FLIN E A CIDADE FLUTUANTE PARTE

Capitulo um –

O badalar do relógio no centro urbano é inconfundível. Além de nortear a hora, quebra um silêncio absurdamente incomodo dentro de nós. E no meu caso, em particular, me cobria de lembranças dos meus mais diversos compromissos.

Meu ceticismo perante aos acontecimentos, era um fator preponderante de sucesso. Sendo jornalista, a imparcialidade sempre fora preponderante no meu empenho. Opinar sobre os acontecimentos, não necessariamente, é se engajar nos fatos com a sua consciência própria. E o que eu fazia para diferenciar minhas reportagens: Me mantinha a distância dos personagens e fazia peculiares registros baseados unicamente nas incidências dos fatos, e me orgulhava desta postura íntegra e profissional.

Mas naquele dia em especial.......

Inconfundível qualquer semelhança com as alamedas surtidas de Hortência coloridas da cidade serrana de Petrópolis na Primavera. O perfume incomum exalava uma harmônica sensação de torpor em meus sentidos, inebriante como um bom cálice de vinho. O som que repercutia atrás dos meus passos naquela noite lembrava muito as gotas serenas do orvalho despejadas nas folhas secas do inverno. Com exatidão eu mantinha a minha caminhada, fixa na sombra dos altos muros da cidade Colonial. Mantinha a cadência de movimento a procura de abrigo, pois a chuva fina já começava a encharcar o casaco de camurça marrom, por sinal, o meu preferido.

O entardecer de uma cidade bucólica era algo meio sinistro. Tudo ficava repentinamente acinzentado, oferecendo um aspecto deprimente ao local. Uma sensação tênue póstuma de que ali já houvera seres vivos.

Minhas pernas estavam cansadas, mas a sensação nítida e inebriante de estar sendo observado e perseguido continuava por todo o percurso. Olhei de sorrateiro por entre as curvas das ruas a procura de alguma pista que justificasse aquela impressão clara de perseguição aguçada pelos meus sentidos. Um aroma forte entorpecia todo local, sentidos apurados pela fome e cansaço do dia. Próximo à casa de Santos D’umont, parei por alguns segundos, recusei-me a me confrontar com aquela busca esquisita e sem qualquer explicação, seria muito assustador para mim este efeito alucinógeno que interferia rotineiramente na vida de todos. Virar-me repentinamente seria tolice, crendice de coisas que eu não acreditava. A busca de alguma coerência para aquela sensação fora em vão, pois não reconhecera nada estranho a minha volta que merecesse atenção. Alguns jovens riam uns dos outros perto da Universidade e pessoas, como eu andavam rapidamente em busca de abrigo.

O badalar do relógio informava com exatidão 21h00 horas.

O vento cortante lançava das árvores as folhas que caíam. Um cântico lamento sobrepôs à alameda, um choro baixinho de bebê com fome adentrou aos meus ouvidos. Olhei ao redor mais uma vez. Estranho e enigmático as gotas da chuva aumentaram e os pequenos telhados não permitiam mais segurança. Corri mais uma vez, agora de encontro com um enorme carvalho, cujas folhas e galhos permitiam que me mantivesse seco. Não percebera, no entanto, que ao tomar esta atitude, a sensação de companhia aumentara. Naquele instante me detive no mais absurdo lampejo do sobrenatural. Alguém me abraçara, envolvendo-me por completo. Braços contornavam o meu corpo, um afago minucioso e lento, dedos apertavam meus braços e senti um suspiro próximo ao meu rosto. Apático aos olhos de outros, me dispus a crer que o dia fora imensamente cansativo e que não passara de uma alucinação. Agarrei-me a fé que nunca tivera. E só quando a chuva se conteve corri o mais longe possível daquele local. A sensação de arrepio ainda percorreu os meus dias por um longo tempo. Jamais comentei este fato com quem quer fosse.

Capitulo 2

De certo, o ambiente hostil daquele lugar era a constatação clara de estar vivo. A imensidão da floresta era tão assustadora quanto o seu enigmático silêncio, e nem mesmo os passos curtos de minha empreitada, minimizavam o incômodo mórbido do meu corpo. Tudo alcançava uma imensidão desproporcional em intensidade e extensão, apesar de que naquele momento, a minha visão turva tornava quase nada visível, mas no meu íntimo, sabia que estava sendo observado, mais uma vez cenas de um passado longículo retornavam com vibrantes alucinações na minha mente. O grito ensurdecedor arrematou para o céu um lampejo de agonia, repercutido por toda floresta. Uma sonora melodia, fina e cautelosa, entremeou-se pelas folhagens num suplico lamento, em cumplicidade, o vento, harmonioso, assobiou um cântico, no arfar das asas simétricas dos pássaros. Princípio, meio e fim, sem origem, ordem ou direção, envolveu toda a atmosfera, enquanto me encontrava estarrecido e desnorteado a procura de salvação.

Meus olhos abertos e atentos ao mesmo tempo a um sinal qualquer de civilidade. O medo absorvido pelo meu corpo exalava um cheiro forte de insegurança. Dizem que os animais pressentem o pavor de suas presas pelo odor. Apesar dos vários acontecimentos dos últimos meses, ainda não me acostumara com aquela devassidão de mundo.

Os lábios ressecados e as mãos trêmulas demonstravam a precariedade do meu estado de saúde, mas a determinação ainda permitia aos movimentos contínua força e coragem. O sangue seco da fronte e a enorme cicatriz da perna era um enorme enigma a ser desvendado. Lampejos de imagens flutuavam pela memória. Ora uma jovem singela de contornos perfeitos. Ora, um jovem de semblante sereno e sorriso cativante arrematavam-se aos meus braços, envolvendo-me. Árvores com galhos pontiagudos e um bicho com enorme boca, constantemente apareciam como um flash de máquina fotográfica.

Perto de qualquer lugar, longe de todas as coisas conhecidas. Fatos que não se encaixavam, como um quebra-cabeça de peças perdidas, em tabuleiros suspensos por pilares invisíveis. Meu nome, este sim era evidentemente claro. Suspirei aliviado com o súbito reconhecimento. As gotas de lágrimas salgadas escorriam pela face enlameada. Não obstante, um barulho acordou meu instinto de sobrevivência. O que seria? Parecia um motor. Um helicóptero. Um avião? Chegara finalmente à salvação. Olhei estarrecido o imenso pássaro de ferro flutuante no límpido ar de Primavera.

__Estou aqui! - acenei com os braços pelo descampado, __Por favor, supliquei quase sem forças __Olhem. Continuei gesticulando.

O helicóptero sobrevoou a área visivelmente a procura de algo ou alguém. Ainda dia, perto da sombria noite que se adiantava. Desespero assolou o corpo sofrido e dilacerou a alma contida. Com um esforço sobre-humano, contorci as pernas bambas e me pus de pé. Meu peso era demasiado para o tronco adormecido pelo cansaço e a dor. Apesar de tudo, a grande ave circulou o ponto, identificando o alvo.

Tombei por um segundo diante da esperança clara da sobrevivência, onde as peças que faltavam em minha memória, distorcida pela fome e amargura da solidão, reinavam tranqüilas em alguma parte de mim. Seria chegada à hora A escuridão se apossou e em frações, tudo ao redor virou cinzas.

Uma pequena luz circundou os meus olhos pelas mãos de um homem que vestia um grande jaleco branco. As pálpebras cansadas abriam e fechavam. As retinas ardiam sob o contato da luz.

__Qual o seu nome? —o médico falou pausadamente, continuando os movimentos com as mãos em pequenos círculos. __Você se lembra do seu nome?

__Meu nome? Pensei por um momento __Sim, eu sabia, mas por um motivo inexplicável, meus lábios não o pronunciaram. E minha imaginação, febre ou lembrança me carregara profundamente para um mundo do qual jamais esqueceria.

