A Arca de Zândrus - Vol. 1 - O Guardião - Capítulo 8

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Capítulo 8

AS CRIATURAS MÍSTICAS

O grupo de Meliel rapidamente voltara à entrada da Passagem pela Muralha. O sol estava aproximando-se do centro do céu. A pedido do mago, os arcontauros aceleraram a velocidade da cavalgada. Kalena continuava gemendo de dor, e as placas avermelhadas, aos poucos, tornavam-se maiores. A princesa suava muito, porém era um suor frio.

– Será que conseguiremos chegar a tempo? – preocupava-se Cogles.

– Teremos de nos esforçar para isso. Mais rápido! – ordenou o mago aos centauros.

– E se Gorak ainda estiver no Templo?

– Então, príncipe, não nos restará outra opção a não ser enfrentá-lo enquanto Kalena tem sua vitalidade recuperada pelo Templo. – respondia Meliel.

* * * * *

Os olhos de Valmiro haviam acompanhado o centauro que conduzia a princesa dilamésia até o último instante, até desaparecem por trás da colina de pedras juntamente com o restante do grupo. Teria sido a última vez que os veria?

Manteve-se centrado à frente do caminho; o desfiladeiro ainda lhe parecia extenso e sombrio. O jovem bruxo mantinha a audição alerta. Seus olhos agora vasculhavam as paredes ao lado, à procura de sinais de um novo ataque de garranosos.

– Meu filho, creio que aquelas magias que você fez para enfrentar os garranosos... – interrompeu enquanto aproximava-se de Valmiro. – ...você deve ter aprendido no grimoire...

– Sim, aprendi lendo o grimoire. – respondeu, com um largo sorriso e com os olhos cintilantes.

– Estou orgulhoso disso, meu filho. Esse era o objetivo quando confiei a sua guarda. No entanto, preciso avisar-lhe que nem todas as magias de nossa especialização devem ser feitas.

O rapaz olhava confuso.

– Por exemplo, aqueles elementais que você criou... Onde eles estão agora?

O jovem tremia os lábios, tentava balbuciar algo, mas não sabia o que dizer ao pai.

– Os elementais são seres criados por nós, conhecedores dos mistérios da magia. Cada especialização tem o seu elemental específico. Eles obedecem ao comando de quem os criou, é claro, mas tornam-se bastante imprevisíveis quando seus criadores simplesmente esquecem de desfazê-los.

O bruxo agora tinha um semblante preocupante. Lembrou-se de que não desfizera a magia que criou os elementais há pouco.

– Precisamos voltar! Eu não sabia disso! Preciso desfazê-los!

– Calma... Felizmente você acabara de aprender essa magia e, assim sendo, ainda é muito fraca. Os elementais que você criou eram pequenos, frágeis e fracos...

– Frágeis e fracos?! O senhor viu o que eles fizeram com aqueles garranosos?

– Imagine se fossem resistentes e fortes... – o mago deu um leve sorriso. – Seus poderes ainda são menores que os meus. Assim que a situação ficou sob controle, tomei a liberdade de desmanchar os elementais.

Valmiro abaixara a cabeça. Sentia-se frustrado por não ter sido absolutamente eficiente.

– Quanto àquela magia que fez uma espécie de buraco no chão, no qual o garranoso sumiu... O que aconteceu a ele?

– Não faço a menor idéia... Não tive a oportunidade de ler o restante...

– É exatamente esse o problema. Jamais faça uma magia se você não a conhece muito bem. Nem todas elas produzem coisas boas. Você precisa conhecê-las e saber dominá-las.

Síva aproximou-se dos dois. Tóro manteve-se na retaguarda.

– Mago... a respeito do Guardião... Meliel contou-me a sua história...

– Que história? Do que ela está falando? – indagava Valmiro.

– Bem... vou tentar resumir. Quando Kira descobriu a amante de Zilon, invocou uma magia oriunda do Mundo das Trevas, uma de suas especializações, e transformou a artesã num ser espectral. Um ser inofensivo, condenado a caminhar por nosso mundo sem poder pertencer a ele. Kerun e Koranus decidiram criar uma passagem e enviar o espectro ao local onde conviveria com outros seres de mesma vibração energética, o Mundo das Trevas.

Valmiro tivera a mesma reação que a caçadora quando ouvira essa história de Meliel.

– ... O... o Guar... o Guardião?! – espantou-se o jovem.

– Ainda não... A artesã foi transformada num espectro, uma criatura natural das Trevas. Os irmãos Pontrofo, ao criarem o Portal de Roncox, apenas fizeram uma passagem deste para o outro mundo. Muitos magos acreditam que eles sabiam como fazer com que a travessia fosse livre de ambos os lados. Não temos certeza disso, pois os irmãos, assustados com a atitude de Kira, queimaram todo e qualquer registro que contivesse informações da magia utilizada contra a artesã, bem como da que criou o Portal. O conhecimento perdeu-se com o tempo. Hoje, ninguém sabe como manipular o Roncox.

– Mas o Guardião sabe!

– Sim, meu filho, ele sabe. De alguma forma, o espectro da artesã ganhou um poder muito especial.

– O poder de abrir o Portal... – concluiu Síva.

– Correto. É aí que o espectro torna-se um demônio. Ele conseguiu reverter a magia dos Pontrofo, permitindo que seres do Mundo das Trevas passassem para o nosso, e não o inverso, como era anteriormente. Zândrus teorizou que, se ele foi capaz de inverter a magia uma vez, então talvez seja capaz de fazê-lo novamente. Se foi o espectro quem transformou o Portal de Roncox numa passagem única das Trevas para Fesgra, então...

– ... Ele sabe como enviar os demônios de volta...!

– Esse foi exatamente o pensamento de Zândrus, meu filho. Por isso, passou a chamar aquele demônio de Guardião, o que guarda a informação, a chave para abrir o Portal e enviar os outros demônios de volta às Trevas.

