O grupo se dividira em dois e cada subgrupo seguiu seu caminho.

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Peter Ângelo