Capítulo 3 –.

Escolhi um terno impecável naquela manhã, não só para destituir as rugas da minha aparência, já beirando a meia idade, mas também para disfarçar o meu desequilíbrio interior. Em passos largos pelo aeroporto Santos Dumont do Rio de Janeiro, rumo a São Paulo, para posterior viagem ao coração da selva Amazônica, enfrentava uma contida batalha emocional. Estava ciente do novo rumo de minha vida e procurei investir na aparência a confiança inexistente. Lembrara perfeitamente do ritual. Acordara naquele sábado com uma dor de cabeça insuportável e nem as costumeiras aspirinas fizeram efeito. Percorri as alamedas de Petrópolis usando um leve agasalho. Cidade bucólica serrana, cercada de hortênsias coloridas. O tempo ainda era perfeito naquele lugar. Apesar de a Primavera ter dado os seus últimos suspiros e as folhas verdes agora estarem secas e amortecidas pelo chão, o aspecto agradável persistia. O olhar tênue e brando contrastava nitidamente com o início daquela manhã cinzenta.

O aeroporto fervilhava naquela tarde chuvosa. As lojas e cafés estavam amontoados de pessoas e filas intermináveis para fazer o check inn. Estava atrasado. Olhei para o relógio de pulso, marcava 15h50min. Meu vôo, caso não atrasasse ou fosse cancelado por causa da chuva, aconteceria dentro de meia hora.

Minha lembrança retornara naquela manhã, tantas árvores e o clima frio propiciavam um agradável momento, se não fossem os pensamentos e a constante dor de cabeça. Os cabelos em desalinho e a barba espessa, ainda por fazer ofereciam uma aparência rude, agravada pelos trajes amassados de minha calça amarrotada. Alguns adultos não tiveram infância na sua efetiva legitimidade, ou não puderam usufruir em tempo integral por diferentes motivos ou se recusaram a ter comportamentos infantis por mais que seus pais incentivassem a tê-las. Eu me enquadrara no item final.

Ser criança? Mas qual o objetivo? Qual o propósito de jogar bola, ralar o joelho e machucar as mãos? Sujar a roupa? Puro desperdício. Em dias difíceis ter uma roupa rasgada era prejuízo certo.

Minha mãe, Dona Manuela Freire Antenor era uma mulher encantadora, de família tradicional de classe média, personificava o exemplo de feminilidade e candura. Não compreendia as minhas opções, mas evitava comparações com o meu irmão mais novo, Frederico. Mãe zelosa e compreensiva amava os filhos e os respeitava em decorrências de suas predileções. Meu foco eram os livros, revistas e jornais. Procurava revisar e fazer críticas em tudo que lia. Já Frederico fazia o normal para qualquer criança da sua idade: brincar, brincar e brincar.

Nasci em Campinas, cidade do interior de São Paulo, em um dia atípico ensolarado, na manhã de uma quarta-feira às 09h15min horas de parto normal. Primeiro filho e por muito tempo único de um casal cujo princípio primordial era a tradição da família. E entende-se tradição da família definir carreiras profissionais.

Quando nasci, meu pai definiu toda a trajetória de minha vida. Seria médico ou advogado e estudaria na capital. Ele tinha uma banca de jornal, de onde era tirado todo sustento da família. Mamãe, era dona de casa e nas horas vagas bordadeira de mão cheia, vendia suas obras de arte, como chamava, para a redondeza da cidade, bazares e armarinhos. Papai dizia. __Deixe sua mãe tecer estas coisas, serve como distração. No entanto não levava em conta a renda extra do orçamento familiar.

De acordo com as informações prestadas e previamente definidas, eu cresceria doutor. Com o passar dos anos meu pai se apoderou desta ideia e a oficializou para todos, excluindo qualquer hipótese de desafio. Sempre que podia me chamava de Dr. Benedito Antenor, melhor somente Dr.Antenor. Costumava enrolar as pontas do bigode com este orgulho eminente.

No entanto, já na fase da puberdade, desenvolvi aptidões contrárias à carreira médica. Assim que comecei a esboçar sussurros e posteriormente, escrever palavras, já demonstrava um instinto inato para redações. Mediante este desacato, a relação entre pai e filho ficou complicada. Meu pai decidiu manter-se firme no propósito de formar um médico, investiu massivamente em Frederico, que voluntariamente o correspondia, em troca de favores.

O tempo não volta ou retrocede jamais e infelizmente, arrependimento tinha os dois. Um por se calar quando deveria ter se pronunciado e o outro por falar, quando deveria ter silenciado. Hoje, tinha que reconhecer que a amargura e a culpa pesavam imensamente em minha vida como adulto. Mesmo após tantos anos de trabalho, jamais recebi um elogio. Tornara-me um repórter de renome na capital de São Paulo e a carreira já atingia a aclamada cidade do Rio de janeiro. Minha especialidade era nas coberturas de acontecimentos internacionais, o que me obrigava a viajar constantemente, pelo Brasil e o Mundo, contribuindo para que a distância entre nós ficasse ainda maior.

Esquecer a dor e a decepção nos olhos marejados de meu pai e presenciar o atrito familiar entre mamãe que me defendia, era demasiado doloroso. Ela, cansada, se refugiava no bordado para esquecer a amargura da rejeição. E por anos a fio foi definhando até a morte.

Talvez, só talvez suponha, se tivesse vivido os acontecimentos de cinco anos atrás a tempo de recuperar tanto dissabor, resgataria as palavras não pronunciadas e as alegrias não vividas. Quem sabe então, contribuiria para que ao menos alguém, viesse a deslumbrar toda a imensidão das alegrias e tristezas percorridas durante o meu percurso na Terra Amazônica__ Terra do Sol, e dissipar a dor da desventura com maior carinho, para que enfim, conseguisse reconhecer que às vezes magoamos a quem amamos, não por intenção, mas por omissão de uma palavra.

Quando fiz 12 anos, conheci Adolfo Bezerra, dono da padaria local do bairro, turco baixinho e calado. Arqueava a sobrancelha todas às vezes que eu adentrava ao seu estabelecimento colando em suas pilastras externas a propaganda do jornal do bairro. Eu ganhava R$ 025 centavos por cada tarefa executada, e o direito de interagir no ambiente tipográfico do jornal. Com certeza só pelo segundo motivo eu faria tudo de graça.

__ Bom dia Sr. Adolfo__ nesta edição tem uma folha inteira sobre a sua padaria e os deliciosos bolinhos de canela que ela produz. Tenho certeza que esta propaganda tornará mais popular o seu estabelecimento.

Adolfo era sem dúvida o meu único amigo. Apesar do ar austero de agir ele tinha um coração enorme e bondoso. Sem filhos, de um casamento sólido e estável, sentava no final da tarde na mesa central da padaria para um copo de leite e deliciosos bolinhos de canela. Na maior parte do tempo, falava de sua terra Natal, a Turquia, de sua infância amorosa e de seus descendentes. Mantinha assim uma cumplicidade, na qual desejava ardentemente, ter tido com meu pai. Ele falava, eu escrevia, rabiscava imagens e imaginava o quanto deveria ter sido enriquecedora a sua vida, fantasiava histórias que o próprio turco nem sabia.

__Você deve ao crescer, ir para capital menino Benedito, as faculdades de Jornalismo de peso estão todas lá, fora o poderoso mercado de trabalho, tão escasso aqui em Campinas. Franziu a sobrancelha __Não tema. Estarei sempre aqui se precisar de mim. _disse baixinho.

___ Eu sei Sr. Adolfo, mas meu pai insiste na carreira de médico e já temos uma relação bastante difícil porque não gosto da maioria das coisas que ele gosta. Quase nunca nos falamos, e depois que Frederico nasceu, há quatro anos, a situação ficou muito mais complicada. Até mamãe se distanciou de mim para poder dividir a atenção entre nós. Sou um estranho dentro de minha família. __ abaixou a cabeça amuada.