– Agora lembro... Li algo a respeito no grimoire... Então, não podemos aprisionar o Guardião. Temos de forçá-lo a nos dizer como reverter o Portal!

– Infelizmente, meu filho, não é tão simples assim. Primeiro, o Guardião, apesar de já ter sido um ser de nosso mundo, perdeu a capacidade de comunicar-se como nós. Segundo, tudo isso não passa de uma teoria. Magos à época de Zândrus não lhe deram crédito. Não queriam correr o risco de libertar o Guardião e levá-lo ao Portal para que ele invertesse a magia. Ele poderia, astutamente, trazer algum demônio muito poderoso. Essa foi mais uma das teorias de Zândrus que jamais pôde ser comprovada.

– Acho que li algo sobre um mago que tentou comprovar essa teoria...

– Sim, meu filho, já ouve quem quisesse provar que Zândrus estava certo. A Ordem dos Magos puniu com a morte...

* * * * *

O grupo de Meliel aproximava-se rapidamente do Grande Lago. O sol já havia ultrapassado um pouco o centro do céu.

– Esta será a segunda noite dessa lua. Mais alguns dias e o Guardião poderá libertar o demônio preso no Templo de Koranus, o próximo no caminho. – lamentava-se o mago.

– Vamos parar para beber água. Já não mais suporto meus lábios secos.

– Claro, príncipe, faremos isso. Todos nós estamos precisando de água. – concordou Meliel.

Ao chegarem nas margens do Lago, os humanos desceram dos centauros e se abastaram em suas águas, mergulhando cautelosamente, atentos às serpentes, refrescando-se e limpando-se. O mago apressava os demais, lembrando-lhes da situação de Kalena. Em poucos instantes, retomaram a cavalgada, adentrando no bosque. Não demoraram muito para avistar o Templo de Kira.

– Precisamos estar atentos agora. Não sabemos se Gorak está ou não por aqui. – alertou Roguinil.

– É melhor que vocês sigam a pé, agora. Nós pararemos aqui para colher alguma madeira para fazermos nossas flechas. Os encontraremos no Templo. – informou Raio.

Enquanto os centauros permaneceram no bosque, os humanos seguiram em frente, até alcançarem a escadaria frontal.

– Teremos de passar por tudo outra vez? – lamentava Cogles.

– Não, guerreiro. Dessa vez não há perigo para nos forçar a economizar energia. E somos poucos.

Meliel ergueu os braços e Kalena começou a levitar, ocorrendo o mesmo com os demais. Transpuseram os degraus e chegaram à calçada frente à porta derrubada outrora por Tóro.

– Já não tenho tanta energia como quando era mais jovem. – reclamava o mago, ofegante.

– Está calmo. Parece que nem Gorak nem o Guardião estão por aqui. – observou o kan-potrense.

– Príncipe, estou com poucas forças por agora. Levitar nós quatro me fez desprender mais energia do que eu pensava. Leve Kalena ao terceiro andar. Lá, você encontrará uma porta com o desenho de um círculo. Dentro da sala, há uma larga cama. É o local onde Kira repousou; é onde a força da vida está enraizada. Coloque a princesa nessa cama. Talvez precisemos de umas duas horas.

Roguinil pegou Kalena em seus braços e adentrou o Templo.

– Bom, se Gorak não está por aqui, o chicote também não.

– Mais uma Arma que perdemos...

– Como assim, mago? Isso já aconteceu antes?

– Infelizmente, sim, senhor Cogles. Lembra quando eu falei que alguns guerreiros partiram na missão de caçar o “algo” que estava matando as Criaturas Místicas? Um deles, quando voltou da última vez, estava desfalecendo... não tivemos nenhuma notícia dos outros. Lembra-se que falei isso?

– Claro que sim. Minha memória é fenomenal!

– Os guerreiros estavam com outras Armas, não essas que vocês estão usando. Como eles sumiram, as Armas, então, estão perdidas. A única que conseguimos recuperar foi a espada que Roguinil porta. Lembra do guerreiro que voltou, desfalecendo? Era Mendeluke, o mais fiel de todos e o que Endoro mais depositava confiança. A Arma que usava era a espada que Roguinil agora porta. Foi a única que conseguimos recuperar.

– E vocês não mandaram ninguém atrás dos outros guerreiros, tentar achar as outras Armas?

– Íamos fazer isso, mas a Arca foi roubada e o Guardião... Bem, você já sabe do resto. O fato é que agora são seis Armas de Zilon que estão perdidas, em qualquer parte de Fesgra. Queira o cosmos que não sejam encontradas por pessoas de coração ruim.

– Mago... vocês sempre falam do cosmos. O que é o cosmos?

– É tudo aquilo que está fora de você, senhor Cogles. E tudo o que está dentro...

O guerreiro franziu a testa. Aquelas palavras não lhe esclareceram nada. Ao contrário, o confundiram ainda mais.

– O cosmos é a vida. – continuava Meliel. – Tudo que vemos, sentimos, faz parte do cosmos. Todos nós, todas as criaturas, todas as coisas formam o cosmos. Somos todos fragmentos energéticos de uma grande força maior, o cosmos. Dele viemos, para ele voltaremos. E dele viremos e para ele voltaremos muitas outras vezes, num processo contínuo e sem fim. Isso proporciona que nos tornemos cada vez melhores, mais fortes. E cada fragmento que se torna melhor, torna todo o cosmos melhor. A Grande Energia aumenta, se expande, se aperfeiçoa.

– Isso tudo é muito complicado para mim...

– Não o culpo, senhor Cogles. Geralmente, essa crença da origem das vidas só é pregada no meio dos que estudam magia. Fora desse meio, poucas pessoas compartilham de tal pensamento, buscando outras explicações para o início de tudo.

– Vamos deixar essa explicação para um outro momento. Tenho uma outra curiosidade. Notei que quando vocês fazem magias, seus olhos mudam de cor...