___Não pense desta forma, seu pai só quer o melhor para você. Frederico é um lindo menino e para o seu pai sua maior esperança, já que você Ben, já tem seu destino escrito nas estrelas. __ Apontou para o céu estrelado.

___Não acredito em destino. Creio que conseguimos fazer e alcançar qualquer coisa única e exclusivamente por nossos próprios méritos. Não sou muito de fantasias. __ disse convicto.

Quanta saudade eu tinha de Adolfo e daquelas horas no final da tarde, onde tudo era perfeito. Nada de amarguras naquele papo diário, nada de cobranças ou brigas desnecessárias. Desejei muitas vezes ser o filho do padeiro. Com o passar do tempo pude perceber que sempre desejamos estar, ser ou fazer coisas que não estão ao nosso alcance.

Adolfo ainda permaneceu vivo até o ano de 2012, mantendo contatos esporádicos comigo entre um aniversário e outro. Era colecionador de todas as minhas reportagens e mamãe quando escrevia, falava da padaria, do local exclusivo de todas as minhas edições. Todos os prêmios alcançados e notícias estavam publicados, na padaria do Adolfo.

Uma das coisas mais intrigantes foi quando lhe informei por carta em 2011 meu objetivo de fazer a reportagem sobre as Seringueiras e o desmatamento da mata Atlântica e de como parecia interessante e oportuno abraçar este documentário. Adolfo na época, não me retornou como de hábito, o que causou estranheza por dias. Quando já não dera mais conta de um retorno, recebi uma ligação no meio da noite.

__Meu jovem Ben, à hora já se adiantou depressa. Preciso lhe dizer algo.

Pisquei os olhos, aturdido. Olhei as horas. 03h10min da manhã.

__Sr. Adolfo? É o senhor?

__ Sim, sei que é tarde, mas preciso lhe informar de um ocorrido. Ou melhor, de algo que ainda está para acontecer. Não parece certo o que vou te dizer nesta hora, mas um dia tudo vai ficar claro e escuro em sua mente, e determinadas coisas vão aparecer. Não se surpreenda com os acontecimentos Ben, faça por merecê-los, pois nem sempre escolhemos, mas somos escolhidos.

___ A ligação está péssima, Sr. Adolfo? Algo lhe preocupa? —Olhou a volta e viu o reflexo cintilante da Lua sobre a janela.

___ Siga o seu coração, na dúvida, siga sempre o seu coração.

Foi o último contato que tive com certo Padeiro. Tentei retornar por diversas vezes a ligação naquele dia e só após o amanhecer, consegui falar com meu irmão, médico da cidade local e tomei conhecimento do falecimento às 04h00min da manhã, do meu querido amigo.

Só depois de algum tempo, as palavras do velho sábio tomariam verdadeiro sentido e eu faria por merecê-las.

Capítulo 4

Sentado em uma poltrona aguardando a chamada do vôo, olhei sorrateiro por cima do iphone, apreciando um jovem casal de namorados a minha frente. Casamento não estava em meus planos presentes e nem sequer inimagináveis do futuro. Não conseguiria desenvolver recursos físicos e emocionais para corresponder à expectativa de uma mulher, muito menos de uma família. Estando constantemente disponível para tantos compromissos, como arranjaria tempo para a vida simplória do dia a dia matrimonial? Decidira não estender relacionamentos e quando algum ficava o mais próximo de um noivado, rompia.

Os vidros estavam molhados pela volumosa quantidade de chuva que jorrava lá fora. Se o voo fosse cancelado seria um desastre, pensei. Alheio ao barulho, por um momento sublime, sentiu-me impregnado por um aroma incomum de jasmim. Olhei mais de uma vez a minha volta, procurando explicação para aquele aroma analgésico e a sensação de êxtase que ele causava.

Não estava acostumado a estar sujeito a ímpetos desconhecidos, pois minha crença, na maioria das vezes, não estava vinculada a uma inteligência superior. Provavelmente cético em relação à vida após a morte, compreendia que fatalmente a minha alma pereceria juntamente com o meu corpo e ponto final.

Levantei-me de ímpeto incomodado com o aroma. Tudo demorava naquele lugar. Uma sensação nítida de que o tempo parava e todas as imagens congeladas me ofereciam repouso. Coloquei o casaco e inesperadamente atravessei a porta principal de vidro, indo de encontro a um pequeno parque do outro lado da rua. Chovia agora mais ameno, contudo grandes gotas escorriam pelos cabelos e rosto, acolhidas pelo casaco marrom, impedindo que invadissem o meu corpo. A minha frente um lindo roseiral e ao lado uma Palmeira com folhas muito grandes e verdes, balançavam em harmonia. O odor ficou mais forte, e me envolveu por completo. Demoraria ainda algum tempo para compreender o efeito deste perfume e a atmosfera enigmática que o acompanhara. Por uns minutos, que pareceram horas, retornei a entrada do aeroporto se dirigindo para a portaria de acesso ao embarque.

Sempre conformado com as dificuldades dos aeroportos, procurei a minha imensa lista de atividades, coisas triviais e outras menos básicas que eu deveria percorrer pelo caminho até o Amazonas. Pouparia tempo mais tarde administrar meus compromissos nesta hora.

A viagem até São Paulo, onde encontraria meus colegas de profissão não era muito longa, mas a próxima até Manaus seria, no mínimo, desgastante. Em virtude do mau tempo alugamos um avião com disponibilidade para o piloto e cinco passageiros, sem atendimento de bordo, como estávamos acostumados.

Sempre em lugares diferentes, dificilmente criava raízes ou amizades duradouras. Casa propriamente dita, no momento não tinha. Ou vivia em apartamentos conjugados com colegas ou em hotéis.

A luz era pouca para a leitura e o infortúnio maior era o da poltrona. A trepidação eminente do segundo voo, não me incomodava, mas uma sensação estranha de medo, sim. Quando estava a uns trinta minutos do Aeroporto Brigadeiro Eduardo Gomes, recebemos uma informação da necessidade de se fazer um pouso emergencial, devido a tempestade. O que obrigou o piloto a alterar a rota. O desânimo se apossou de todos nós já cansados de compromissos passados. Mistura de frustação e decepção por enfrentar mais alguns momentos dentro de um avião. A escuridão lá fora complementava o clima tenso. Era um breu só.

O piloto procurou desconversar para quebrar o pavor de todos ___ Não será desta vez que faremos a farra de sempre ao chegarmos ao aeroporto. Pela hora... Todos irão dormir.

__Por mim tudo bem__falou Paulo Roberto, colega de jornal de anos __, neste momento, o que importa é chegarmos bem a qualquer lugar. Os grandes olhos já estavam marejados de lágrimas

A trepidação aumentou chamando a minha atenção para a asa esquerda do avião. Uma pequena centelha iluminou o meu rosto. Sempre vira esta cena nos filmes, mas constatar esta realidade é apavorante. Você nunca vai estar preparado para isto.

__Vamos descer logo? __ Bruno, outro tripulante do jornal, perguntou visivelmente nervoso.

__Não depende só de mim amigo este neném está enjoado. Pelo menos possuímos bastante combustível. Fiquem tranquilos. O piloto manteve a calma oriunda de anos de treinamento e se concentrou no que estava por vir.

Acho que nem ele mesmo acreditava em suas palavras. No instante seguinte ao seu comentário o avião despressurizou e um forte estrondo na asa, ratificou a eminente queda.

__Meu Deus, vamos morrer! __Bruno segurou fortemente as laterais da poltrona.

As máscaras caíram automaticamente como em um teatro e eu pasmo pelo acontecimento imaginei escutar a voz da aeromoça dizendo. Mantenham-se na poltrona......”