Meliel deu um largo sorriso.

– Isso impressiona bastante as pessoas, até mesmo os iniciantes de magia. Como eu dizia, o cosmos é o início de tudo, assim como é o fim e a sua constante renovação. O cosmos é formado por pura energia. Nós também possuímos essa energia. Aliás, somos um pouco dela. E somos capazes de manipulá-la e de transformá-la. É daí que surge a magia do Cosmos, a qual eu sou um especialista. E dessa magia surgem todas as outras. Cada magia se manifesta em uma determinada coloração, a qual toma conta de nossos olhos quando a estamos invocando. O vermelho representa o Elemento do Fogo; o violeta, o Mundo das Trevas; o azul, o Elemento do Ar. Muitas especializações, cada qual com a sua coloração-símbolo específica, num tom mais claro ou escuro.

– Já vi seus olhos completamente brancos...

– É a cor que simboliza o cosmos. Se tudo se origina do cosmos, se tudo faz parte, se tudo forma o cosmos, então a sua cor também seria aquela que é a mistura de todas as cores, o branco. Há algumas magias que são uma ramificação dessa especialização. São as magias vitais, fundamentais a qualquer feiticeiro. Já te expliquei sobre elas quando estávamos indo à cabana de Volano, lembra-se?

– Sim, eu lembro...

– Essas magias, quando invocadas, deixam nossos olhos incolores.

– É realmente muito estranho o mundo dos magos. Fascinante, mas ainda assim, muito estranho...

* * * * *

O grupo de Volano finalmente completara a travessia. O sol emitia calorosos raios. A fome e a sede há algum tempo perturbavam as mentes de Valmiro e dos centauros, mas Síva e Tóro, exímios caçadores, demonstravam sua resistência.

Há muito menos de uma hora de distância, havia um vilarejo integrante da Federação de Povoados. Como estava no caminho para as Montanhas Geladas, o mago decidiu que passariam por lá para conseguirem água e alimento.

O vilarejo, chamado de Lamária, era constituído de poucas casas, a maioria delas feita de um material que misturava areia, água e gravetos. As maiores moradias apresentavam janelas. As ruas, que não eram muitas, eram de terra, não havendo qualquer calçamento de pedras, como era comum em cidades dilamésias. A única fonte de água era um exaurível rio que nascia na Muralha de Fesgra e passava pela Grande Floresta, alcançando o vilarejo. Ainda assim, não era aconselhável bebê-la.

Apesar do rio e da proximidade da Floresta, as poucas árvores que ali se encontravam estavam secas e mortas, e a terra era um tanto rochosa. Nenhuma plantação foi vista. Síva perguntava se isso se devia ao solo que parecia ruim, mas Volano informou-lhe de leis de Endoro que proibiam qualquer tipo de cultivo nas terras da Federação.

Algumas pessoas estavam do lado de fora de suas casas. Muitas mães carregavam os filhos nos braços. Crianças miúdas, extremamente magras, com cabeças desproporcionais ao restante do corpo. Os adultos também eram miúdos e pareciam temer o grupo que se aproximava.

– Esse é o resultado da autoridade de Endoro sobre os povos das Terras do Norte e Sudeste de Fesgra. Aos dilamésios, glória, riquezas, fartura. Aos demais, fome, miséria, humilhação. – Tóro assumira um tom claramente indignado.

– Vamos acelerar o passo. – ordenou o mago. – Mesmo que encontrássemos algum alimento por aqui... Como poderíamos pedir-lhes o pouco que teriam?

– Um momento. – pediu Síva, descendo do centauro. Aproximou-se de um dos homens do vilarejo. Pegou atrás da sua capa o saco mágico, retirando uma jóia e dando-a ao habitante. – Poderá negociar com algum mercador em troca de comida. – seus olhos começaram a lacrimejar e virou-se de costas, retornando rapidamente ao arcontauro. – Vamos, então.

Volano olhava incrédulo para a caçadora.

– Imagino que tenha sido fruto de um dos seus roubos...

– Sim, foi. Um rico comerciante pediu para que eu roubasse de um outro, e em troca me pagaria um bom valor.

– E agora... você ficará sem pagamento...

– Tudo bem... haverá outros trabalhos.

– E a sua reputação também ficará prejudicada. O que dirá ao seu contratante?

– Não sei. Talvez que a jóia foi transformada em algum outro artefato, perdendo o seu valor...

– Foi muito valorativo o que fez.

– Tudo bem. Mas não conte para mais ninguém! Como você mesmo disse, minha reputação pode ficar prejudicada.

A caçadora adiantou o centauro, afastando-se de Volano.

“Hum... Por isso os degraus de Kira não a afetaram... Talvez aí esteja a explicação de como ela conseguiu superar o encantamento de Meliel. Ela tem um bom coração. Uma ladra, mas com um bom coração”. – refletiu o mago, com um leve sorriso.

* * * * *

Roguinil chegara ao terceiro andar carregando a princesa em seus braços. Um vasto salão, com oito portas. Apesar de ainda ser dia, o ambiente estava um pouco escuro pois não havia janelas.

O kan-potrense colocou Kalena no chão e seguiu para as portas, à procura da que Meliel lhe descrevera. Quando a encontrou, não teve dificuldades para abri-la. Adentrou o recinto e viu a cama. Aproximou-se e bateu nos felpudos lençóis que cobriam a cama, levantando bastante poeira. Numa parede oposta, uma janela. Teve dificuldades para abri-la com as mãos e por isso utilizou a espada. Olhou para fora e apreciou aquela tarde. Pôde ver a escadaria embaixo, mas não viu Meliel ou Cogles. Procurou pelo bosque e também não encontrou. Concluiu que estava do outro lado do Templo. Voltou e pegou a princesa em seus braços, deitando-a na cama.