Subitamente agarrei o material da reportagem, abaixando o corpo entre as pernas. Qual a serventia disto tudo naquele momento? A morte se aproximara. Meu último pensamento foi no amigo padeiro, e tudo escureceu definitivamente.

Nitidamente um raio de sol era o maior indício que eu estava vivo, pois não acreditava em Paraíso. De posse apenas das minhas vestimentas, estava a uns 100 metro do avião que caíra, devastando uns bons quilômetros de Terra. A minha frente um dos colegas de profissão jazia inconsciente no chão, uma fina corrente de sangue escorria de sua testa. Aonde poderiam estar os demais? Dentro ou fora do avião?

Um cheiro insuportável de combustível aturdia o pouco de consciência que tinha e minha memória apresentava fagulhas, apenas retratos distorcidos. Um quadro extremamente perigoso para alguém que no momento nada conhecia daquele lugar. Tentei mexer as pernas, mas estas não se moviam e mais atordoado do que nunca, fechei os olhos por um instante único, para me concentrar em alguma possível alternativa. Mas qual.?

Era certo que a esta altura, já teriam sentido falta da tripulação e da rota do avião que não alcançara o seu objetivo de pouso. Viriam nos procurar. Precisava me manter calmo. Queria se aproximar do colega inconsciente, tirar ambos daquele local, pois o cheio da gasolina e as faíscas, centelhas pequenas ao redor, eram de imenso perigo. Onde estaria o restante da tripulação?

Certo era o meu fim, pois não conseguia recompor-me para que pudesse me levantar e arrastar-me dali. Medo, insegurança, frustração. Tantos anos de dedicação para incorrer numa trajetória sem glória. Pensei em meu pai.

Neste exato momento a centelha ficou mais forte e um estrondo percorreu toda a floresta, silenciando até os pássaros. Minha cabeça doía e os olhos ardiam como fogo. Prestes a desmaiar, pisquei várias vezes para recobrar os sentidos, mas a última coisa que vi foi uma silhueta a minha frente e pequenos sussurros.

Capitulo 5

Após uma eternidade de horas acordei em outro local totalmente distinto do acidente, entre folhas verdes que recobriam todo meu corpo. Uma lama esbranquiçada tinha sido inserida nos meus ferimentos e o único barulho que escutava era a correnteza suave de um rio. Estava sozinho? Mas como? De que forma alcançara aquela alameda? Quem tratara dos meus ferimentos? E os outros? Devia ter enlouquecido com a queda e a minha imaginação, sempre atenta aos acontecimentos, fervilhava com a contradição dos fatos. Já escrevera muito sobre as conseqüências pós- trauma, muitas vezes em decorrência de acidentes de avião, como os passageiros necessitavam de um tempo para se acostumarem a realidade. Compreendia que manter a calma era prudente, naquela hora pelo menos.

Se estiver só, estaria sujeito aos perigos da Floresta, animais furiosos e famintos teriam em meu corpo um ótimo banquete. Afastar tais idéias era mais difícil do que reconhecer a fragilidade da situação.

Tentei levantar, mas a idéia não foi das melhores. O meu corpo doía a cada nova tentativa, como se os ossos estivessem sido esmigalhados. Sem nenhum contato com a cidade, como poderia me comunicar para ser encontrado? Ninguém manteria uma busca por tanto tempo, dentro daquela imensa Floresta.

Meus olhos estavam fechados, suor escorria pela face, em pequenos pingos. Novamente franzi a teste e fechei os olhos em busca de consolação. Quando abri, encontrei a minha frente uma imagem estarrecedora.

Flin deu um sorriso cabreiro em reconhecimento. Não estava acostumado a se deparar com um cari (homem branco), para ser sincero, nunca tinha visto um assim tão claramente. E aquele estava bem sujo e machucado. Pegou do dedo indicador e encostou de leve na testa de Benedito, empurrando-o novamente para o encosto de enormes folhas de bananeiras.

__O que ele está fazendo? __pensei__ Acha que eu sou o banquete e quer me curar para poder me escaldar. Tinha conhecimento que algumas tribos tinham o costume, mesmo que antigo, de capturar pessoas e colocá-las em imensos caldeirões no centro da aldeia, extraindo um suco para alimentar as crianças. Imediatamente se imaginou naquele ambiente, cercado de inúmeras crianças famintas esperando o cozimento de suas partes esquartejadas. Delírio, só podia ser isto. Ele não estava ali a sua frente. Piscou de novo. Flin continuava lá, desta vez, sentado em uma pedra a uns 50 metros, articulando nos chãos pequenos gravetos, para fazer uma fogueira.

__Seria melhor não tentar sair deste lugar, a não ser que queira chamar atenção com o barulho dos animais das florestas __ Flin, continuava a mexer na areia do chão até fazer o fogo funcionar. __ Daqui a pouco vai escurecer e precisamos nos aquecer.

__Quem é você? __ O que eu faço aqui? __Onde está o resto das pessoas que estavam comigo? __ Não estava calmo ao fazer tais perguntas o que permitiu uma reação antagônica no semblante do jovem.

__Muitas perguntas para quem se encontra em situação tão difícil__ Seria mais prudente me agradecer, antes de qualquer coisa __ olhou irritado__ fazer tantas e tantas perguntas bla´bla, igual às crianças das tribos.

Tive que reconhecer que o jovem a minha frente estava certo. Tivera uma atitude ríspida e causara uma impressão desagradável ao meu benfeitor. Consciente de que não poderia fugir me detive com mais tranqüilidade a identificar, minuciosamente, conforme atributo de minha profissão, as características marcantes do rapaz.

Flin não se parecia em nada com os jovens brancos da sua idade, independente da condição social ou local. Já tinha viajado diversas vezes e ultrapassado inúmeras fronteiras para obter uma nítida comparação entre eles. Aquele jovem era único. Cabelos cacheados de uma cor castanhos aloirados, onde pequenas mechas se retorciam como tranças, cobrindo o seu rosto. Expressão facial nitidamente forte, quase devastadora. Os olhos tinham enormes cílios negros e o mel de sua retina era enigmático. A pela alva e limpa, não tivera as agonias da espinha na puberdade. Como um jovem de cerca de dezessete anos, sobrevivera naquela precariedade?

As vestimentas não poderiam ser associadas a nenhuma tribo que já tenha visto em livros de história sobre as civilizações indígenas da Amazônica? Uma túnica amassada cobria o dorso até a metade das cochas e um cadarço de couro trançado na altura do peito, permitia o fechamento. As calças largas iam até o tornozelo, de uma cor parda. O que mais surpreendia era que os trajes, apesar de surrados não estavam sujos. Nos pés uma espécie de alpargatas de couro, também amarrado por fortes tiras que percorriam todo o tornozelo. Os braços eram musculosos, como se ele fizesse regulamente exercícios que permitissem este contorno. Logo a imaginação falou mais alta e imaginei o rapaz percorrendo incansavelmente as árvores através de cipós, como se fosse o personagem Tarzan. Tolice é certo. Deveria ser a febre.

Imaginei o quanto estava vulnerável naquela circunstância e resolvi reverter o clima a fim de me favorecer com o relacionamento.

__Meu nome é Benedito, não estou em uma situação favorável. Boa parte das coisas não estão aonde deveriam, inclusive minha memória. Sei que estava em um avião, mas não me recordo com quem e para quê. __suspirou exausto__ Agora , ufa – suspirei _estou aqui, no meio da selva, sem ninguém__apontou para ele__ desculpe-me__ estou com você. Mas devem estar nos procurando. As outras pessoas que estavam no avião...__Flin o interrompeu.

__Morreram, __colocou mais gravetos no fogo, aumentando a chama, __só você sobreviveu à queda do grande pássaro de ferro. Há três dias e noites que está delirando e tendo visões.

Mas se acalme não lhe farei nenhum mal se não tentar me ferir ou aos seres que vivem na floresta. Meu nome é Flin.