O braço da dilamésia que estava envenenado começou a desinchar. As placas avermelhadas foram ganhando uma tonalidade rósea. Kalena parou de gemer e de suar. Mais alguns instantes se passaram e começou a tossir. Roguinil segurou-lhe a mão. A jovem abriu os olhos.

– Onde estamos?

– No Templo de Kira. Você foi envenenada por um garranoso. Seu mentor achou melhor trazê-la para cá.

– Onde ele está?

– Lá embaixo, com Cogles. Os demais seguiram rumo às Montanhas Geladas atrás de Dragonesa. Os encontraremos aqui em três dias. É o tempo que a vida se restabelece em você, conforme Meliel disse.

– Muitas coisas têm acontecido nos últimos dias, não é?

– De fato.

– Estou me saindo bem?

– Como? – o príncipe não compreendera a pergunta.

– Você disse que essa não era uma missão para uma mulher como eu...

– Talvez eu tenha de rever meus conceitos. – o kan-potrense exibia um largo sorriso.

– Talvez? – perguntou, com um ar de indignação.

Roguinil achava graça. Com toda aquela graciosidade, mais do que nunca Kalena parecia-lhe uma mulher doce, bela, sensual.

– Essa era a cama de Kira e Zilon? – perguntou a princesa.

– Conforme seu mentor, sim.

– Imagino como ela deve ter se sentindo quando soube da traição do marido...

– Bem... olhando para esse quarto, para essa cama, para você deitada nela... imagino o quanto devem ter se amado aqui...

O kan-potrense parecia olhar dentro dos olhos de Kalena. Sua respiração tornara-se mais acelerada, forte, ofegante. A princesa também olhava atentamente para o guerreiro. Nenhuma palavra mais foi dita. Os dois apenas entregaram-se a um desejo há muito contido.

* * * * *

– Mago, e sobre Gorak, o que sabe a respeito?

– Absolutamente nada, senhor Cogles. Tudo o que sei sobre o Guardião, a Arca, o Portal, os Templos e os demônios é porque sou o Mago-Maior de Dilames. – explicou Meliel. – O Mago-Maior de Dilames tem a função de proteger a Arca, dentre outras coisas. Para isso, tem acesso a alguns escritos antigos que pertencem aos herdeiros do trono. Esses documentos trazem apenas informações superficiais, não se aprofundando em detalhes. Volano é quem sabe muito sobre o assunto.

– Se é ele quem sabe mais, por que ele não é o Mago-Maior?

– Ele bem que tentou, senhor Cogles, mas um tolo invejoso e ressentido trapaceou e conseguiu ser escolhido o Mago-Maior.

– Um instante... não é você o Mago-Maior...? – Cogles interrompeu as palavras, compreendendo afinal o que Meliel revelara.

– São atitudes como essa, meu jovem, que nos tentam a voltar no tempo e corrigir nossos erros...

* * * * *

– Mago, já percorri diversas regiões de Fesgra. Conheço muitos povos, raças, espécies de plantas e animais, criaturas de todos os tipos. Já vi pessoalmente algumas Criaturas Místicas, mas nunca havia ouvido falar sobre Dragonesa. Como ela é?

– Bem, Síva, Dragonesa, como toda e qualquer Criatura Mística, é um ser único.

Tóro aproximou-se rapidamente dos dois.

– Terei de ouvir a conversa de vocês. A única dessas Criaturas que já vi em toda a minha vida foi a carcaça daquela Mantícora na Floresta Petrificada...

– Tentarei simplificar ao máximo a explicação. Tudo começou há centenas de anos. Os povos de Fesgra viviam em euforia, pois um grupo de pessoas descobrira a magia. A energia do cosmos estava agora sintetizada nas mãos dos que sabiam manipulá-la. Foi a Era da Magia. Esses primeiros magos foram chamados de Místicos. Após conseguirem captar a energia cósmica, acreditavam que com ela seriam capazes de fazer qualquer coisa. Foi quando desafiaram a maior de todas as leis do cosmos: a vida.

Síva franzia sua testa. Tóro arregalava os olhos. Até mesmo os centauros pararam para ouvir a explicação do mago.

– Algum de vocês já conseguiu provocar a reprodução de algum ser que não tenha sido pelos meios convencionais? – indagou Volano. Os demais balançaram a cabeça negativamente. – Pois os Místicos conseguiram. Fizeram inúmeras experiências, diversas tentativas, até que, por fim, juntando partes específicas do sangue de determinados seres, criaram a primeira Criatura Mística. “Um ser diferente de todos os outros, mas igual a todos eles”, era como descreviam sua criação. A primeira das Criaturas foi um urso alado. Era um misto do primeiro animal com um falcão. Aliava a força de um e a perspicácia do outro, além da habilidade aérea, é claro. Mas parece que nunca chegou a voar...

O Mestre deu uma pausa. Seus espectadores não emitiam qualquer som. Estavam atentos e ansiosos por mais detalhes.

– Muitos consideraram aqueles seres uma aberração, uma afronta ao cosmos. Mas os Místicos não lhes deram ouvidos e continuaram a produzir mais Criaturas, aperfeiçoando-as cada vez mais. Chegou-se a um ponto onde o conflito entre Místicos e contrários às suas criações ultrapassou a esfera das palavras e ganhou proporções de uma guerra. Os Místicos foram traídos por um dos seus e perderam. Todos os seus registros detalhando o processo de criação das Criaturas Místicas foram destruídos, o que impediu que experiências similares voltassem a ocorrer.

– E quanto às Criaturas? – indagava Síva.

– Antes do início da guerra, Bran, o mais sábio dos Místicos, as enviou ao Reino Celestial para que lá ficassem preservadas. Os Místicos não tiveram a oportunidade de observar e avaliar muitas especificidades de suas criações. Mas as Donzelas Celestiais tiveram.

– Donzelas Celestiais? – espantou-se Valmiro.

– São mulheres que habitam o Reino Celestial. – explicou-lhe Síva.

– É realmente conhecedora de muitas coisas de Fesgra, caçadora. – observou Volano. – Uma das especificidades observadas pelas Donzelas foi a longevidade das Criaturas Místicas. Todas alcançam os cem anos de vida. Antes desse marco, não são capazes de gerar qualquer cria. Após esse período, sem precisar de acasalamento, apenas por espontaneidade, têm um único filhote. Depois disso, raramente vivem mais duas semanas.

– Então... nunca haverá duas Criaturas Místicas iguais ao mesmo tempo.

– Sua conclusão está correta, Andarilho. Ao longo do tempo, e sempre registrando as informações, as Donzelas puderam também constatar que os filhotes gerados sempre são fêmeas. Não existem machos nessa espécie.

– Que horror...! – comentou Síva.

– À época que o Guardião libertou os demônios, as Donzelas também verificaram que os seres das Trevas simplesmente não suportavam a presença das Criaturas Místicas. Não sabiam explicar a razão, pois nada, visivelmente se falando, justificava aquela repulsa. Certa vez, Zândrus estava sendo perseguido justamente por Gorak. Aproximou-se de uma Criatura que estava próximo, buscando proteção. Mas ela acabara de morrer. Ainda assim, Gorak não se aproximou do mago. Zândrus percebeu que o coração da Criatura ainda pulsava, ainda estava quente. Arrancou-o e comprovou sua suspeita, indo de encontro ao demônio, o qual afastava-se. Já lhes disse que seres das Trevas sentem um incontrolável desejo de matar os que se envolvem com magia? Mas Gorak corria de Zândrus! A partir daí, sempre que uma Criatura morria, Zândrus arrancava-lhe o coração e o colocava em um recipiente. Mas havia o problema que os corações murchavam e apodreciam com o tempo. Então o mago desenvolveu um amuleto para conservá-los. – Volano retirou do saco que carregava em sua cintura um pequeno objeto redondo, de um metal negro, preso a uma corrente do mesmo material.

– Com isso os corações não se estragam, suponho...

– Correto, senhor Tóro. Este é o Amuleto do Coração. É claro que não conservam os corações para sempre, mas por um longo tempo. Somente com o coração de uma Criatura Mística é que se pode enfrentar um demônio sem temê-lo. Mas, sem ele...

– Incrível... Justamente quando o Guardião é libertado, “algo”, convenientemente, vem matando as Criaturas Místicas... – observou Tóro.

O grupo olhava para o guerreiro. Ninguém dissera nenhuma palavra, mas a fisionomia de cada um denunciava que também consideravam o fato uma infeliz e estranha coincidência. Os centauros voltaram ao ritmo de antes e rapidamente alcançaram um trecho da Grande Floresta.

– Logo irá escurecer. Podemos fazer o contorno pela Grande Floresta e nos atrasar, ou penetrá-la e chegar às Montanhas Geladas amanhã, no meio do dia.

– Não estou sentindo muita segurança em suas palavras, meu pai. Algum problema em atravessarmos a Grande Floresta?

Volano deu um longo suspiro. Olhava firmemente para Valmiro. Voltou-se para os demais, que aguardavam sua decisão.

– A noite é sempre perigosa, meu filho, não importa onde se esteja. Há certos seres que só se mostram quando o sol se esconde. A Grande Floresta, em toda a sua extensão, é o lar de milhares desses seres. Em outras circunstâncias, decidiria em contornarmos. Mas precisamos ganhar tempo e retornar o mais rápido possível ao Templo de Kira. Teremos de prosseguir por dentro da Floresta.

– E se esperássemos aqui mesmo até o amanhecer?

– Perderíamos tempo, meu filho. Se o caminho que trilharemos é pela Floresta, devemos fazê-lo o quanto antes.

O grupo seguiu adiante. As primeiras árvores não eram muito altas, pouco mais de sete metros, e também não tinham muitos galhos e folhas. O solo era formado por uma terra negra, muitas folhas secas e algumas pedras, de variados tamanhos.

Com poucos minutos de caminhada, encontraram a ossada de um animal silvestre pequeno. Tiraram duas conclusões: ou morrera de fome ou algo maior foi a causa.

* * * * *

O sol começava a suavizar e a beirar o horizonte. Os centauros saíram do bosque e se aproximaram do Templo. Quando um deles ia subindo a escada frontal, Meliel gritou.

– Não! Fique onde está! Sob nenhuma hipótese, coloque suas patas nesses degraus! – voltou-se para Cogles. – Kalena já deve estar bem. Está escurecendo. Há uma vila há pouco mais de uma hora daqui; pertence ao reino de Fidélios. Talvez fosse melhor irmos até lá para passarmos a noite. Retornaremos para cá pela manhã.

– Tudo bem. Vou lá em cima avisá-los.

– Não será necessário, senhor Cogles. – afirmou o kan-potrense, saindo pela porta juntamente com Kalena.

– Minha jovem, estava muito preocupado. – o mago levantou-se e aproximou-se da princesa, abraçando-a. – É realmente maravilhosa essa cama de Kira! Até parece que você rejuvenesceu! Seu semblante está irradiante!

Kalena olhou para Roguinil e sorriu.

– Então, acha que é melhor irmos para essa vila...

– Correto, príncipe. Lá teremos um conforto para passarmos a noite e descansarmos que aqui no Templo não conseguiremos ter. Amanhã cedo, retornamos.

– Mas essa vila não faz mais parte dos domínios de Dilames... – observou Kalena.

– De fato, não. Mas o povo de lá é bastante hospitaleiro. Tenho certeza de que não nos negarão hospedagem. – afirmou seu mentor.

Mais uma vez, Meliel usou telecinese para transportar o grupo até próximo dos centauros, mas contou com a ajuda da princesa agora, o que não lhe exigiu desprender tanta energia.

– Conseguiram fazer as suas flechas?