Tudo era incomum. Quem deixaria um adolescente sozinho perambular pela aquela imensidão de terra. Onde estariam seus pais? __Estamos muito longe da sua casa? __Gesticulei a fim de poder fazer uma localização mais eficaz. Provavelmente o local deveria ter alguns recursos que possibilitariam um contato com a civilização.

__Não __ Levantou a sobrancelha com um ar maroto.

__ Poderíamos ir em direção a ela ao amanhecer. Acredito estar bem melhor após algumas horas de sono. __ Ele parecia não prestar atenção aos comentários e me irritei com aquele descaso __Está me ouvindo? Consegue entender?

__Sim_ novamente riu de forma marota, erguendo o corpo e recostando em um tronco__acho melhor descansarmos, mais tarde vou caçar uns peixes no rio para comermos.

Mais tarde (...) nada animador seus comentários, naquele momento tudo que eu desejava era o meu restabelecimento para poder ir e vir para onde quisesse.

__Você não é de muita conversa__ olhou direto em seus olhos__ Onde está sua família?

O que Flin entendia por família era totalmente diferente da concepção de Benedito e fazê-lo entender isto seria um pouco difícil, mas ele tentou.

__ Basta você se virar. O povo daqui me chama de caapuã.

Alucinação era isto que estava acontecendo ao meu redor. Aquele rapaz não existia, fruto da minha febre alta. Estava muito e muito doente, sozinho e desamparado, para isto minha mente tinha recriado um ser humano para poder me confortar. Entendi agora a situação do Robson Crusoé na ilha deserta. Imagine ele acreditar que seria possível alguém em sã consciência sobreviver na floresta, quanto mais uma criança. Fecharia os olhos e quando os abrisse aquela imagem surreal desapareceria por completo.

Fiz isto duas vezes seguida, mas o jovem continuava a minha frente com aquele sorriso tolo.

__ Eu teimo até em perguntar, mas se a selva é sua família__ reteve por alguns segundos a respiração__ quem são seus pais?

Esta era uma pergunta intrigante e pela primeira vez Flin reteve os músculos da face em profundo dissabor.

__Muita pergunta para um homem doente __ cruzou os braços e puxou duas grandes folhas de árvore para se aquecer __ Trate de descansar.

Coisas boas precisavam retornar ao lugar de origem e tive que me render ao cansaço. Aos poucos poderíamos manter uma conversa mais esclarecedora. Bastava eu saber que por enquanto me encontrava protegido. Passara anos tomando conta de mim mesmo e me desacostumara ao carinho e afeto de alguém ao meu lado, principalmente de desconhecidos e ainda por cima quase crianças.

Não adiantava lutar contra ou a favor da sorte. Fechei os olhos e dormi.

CAPITULO 6

Ao amanhecer estava sozinho, o que a princípio era desconfortante. No entanto esclarecia boa parte das minhas alucinações do dia anterior. Sentia-me bem melhor. A luz do ambiente era magnífica e o frescor ao meu redor me animava. Um cheiro forte de carne de peixe exalava pelo ar chegando as minhas narinas A fome enorme proporcionava o desejo de que, pelo menos, aquele odor fosse verdadeiro.

Procurei me sentar e erguer o corpo para poder verificar a origem daquela comida. Ainda muito fraco, o esforço me cansara, fazendo que obrigasse a retornar a minha posição original.

Enfraquecido e faminto, meus pensamentos fluíam para o meu desfecho final. Não percebi o retorno de Flin com uma vara pontiaguda e alguns peixes, ainda se debatendo.

__ Bom dia__ Acho que está melhor hoje. Quer comer?

Meu olhar refletia ao mesmo tempo alegria e espanto. O desespero assolara a minha mente. Certo, enlouquecera naquele lugar.

__ Vejo que está mais calmo esta manhã, e ainda por cima calado, bom para sua cura.

Flin abaixou-se e com as mãos pegou um bom pedaço de carne assada de peixe e desfiou de forma que eu pudesse comer. Quando o sabor penetrou em minha boca e o paladar assolou os meus sentidos, tive que reconhecer que tudo era verdade, inclusive o jovem viril na minha frente. Melhor assim, pensei. Pelos menos não estava sozinho.

__Coma devagar, de onde saiu este apetite? __ Flin esfregou as escamas do peixe nas pedras e arrancou as espinhas centrais com um pedaço fino e pontiagudo de cana. __Agora vamos passar estas ervas para melhorar o sabor e salgar um pouco.

O peixe tinha um sabor levemente adocicado, mas estava extremamente saboroso, considerando a forma rústica e precária da sua execução.

__Precisa me dar à receita __ sorri por instantes__ este é o peixe mais rápido e saboroso que já experimentei__ a minha volta ainda seis peixes para serem preparados. Muita comida seria um desperdício.

__Sei que você entende do assunto, mas não acha que tem muita comida aqui para nós dois?

Flin continuou absorvido pelo trabalho e só depois que terminou todo o procedimento de limpeza, é que se dirigiu a Benedito.

__Quem te disse que esta comida será apenas para nós dois? Em instantes teremos mais um convidado. Percebi um ar de zombaria, com certeza ele não procurava facilitar as coisas para diminuir as minhas expectativas. Parecia uma brincadeira ver-me aborrecido.

Deus meu, o que estaria por vir naquela imensidão de mundo __pensei_ Mais um dos seres anormais da natureza? Gostaria de poder guardar boa parte daquilo tudo, pois com certeza, renderia uma boa reportagem.

Nada, absolutamente nada, se igualaria a imagem feminina entre os galhos da frondosa árvore de fronte ao riacho, mesmo distante, todo traçado daquele perfil era majestoso.

A jovem em nada parecia com uma indígena tribal. Se não estivesse tão enfraquecido, acreditaria se tratar de uma ninfa angelical, talvez um anjo. Com certeza, o mais próximo disso.

Meliza continuou nos galhos encurvados, aguardando à hora de se aproximar. Não tinha o hábito de conviver com homens brancos, e até onde sabia nenhum deles, em todo planeta, conseguia enxergá-las. Contudo, pelo visto, este seria o primeiro homem. Se ele era bem querido por Flin, ela aceitaria a convivência pacífica. Não gostava da idéia de ter que se alimentar ao lado de uma espécie tão predadora.

Franzi mais uma vez a testa diante de tanto esplendor. A beleza da jovem não tinha adjetivos, na sociedade, na cidade, onde quer que fosse. Normalmente não me deslumbrava com isto, mas a carência e a fragilidade me obrigavam a pensar o quanto deixara para trás neste mundo, inclusive os sentimentos.

__ Se continuar olhando-a deste jeito, ela não vai se aproximar.

Percebi o papel de bobo e procurei me recompor.

__ Cari, __disse Flin orientando-o __, Não olhe para o obá(rosto). Com a mão apalpou o próprio rosto. Elas não gostam muito de serem encaradas ou tocadas.

Não acreditei que tal imagem pertencesse a um ser vivo. Consciente ou não, a morte teria me tomado à vida e ali seria o paraíso? Os dois seriam anjos. Sim com certeza esta era a explicação.

Por um momento preferi fechar os olhos e enfrentar a realidade. Flin fez um movimento lento, gesticulando os braços, chamando-a para perto deles.

Esguia como uma garça e selvagem como um leopardo, a jovem continuou ressabiada no mesmo lugar, obrigando a aproximação de Flin. Os dois ficaram falando por instantes uma língua desconhecida, mas cujo assunto principal claramente discutido era eu.

Depois de uns minutos que pareciam horas, a jovem se aproximou para comer o peixe.

A pequena mão, com dedos bem finos e longos, saboreava a carne do peixe entre os lábios carnudos em silêncio. A companhia de Benedito não a agradara.

Para dar fim à atmosfera hostil entre ambos, Flin sentou ao lado de Meliza.