– Sim, senhor Cogles. Já temos bastante agora.

O grupo circundou o Templo. Pedaços da parede derrubada por Gorak estavam espalhados por diversos lugares. O buraco que ficara na parede parecia menor do que antes, fato observado e comentado por Cogles.

– O Templo é mágico, não se esqueçam disso. Ele se refará dessa ferida, com o tempo. – garantiu Meliel.

O grupo afastou-se do Templo de Kira. O sol atingira o horizonte e tomara uma coloração avermelhada. Uma leve e gélida brisa era sentida. O inverno estava se aproximando. Alguns pontos brilhantes no céu iam surgindo vagarosamente, sempre à medida que a claridade do sol ia desvanecendo.

O caminho para a vila era um campo aberto, com raros declives e algumas espécies vegetais diminutas, o que permitia aos arcontauros correrem numa velocidade incrível. A escuridão finalmente dominara o ambiente e Meliel providenciou uma esfera de luz.

Chegaram a uma pequena colina.

– Do outro lado, encontra-se a vila. Teremos uma tranqüila e repousante noite. Todos nós estamos precisando disso. – afirmou o mago.

– Estou com fome... – garantiu Cogles.

– Mais do que comer, eu quero é banhar-me. – confessava Kalena.

O grupo desceu a colina. As luzes vindas de algumas moradias davam um contorno à vila, que já podia ser avistada àquela distância. À medida que iam se aproximando, estranhavam a ausência de pessoas nas ruas.

– Devem estar todos em suas casas, fazendo uma refeição. – arriscava Meliel.

– Ótimo. Chegamos em um bom momento, então. – alegrou-se Cogles.

* * * * *

Após alguns bons minutos desde que haviam entrado na Grande Floresta, Tóro sentiu a presença de alguma coisa.

– Ouço, bem longe, um estranho barulho, mas não consigo ver nada entre essas árvores.

Volano olhava cuidadosamente em todas as direções. Também não conseguira perceber nada, nem mesmo o estranho barulho dito pelo bárbaro.

– Meu filho, veja se consegue ver algo com a sua visão de águia.

– Tentarei, mas lembre-se que a visão é de águia, e não noturna. A escuridão daqui de dentro é muito mais densa que da Floresta Petrificada...

O jovem bruxo começou a se concentrar. Olhava vagarosamente para trás. Sua testa franziu e os olhos arregalaram. Sua boca abriu-se levemente, como se estivesse espantado com o que avistara.

– Eu vejo... uma grande mancha negra. Está ainda muito longe, mas aproxima-se rapidamente.

– Uma mancha negra? – admirou-se o pai. – Tóro, pode nos dizer como é esse barulho que está ouvindo?

– Está mais próximo. Parece um amontoado de asas que batem freneticamente.

O Mestre dos Magos mexia e espremia os olhos, tentando buscar em sua memória algo que fosse similar àquelas descrições. Seus olhos centraram-se e alargaram-se. Demonstravam espanto, talvez pânico.

– Sugadores noturnos! Corram!!!

Os arcontauros não esperaram maiores explicações. Obedeceram imediatamente à ordem de Volano e iniciaram uma corrida alucinante, desviando-se de árvores e pedras, saltando alguns buracos. O centauro de Síva tropeçou, derrubando-a no chão.

A caçadora ficou agachada, com o escudo de seu bracelete esquerdo armado, em frente ao arcontauro, aguardando que este se levantasse. Seus olhos estavam cerrados, olhando rápida e cuidadosamente em várias direções. Não via nada ainda, mas já conseguia ouvir um barulho. Concordava com Tóro: pareciam asas batendo num ritmo enlouquecido.

– Suba! – falou-lhe o centauro.

Os dois voltaram a correr. O restante do grupo estava mais à frente, aguardando-os.

– Estão muito próximos agora! – alertou Valmiro.

Volano já conseguia visualizar a mancha negra. Fez sinal e Andarilho retomou a corrida.

– O que são esses sugadores noturnos, afinal?

– São seres que só saem à noite, bárbaro. – respondeu o mago. – Atacam qualquer animal em busca de seu sangue.

– Só isso? Vamos parar e enfrentá-los!

– Não seria prudente, senhor Tóro. São muitos e bem grandes... – alertou o Mestre.

A mancha negra aproximava-se numa velocidade superior à dos centauros. Valmiro virou-se para trás e pôde ver um sugador noturno alcançando-o. Era uma criatura de couro negro, de quase um metro de comprimento e asas que alcançavam o dobro em envergadura, com olhos avermelhados e brilhantes, orelhas pontiagudas e compridas, além de presas afiadas.

O arcontauro esforçava-se para aumentar a velocidade. O sugador encostou-se e já ia empreender um ataque, mas Valmiro, com os olhos violetas, repeliu a criatura com um raio de igual cor emitido de sua mão.

Outras feras aladas aproximaram-se; uma delas, de Tóro. O bárbaro prendeu o braço de pedra em sua cintura e segurou a criatura pelo pescoço, apertando-o bem até matá-la. Em seguida, utilizou-a como arma, batendo e repelindo quem se aproximasse.

Volano olhou para trás. A mancha negra ficara bem maior. Eram milhares de sugadores noturnos, que voavam muito mais rápido do que os centauros podiam correr. O mago pediu a Andarilho que reduzisse um pouco a velocidade.

– Você está louco?! – esbravejou o arcontauro. – Não quero que suguem meu sangue até a minha morte!

– Confie em mim! Faça o que eu digo!

Andarilho diminuiu o ritmo. O Mestre levantou-se e tentou se equilibrar. Era difícil devido aos movimentos e ao terreno irregular, mas o mago conseguiu manter-se em pé. Seus olhos estavam tomados pelo azul translúcido. Os outros centauros ultrapassaram Andarilho. A temperatura, que já estava um pouco fria, tornou-se gélida. Fortes ventos tomaram conta do lugar.

Um sugador ficou de frente ao mago, mas uma rajada empurrou a criatura para longe. Os galhos das árvores balançaram e muitos foram arrancados. Uma forte ventania levantou uma nuvem de poeira. Alguns animais silvestres saíam de suas tocas e procuravam um esconderijo mais aquecido. Uma pequena ave começou a bater vagarosamente as suas asas e foi diminuindo até parar por completo, no ar, caindo no chão, completamente envolta numa pelugem branca. Estava congelada. Todo o terreno estava. Diversos sugadores tiveram o mesmo destino, enquanto outros se afastaram, fugindo do frio.

Volano parou com a magia. A temperatura, aos poucos, foi voltando ao normal.

* * * * *

Meliel olhava em volta. As casas, todas simples, de pedra, com telhado de folhas grossas, apresentavam invariavelmente três janelas e uma única porta. As ruas eram calçadas com pequenas pedras. Passaram por um poço. Não havia ninguém nas ruas. Algumas casas, com janelas e portas semi cerradas, deixavam escapar frestas de luz. Algumas outras estavam com a porta escancarada.

O grupo chegou ao que parecia ser o centro da cidade, pois havia um grande espaço que, certamente, servia para uma melhor circulação de pessoas, animais e mercadorias. A situação por ali era a mesma: não havia ninguém.

– O que será que houve por aqui? – Kalena tinha uma voz assustada.

Ouviram um rugido e mais um barulho de algumas coisas caindo no chão. De dentro de uma casa próxima surgiu um homem, ensangüentado, rastejando-se. Olhou para o mago e pediu socorro. De repente, deu um grito de dor e foi arrastado bruscamente para dentro da casa, que estava iluminada.

O grupo pôde ver a sombra de alguma coisa grande que parecia devorar as pernas daquele homem, engolindo-o por inteiro. O ser, parecendo insatisfeito, foi para a porta, indicando que iria sair.

– Vamos nos esconder naquela casa ali. – ordenou Meliel, apontando para uma casa do outro lado.

O grupo correu e adentrou o imóvel, fechando a porta.

– O que é aquilo?

– Também nunca vi, princesa. Mas não parece ser nada bom. – comentou Roguinil.

Ouviram um outro grunhido. Passos aproximavam-se. Mais outro rosnado, e mais outro. Seja lá o que fosse, parecia estar se concentrando frente à casa onde os humanos e arcontauros estavam.

– Parece que agora sabemos o que aconteceu aos habitantes dessa vila... – sugeria Meliel.

De repente, alguma coisa bateu na porta, e bateu forte, quase a derrubando. O corpo de uma criança foi arremessado para o telhado, caindo dentro da casa, deixando um buraco no teto. Kalena deu um grito, horrorizada.

Outra vez algo bateu na porta.

– Estão tentando entrar! Querem o corpo! – concluiu Raio.

– E pra quê o jogaram aqui dentro, então? – irritou-se Cogles.

– Vamos para os quartos! – ordenou Meliel.

O grupo correu para o interior da casa. Os cômodos internos eram pequenos, e por isso os humanos se esconderam em um, fechando a porta, enquanto os centauros foram para outro, que não tinha porta.

Ouviram o estrondo da porta da sala caindo no chão. Alguma coisa adentrara na casa e mastigava o corpo da criança.

Raio olhou para a janela do quarto onde estava. Era de madeira e não cobria completamente o espaço a ela reservado, o que lhe possibilitou ver alguma coisa passando pelo lado de fora. Aproximou-se vagarosamente da janela para ver através das frestas, mas outro centauro começou a gritar. A criatura havia chegado àquele quarto e atacara o arcontauro, arrastando-o para a sala.

Raio e os outros centauros fizeram menção de ir atrás para salvar o companheiro, mas outras duas criaturas adentraram o quarto.

Os humanos ouviram os gritos dos arcontauros e os grunhidos das criaturas.

– Precisamos socorrê-los! – falou Cogles.

Os gritos cessaram. Ouvia-se apenas o som das mandíbulas mastigando.

– Tarde demais... – lamentou Kalena.

– Precisamos fazer algo ou seremos os próximos! – alertava Roguinil.

Meliel aproximou-se da janela e olhou pela fresta. Não via nenhum movimento lá fora.

– Precisamos ser ágeis. Sairemos por essa janela e correremos de volta ao Templo.

– Não conseguiremos...

– Conseguiremos, sim, senhor Cogles! Estão prontos?

O mago deu um sinal para Roguinil e este usou a espada para derrubar a janela. Enquanto ele e a princesa a transpunham, Meliel e Cogles arrastavam um móvel para frente da porta. No exato momento que seguiram para a janela, alguma coisa começou a esmurrar a porta. Os dois saltaram. O caminho estava livre. Correram para uma outra rua da vila, escondendo-se atrás de uma casa.

– Estamos do lado errado. O Templo fica do outro lado. – observou o mago.

– Mas é lá que aquelas coisas estão!

– Correto, senhor Cogles. Teremos de ter mais cuidado ainda. Prontos? Vamos!

O grupo saiu correndo de volta à rua onde estava, escondendo-se atrás de uma casa. Roguinil esgueirou-se pela parede. Lentamente, foi levando sua cabeça para ver adiante. Viu uma das criaturas, de costas. Voltou-se rapidamente para os demais.

– Tem um deles logo aqui...

O príncipe foi interrompido pelo grunhido de uma outra criatura que apareceu por trás do grupo. Não se preocuparam em olhar como era aquele ser, apenas começaram a correr. Várias feras correram atrás, e pareciam ser velozes. Outras surgiram mais adiante, na frente dos humanos. Estavam circundando-os. Fecharam o cerco e avançaram no grupo.

Uma forte luz branca surgiu, arremessando as criaturas para todos os lados. Os humanos estavam cercados por um brilho que emergia das mãos de Meliel. O grupo alcançou a colina e começou a subi-la. O mago desfez a luz e criou uma barreira de fogo, a qual impediu que as criaturas continuassem a perseguí-los.