__ Como está Torino Nabaco? Ele está ciente da sua ausência e distância?

__Torin é bem sábio. Às vezes estarmos distantes nos aproxima mais. Logo estarei com ele__senti sua falta Flin. __ os olhos verdes escureceram e se tornaram sombrios.

__ Há muito que não ando naquelas terras, mas serei obrigado a retornar para levar o homem branco ao seu destino.

Conversavam entre si sem se importarem com a minha presença.

Um conjunto perfeito de características. Face brilhante, branca, pele alva como a neve, olhos grandes, verde esmeralda cintilante. Não possuía sobrancelhas, a maioria de índias nativas também não. A moldura do rosto encantador e lindo não fazia nenhuma diferença. O nariz pequeno e levemente empinado. Os lábios, estes últimos, rosados, carnudos. Um convite ao sabor de saboreá-los. Na cabeça um lençol de fios negros escorria como rio pelos ombros, costas e cintura, esvoaçantes entre o vento. Uma túnica fina e transparente de várias camadas de um pano indefinido em textura e incomum na cor encobria as curvas delicadas do corpo, até os tornozelos. Pequenas cicatrizes em forma de cruz estavam desenhadas nos pés e uma corda estreita circulava ambos os tornozelos, como algemas. Nada foi tão magnífico quanto esta aproximação em minha vida. Como alguém neste mundo imenso não poderia vê-la? Tão incomum. E qual a relação dela com aquele local e a natureza?

__ Cari- dirigiu-se Flin, tomando-lhe as mãos para ajudá-lo a se levantar. __ Venha, ela não morde, pelo menos não por enquanto. É melhor se fortalecer rápido, pois precisamos retornar ao local sagrado, e acompanhar Meliza no caminho de volta.

O olhar de desaprovação de Meliza para Flin era nítido. Primeiro porque teria que continuar ao lado de Benedito e posteriormente deixar Flin a sós com alguém de quem não confiava. Surpreendia o elo que os unia. Flin não costumava se aproximar de gente branca, muito menos do povo de Ibitinga.

A jovem estremeceu bruscamente a minha frente e com as mãos delgadas e trêmulas sob a cabeça, sentiu um estalar bem forte no coração. Rapidamente seus pensamentos se direcionaram para Torin – Na baco.

Capitulo 7

Não era o excesso de folhas amontoadas nos galhos, ou a possível eminência de uma chuva que incomodava o despertar do gigantesco Torin – na baco, uma enorme sumaúma, mas o tilintar ensudercedor dos machados e serras dos homens que rodeavam toda a floresta, destruindo e decepando tudo ao redor.

Suas raízes apertavam fortemente a terra barrenta, extraindo um forte lamentar. Majestosa, era conhecida pelos povos da floresta, como a árvore da vida, portanto perecer sem lutar não estava em seus planos. Os cortes da serra impregnava o ambiente de um odor de pêssego. Sua opulência de tronco servia de abrigo às pessoas que se perdiam na floresta a procura de abrigo, elas costumavam utilizar este espaço para moradas de pernoites. Aprenderam que nenhum ouriço cairia na cabeça e as grossas sapopemba serviriam como paredes para a subida e descanso.

As próprias Sapopemba também são utilizadas como tambores. Batendo-se nela fortemente, produz-se um ruído ouvido a quilômetros. A seiva desta árvore é utilizada, fartamente, no tratamento de doenças dos olhos e uma espécie de algodão produzida por ela, junto com suas sementes, é fartamente utilizada para a confecção de almofadas no interior do Estado. Sem considerar a sua altura gigantesca, pois é a árvore mais imponente do Amazonas, conseqüentemente, uma das mais belas e vigorantes criaturas da natureza, com um porte nobre e folhagem de uma peculiar verde cana, esplendoroso. Inoportunamente a serra ilegal prejudicava imensamente o meio ambiente. Gerando um desequilíbrio ecológico de todo meio ambiente.

Reinar naquele lugar não seria nenhum problema, pois o majestoso Torin – nabaco era demasiado grande e forte, o que obrigaria aos homens um esforço enorme para derrubá-lo.

Distante, Meliza sentiu seu coração apertar, um som a martelar sua cabeça, constantemente. O elo que os une é impenetrável para o conhecimento humano. Pequenos raios de sol perfilavam entre os galhos pontiagudos e o extenso campo verde, aos poucos, caía em devasta ruína. Um cântico mortuário embalava as árvores contorcidas no chão, ao lado de cada uma delas uma jovem aflita balbuciava em lamúrias o sacrifício.

Torin – Nabaco ansiava os braços amorosos de sua Meliza, mas a distância entre ambos, naquele momento, era enorme. Há muito que a natureza, não se sabe bem os motivos, estabeleceu um elo entre todas as árvores existentes no Mundo e jovens ninfas chamadas de Meliza. Quaisquer que fosse a explicação para sua origem, ao serem germinadas, estabeleciam uma conexão com uma escolhida, cuja companhia se estabeleceria por toda a vida. Caso uma árvore sucumbisse à sorte outra Meliza migraria e vice versa o mesmo aconteceria até o findar de ambas. Quando a natureza não obedecia ao seu curso natural, e árvores eram devastadas em demasia, as Melizas eram transferidas para a cidade e lá, tristes e infelizes, acabavam morrendo.

Um lamento constante entrelaçava esta sorte. Árvores maltratadas por pessoas, feridas que jamais cicatrizariam. Flores, frutos destruídos, galhos cortados, fogo ateado e dor constante. Esta sorte Torin Nabaco jamais desejara para sua Meliza e lutaria até o fim para livrá-la de tal infortúnio. Seus sentidos estavam conectados ao dela.

Distante Melizaa, alertada pelo seu chamado, interrompeu o almoço, nitidamente assustada e inquieta. Com passos rápidos e peito arfando se dirigiu a Flin em súplica.

__Itá, itá- respondia quase sem folêgo. Ao mesmo tempo puxando Flin pela mão.

__Meliza, Cari fraco. Precisamos aguardar! Segurou-a pelos ombros.

__Ore, precisamos ir. Torin nabaco está em perigo.

A menção ao nome da frondosa e majestosa árvore deixou Flin assustado. Perigo para ele era ao mesmo tempo perigo para Meliza. Olhou de soslaio para o homem branco e procurou um tronco forte para fazer um amparo para que pudessem seguir jornada. Abandoná-lo na floresta não seria a melhor decisão.

__Ben, teremos que sair daqui logo. Fatos acontecem e nem sei ao certo o que, mas Torin está chamando Meliza, e. algo de bom não é.

Meliza ajudou a fazer a bengala e apoiou o braço para me ajudar a segurar a madeira. Não podia discutir com Flin naquele instante, mas a ideia de ter a companhia do homem branco ao seu lado não a agradava.

Meliza se lembrava da rejeição de Torin nabaco quando se aproximou dele pela primeira vez, após a reposição da morte de sua antiga Meliza. As folhas a afastavam, e dormiu sob o infortúnio de calor e chuva, nada contribuíam para sua aceitação ao novo ninho.

Torin nabaco, ciente dos pensamentos melancólicos de sua amiga, recuperou as forças, regozijando seus galhos, enfrentando a luta entre serras e machados. De todas as Melizas, a sua era a mais bela e de imensa bravura, jamais o abandonaria aquela sorte. Guerreiras por natureza defendiam suas árvores com sua própria vida, acreditando assim, perpetuarem a espécie.

Meliza apertou os passos confiantes e abriu espaço na mata com as mãos. Logo atrás Flin, me apoiava para que eu pudesse manter a direção.

Medo pairava em meus pensamentos.

__Precisamos alcançá-los, teimo pela vida de Torin Nabuco, sinto sua fraqueza. A aflição da jovem era visivelmente transparente.

O sol descia rapidamente e a escuridão logo os alcançaria. E quando chegassem ao local. O que os esperaria lá? O que faríamos para proteger-nos e ajudar Meliza?

Gotas de suor escorriam pelo belo rosto.

Apalpei o bolso da calça direita e percebi que ainda tinha o canivete, presente de meu amigo padeiro. Naquele lugar, em algum momento teria sua serventia.

Capitulo 8

Nenhuma das verdades poderia ser discutida entre as partes. Sensivelmente cansado Torin – Nabaco parou de lutar, enquanto os homens brancos, também exaustos desistiram de continuar açoitando o tronco gigantesco.

__Nossa que árvore difícil de cortar, logo vai escurecer melhor voltarmos. Já temos o suficiente aqui, para levar.

Mesmo aliviado pela desistência da crueldade, Torin estava bastante mutilado e enfraquecido, e resistir à chuva e ao frio, animais e outros perigos era demasiado desgastante.

Manteve comunicação com Meliza, informando o seu estado e gravidade. Era necessário não perder tempo no meio do percurso e acreditava que a cura para suas feridas seria encontrada na Terra das Icamiabas, com a ajuda do muiraquitã. Não saberia dizer quais perigos eles enfrentariam, contudo, não tinham muito tempo.

Meliza parou abruptamente, sentindo o seu peito doer como uma brasa em fogo. Seus pensamentos tumultuados eram sinônimos que a comunicação entre ambos estava acontecendo e Flin parou para acompanhar o resultado.

O olhar desesperado da jovem demonstrava que o destino de Torin estava obscuro.

__Torin está muito machucado, o homem branco cortou muitas árvores e muitas irmãs estão sofrendo no local. Precisam de nossa ajuda para encontrar a Terra das Icamiabas e conseguirmos trazer uma pedra verde para colocar em seu caule e trazer saúde as suas raízes.

O suspiro de Flin era desanimador. Eu estava desconfiado que o pior ainda estivesse por vir e estar ao lado de ambos era motivo de encrenca na certa.

Meliza impôs passadas largas à frente e se dirigiu para o norte confiante de estar na direção certa de seus instintos.

Flin desejava ardentemente chamar a atenção para o perigo eminente, mas a teimosia sobrepujava qualquer tentativa. Compreendê-la já era difícil, imagine tomar a frente de uma liderança já previamente vencida.

Como de costume entre os povos da floresta o Amazonas estava cercado de inúmeras crendices de mulheres guerreiras, lutadoras, que prevaleceram em determinada terra, permitindo que a natureza orquestrasse portas inatingíveis ao núcleo do clã.

Sabendo da natureza determinada de Meliza e de sua origem, supostamente oriunda das Icamiabas, enfrentar ou contradizer as idéias de uma mulher, não era sábio. Cansado de ser repetitivo, Flin parou próximo a um riacho e colocou Ben sobre uma pedra para se refrescar.

__Estou cansado e gostaria de entender porque você não me escuta ao menos uma vez? Olhe a noite que está vindo Melizaa, adentrar este trecho da floresta é extremamente nocivo a todos.

O rosto então sério abrandou e um sorriso reinou em seus olhos.

__Escute. _ olhe ao menos um instante para mim.

Meliza parou observando-o. Uma energia inexplicável pairou entre ambos. Um silêncio ensurdecedor alcançou a todos os animais da selva. Fingi não notar o elo enigmático que os envolvia e andei em direção ao rio para me molhar.

__Seria bom que os dois chegassem a um consenso antes de entardecer.

__Meliza, estamos próximos do rio Nhamundá, e lá, moram as Icamiabas, mulheres guerreiras e elas possuem suas próprias leis. Sei que precisamos delas, mas temos que ter um plano.

¬¬¬¬¬

¬¬__Flin, precisamos atravessar a Terra das Icamiabas e pegar uma pedra verde, somente

Desta forma poderemos ajudar Torin Nabaco a sobreviver.

__Você já pensou o que elas são capazes de fazer com o homem branco? Não se

Esqueça que ele é Cori. Além do mais, o que te garante que elas permitirão que

Possamos fazer isto? Pegar uma pedra e sair de lá tranquilamente?

Meliza tinha no semblante uma expressão serena em relação às preocupações de Flin.

Apesar de não gostar de Benedito, não seria capaz de entregá-lo a sua própria sorte.

As Icamiabas jamais machucariam uma Meliza ou aos seus protegidos.

Ela se aproximou de Flin tocando sua face com os dedos úmidos.

__ Há coisas desconhecidas para todos nós, inclusive pra você. Precisamos estar atentos

Para qualquer coisa a nossa frente e não podemos nos manter afastados um dos outros.

__Só um instante__flin arqueou a sobrancelha __Não vou dar mais um passo se não me contar o que sabe sobre as Icamiabas e a pedra verde.

__Ih__acho melhor me sentar, pelo visto ainda vamos discutir um bom tempo ate

Chegarmos a uma conclusão.

Se eu não estivesse cansado e faminto estaria me divertindo com a situação.

Dois jovens com a libido a flor da pele medindo forças em prol dos seus talentos

Naturais. Cada um buscando alternativas para encontrar soluções para os problemas que

Já tínhamos, imagine os que estariam por vir?

__Você é teimoso como uma mula e me julga sem nem mesmo acreditar em minha

Palavra. As Icamiabas não farão mal nenhum a nós, não enquanto estivermos juntos.

Meliza virou bruscamente esbarrando as mãos e os braços no dorso do jovem. Em

Uma fração de segundos ele segurou fortemente suas mãos.

__Por quê? __Diga-me, como pode ter tanta certeza?

__Eu tenho, virou-se para frente sentando-se visivelmente cansada.

Seus pensamentos pairavam na certeza de sua compreensão sobre a realidade das

Icamiabas. O que aprendera desde tenra idade. Elas são as mães de todas as Melizas.

Durante anos as Icamiabas viveram sozinhas e ditavam suas próprias leis, por isto foram confundidas pelos homens brancos com Amazonas, mulheres guerreiras. Elas realizavam festas dedicadas à Lua, durante o qual, recebiam os índios da tribo Guacaris, com os quais se acasalavam. Depois mergulhavam no fundo do rio Iaci –Uaruá (Espelho da Lua) e iam buscar a matéria-prima com que moldavam os Muiraquitãs, os quais, ao saírem da água, se endureciam, se transformando em pedras verdes brilhantes, comumente conhecidas no Mundo atual como esmeraldas. Por isto o povo branco invade as terras a procura das esmeraldas e das Minas do Rei Salomão no coração da floresta Amazonas.

Acompanhar uma Meliza não era uma tarefa fácil, Na verdade, acompanhar qualquer mulher já seria um grande sacrifício, imagine acompanhar uma Ninfa da Natureza ecologicamente correta. Se na normalidade uma mulher está sempre certa, o que dizer desta. Me sentia indefeso preso a esta liderança imposta. Olhei para FLin a procura de consolo, mas ele parecia tão irritante quanto.

Um pouco a frente, após uma longa caminhada, a nossa orientadora de rota parou. Ergueu as mãos suavemente no ar como uma prece e o vento retornou acariciando os longos e esvoaçantes negros cabelos.

__Veja Flin –apontou para um local distante uns cem metros, uma Icamiaba trabalha na margem do rio__Os olhos brilharam de alegria__Preciso ir sozinha daqui por diante

Até que enfim eu iria descansar um pouco. Não me agradaria nada estar diante de um grupo de mulheres guerreiras e autoritárias.

Flin a segurou pelo braço temeroso da ida, mas suspirou resignado, pois a decisão já estava tomada.