No topo da colina, com o ambiente iluminado pelas chamas de lume, puderam observar com calma. Cada ser, de três metros de comprimento, tinha uma pele esverdeada com algumas manchas negras. Eram quadrúpedes e tinham garras afiadíssimas, além de uma cauda grossa e curta. Na fronte de sua cabeça, um extenso e curvado chifre.

Cogles contabilizou e, só ali, eram quase duas dezenas dessas criaturas.

– O que são essas coisas? Nunca as tinha visto antes. Pelo menos, não que eu me lembre.

– Também não faço a menor idéia, princesa. Acha que podem ser esses seres o “algo” que vem matando as Criaturas Místicas, mago?

Meliel tinha a respiração acelerada. Estava estirado no chão, cansado. Pensou um pouco na pergunta de Cogles.

– Talvez... É possível... é possível que sim, guerreiro...

* * * * *

Volano estava com a respiração ofegante, mas não parecia estar cansado. Não existia um outro feiticeiro em toda Fesgra tão forte quanto ele no controle do Elemento do Ar. Conseguira que a magia atingisse apenas a área à sua frente, protegendo os demais companheiros de jornada.

– Nunca tinha visto essas coisas antes. Poderiam ser esses sugadores noturnos o que está matando as Criaturas Místicas?

– É uma hipótese improvável, senhor Tóro. – respondeu o mago. – Sugadores noturnos habitam florestas e cavernas. Certas Criaturas Místicas não circulam por esses locais. Teriam os sugadores saído de sua área natural apenas para caçar Criaturas Místicas? Creio que não. Outra coisa é responsável pela morte delas. Certamente, a resposta virá em breve.

Valmiro olhava para uma marca no chão. Parecia que algo deixara um rastro. O bruxo desceu do centauro e seguiu até atrás de uma árvore. O rastro sumira. Olhou em volta e depois para o alto da árvore. Nenhum sinal, de nada. Tudo parecia normal. Retornou ao grupo.

– Precisamos de flechas. Podemos aproveitar a madeira dessas árvores. – informou Justoso.

– Vamos pegar alguns galhos e faremos nossas flechas enquanto cavalgamos. – ordenou Andarilho aos demais arcontauros.

Os humanos desmontaram e observaram os centauros retirando os galhos das árvores. Tóro observava fixamente para a copa justamente da que Valmiro vasculhara momentos antes.

– O que você tanto olha, bárbaro?

– Quieta!

O xetriquênio andou um pouco à frente, como que para olhar melhor. Subitamente, gritou.

– Corram! Corram!!!

Os centauros foram pegos de surpresa. Seres com abundante pêlo negro, do tamanho de Tóro, braços compridos e fortes, de olhos negros e brilhantes e com dentes afiados, seguravam-se com os membros inferiores em galhos, acertando com as patas o rosto dos arcontauros.

– E agora, o que são? – esbravejava Valmiro.

– Corre primeiro e descobre isso depois! – falava Síva, cobrindo-se completamente com a capa, camuflando-se no ambiente.

Tóro, Volano e Valmiro correram. Um pouco mais adiante, olharam para trás. Os centauros não conseguiram livrar-se daquelas feras. As criaturas, que agora eram em maior número, dilaceravam os corpos dos arcontauros apenas com os dentes, comendo sua carne e lambuzando-se com seu sangue.

O jovem bruxo teve um mal estar ao ver aquela cena e vomitou.

– Estão se alimentando. Os centauros devem ser sua presa natural.

Uma das criaturas parou de estraçalhar o corpo de um dos arcontauros e virou-se para os humanos. Começou a ir na sua direção e outras fizeram o mesmo.

– Acho que está enganado, bárbaro... Corram para fora da Floresta!

Os humanos obedeceram ao mago. As criaturas pareciam pesadas com toda aquela pelugem, mas seus longos braços lhes serviam de alavanca quando os firmavam no chão, impulsionando-as para frente, dando pequenos saltos. Uma delas aproximou-se rapidamente do jovem bruxo e já ia acertando-o com o braço, mas um escudo esverdeado surgiu do nada e protegeu o rapaz. Tóro pôde ver que uma outra criatura segurou o escudo e uma terceira parecia segurar firmemente algo no ar.

As árvores estavam diminuindo. Os humanos conseguiram sair da Floresta. A noite estava alta e pouco iluminada pela lua. Afastaram-se o máximo que puderam, parando próximos a uma pequena colina. Todos estavam ofegantes.

– Acho... acho que pegaram... a caçadora... – falava o bárbaro, com a respiração acelerada.

As criaturas começaram a sair da Floresta e foram velozmente em direção ao grupo. Volano começava a deixar seus olhos azulados enquanto Tóro preparava a sua mão. Valmiro também se concentrara e formava pequenas esferas violetas em suas mãos. As feras estavam a poucos metros de distância quando, repentinamente, uma esfera de um verde translúcido surgiu por entre o mago e o guerreiro.

As criaturas, que ficaram com os olhos da mesma cor, pararam. Uma delas rugiu e ameaçou seguir em frente, mas a luz da esfera se intensificou, parecendo controlar a fera.

O Mestre olhou para trás e viu um ser baixo, todo coberto por um manto e um capuz, segurando uma vareta irregular de madeira, com uma curta corrente de metal firmando a esfera esverdeada.

Quanto mais forte a luz verde ficava, mais as criaturas pareciam estar sob controle. De repente, elas se aproximaram lentamente e sentaram no chão, calmamente. O ser encapuzado, ainda mantendo a esfera com um forte brilho, aproximou-se de Volano e retirou o capuz, revelando ao mago um rosto conhecido.

– Thapas...! – alegrou-se o Mestre dos Magos, surpreso.

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Peter Ângelo