Meliza se aproximou calmamente do local aonde estava a Icamiaba. A jovem continuou fazendo as tarefas sem demonstrar nenhuma preocupação com a presença da menina da floresta. A Icamiaba tinha cerca de um metro e oitenta de altura, possuía um arco e flecha de madeira adornada com ouro. As pontas das flechas cintilavam ao se mexer. A roupa de couro apresentava desenhos tribais. Tudo era demasiado representativo,

__É muito perigoso continuar o seu caminho __arqueou a sobrancelha a guerreira__ Estas terras são sagradas. Se fosse um homem já estaria morto, mas sendo mulher uma explicação a ajudaria manter-se viva neste momento.

Inesperadamente levantou-se parecendo muito maior do que era, perto da Meliza parecia um gigante. Flin que tudo observava distante, preparou a defesa da amiga e se não fosse Benedito, já estaria diante da Icamiaba com as mãos fechadas em punho.

Benedito o puxou pela camisa.

__ Se aquiete rapaz, este assunto é entre mulheres.

Meliza não poderia entrar em combate, pensou rápido

___Eu sou Meliza, filha da mãe natureza, oriunda da tribo Icamiabas__ suspirou temerosa__ A Lei é única. Qualquer descendente direta das Icamiabas possui o livre caminho nas terras das Pedras Verdes.

___Sendo tão boa conhecedora das leis__zombou a guerreira, bem sabe que é permito entrar, mas nada concede ao invasor a sua saída.

Meliza estava ciente desta verdade, não poderia brincar com a sorte de ter entrado na tribo, pensaria em uma forma de sair. As indagações em sua cabeça eram muitas e não possuía as respostas, mas para salvar Torin Nabacu seria capaz de tudo.

Após instantes que pareciam eternidade, a Icamiaba se moveu, pegou o arco e flecha.

__Preciso leva-la ao conselho das anciãs, desta forma sua história, razão e motivo para ter sido tão corajosa, será avaliada e o seu destino definido.

Venha, a conduziu por gestos para entrar na floresta.

A trilha que fora conduzida era espinhosa e possuía lindas pedras coloridas no chão. De perto, Flin e Benedito a acompanhavam.

O caminho até a Terra das Icamiabas era de extrema beleza. Conforme adentravam na mata as folhas se abriam carinhosamente em reverência. Os galhos das árvores balançavam em contentamento. Circulavam e envolviam o corpo das jovens.e Meliza era surpreendida por pequenos afagos. A Icamiaba não pareceu surpresa com a demonstração de carinho da natureza e sorriu.

Atrás, mas não tão distante, os mesmos galhos que outrora afagavam, se fecharam rapidamente a passagem dos dois homens.

__Com certeza esta é uma discriminação racial da natureza, até aqui passamos por isto? __Flin não entendeu nada__ Se eu tivesse aquele par de olhos, não estaria passando por isto.

Flin pegou de um grande galho robusto e começo a abrir caminho, cortando os galhos finos e pontiagudos. Ele ria muito do meu descontentamento.

Suspirei indignado com o caminho a frente. O meu mundo tal qual o conhecia era repleto de conforto. Nada acontecera no passado que se comparasse a vida da floresta, cercada de mosquitos, bichos estranhos, seres divinos e outro tantos que o homem em sua sã consciência científica jamais dera conta. Poderia ser um bom pós trauma da queda do avião, alucinações de gente a minha frente e meu equilíbrio se restauraria com certeza depois de curado e tratado mentalmente. Ou seria uma reprise do seriado “LOST”, e o mundo no qual eu vivia era uma dimensão paralela espiritual?

Quantos segredos, povos, tribos, seres naturais ou não existiriam naquela imensidão de florestas?

__Livrai minha mente Deus de tanta insanidade.

__Vamos para aqui Cori –Sentou-se em uma grande pedra- Já vai escurecer e Meliza dará notícias.

Não me restava mais nada a não ser obedecer.

Quando entrou na tribo das Icamiabas, Meliza não teve tempo sequer de piscar. A sua volta, contornando-a, centenas de mulheres a rodeavam, buliam em suas roupas e cabelos. Todas possuíam trajes semelhantes e arcos e flechas de diferentes metais, provavelmente uma indicação de hierarquia.

Apesar da altura, possuíam graça e beleza, leveza no andar. Usavam uma carcaça dura na altura do peito, para proteção na guerra. Nos braços e pernas inúmeras tiras circundavam a pele. Vários sinais estavam tatuados nos braços e algumas possuíam no rosto, o que sacramentava o parentesco entre elas. As Icamiabas costumavam marcar seus entes queridos de forma a nunca perdê-los na floresta.

Meliza foi levada a uma grande tenda, onde se encontravam as anciãs da tribo

Elas era portadoras de pele branca, muito clara e sem marcas. Foram mulheres de rara beleza, pois o semblante era delicado e fino. Apenas uma marca em forma de cruz na altura do pescoço sinalizava a realeza e autoridade delas.

Meliza sempre quisera encontrar a sua mãe, mas naquele momento era impossível identificar alguma delas como sendo sua. Todas pareciam entre si.

O silêncio foi interrompido.

__Esperamos que o motivo de sua intromissão em nossas terras seja o suficientemente justo para arriscar tão preciosa vida. Há muitos anos que Melizas não retornam a sua terra de origem.

O conselho estava reunido, como souberam de sua presença? O círculo entre elas determinava a gravidade da situação e o centro com a fumaça era definitivamente um julgamento,

Meliza andou vagarosamente. Manteve-se em silêncio, precisava do muiraquitã.

__Muita coragem para pouca idade – a anciã com uma túnica branca se pronunciou. __Melizas não voltam ao seu local de origem há mais de quinhentos anos. Só um motivo muito importante a traria a este lugar.

__Mas o assunto é importante—interveio Meliza__tem grande valor.

__O valor cabe a nós avaliarmos __ falou a anciã de túnica amarela. Puxou uma bolsa de pedras verdes e brilhosas. Era a muiraquitã.

__Fale, estamos aguardando

As anciãs eram de número de 3. Uma delas ainda não tinha levantado o rosto para me ver e continuava na ponta do círculo. Era como se estivesse aguardando a hora certa para falar.

__Eu...bem...minha árvore se chama Torin na baco e cerca de dois dias os homens brancos o feriram, machucaram muito o seu tronco. Ele está muito fraco e ferido. Precisa da pedra muiraquitã e de seus poderes oriundas das terras das Icamiabas para se curar. Todos sabem do destino das Melizas se suas árvores perecem. Somos obrigadas a migrar para a cidade e fatalmente morreremos de tristeza no caminho.

A anciã de túnica branca gargalhou enfurecida.

__Tola. Com certeza o seu amor cegou a sua consciência. Quais motivos a levam a crer que daremos a pedra sagrada para você? Muitas árvores perecem todos os dias. Muitas Melizas morrem. E outras nascem.

Estava atordoada, pois a minha explicação não era para elas importante. As lágrimas teimavam em cair do meu rosto.

__Porque você seria preferida entre as demais. Porque sua árvore teria a condoslecência do nosso perdão? Nos dê apenas um motivo.

A anciã que se encontrava calada, levantou o rosto e apesar da idade era de uma beleza extraordinária. O semblante calmo permitia acalmar a jovem Meliza estarrecida a sua frente.

__Mate-a____disse a anciã de túnica amarela__É uma afronta ao nosso conselho tal pergunta.

O que oferecer a elas em troca da pedra? O que dizer para convencê-las a entregar a pedra e deixa-la ir em segurança daquele lugar. Como viriam a acreditar que nunca mais retornaria?

Ainda assustada e sendo conduzida pelo instinto da natureza levantou delicadamente o vestido deixando aparecer várias cruzes tatuadas nos singelos pés. Nunca compreendera aqueles sinais, mas sentia lá no fundo que era uma proteção a favor dela e não contra ela. Torin na baco sempre dissera que sua Meliza era inconfundível e brincava inúmeras vezes que se um dia a perdesse a encontraria pelas cruzes.

O silêncio reinou entre elas. O semblante calmo da anciã tornou-se sóbrio e tristonho. Sentiu um grande arrepio e teve a certeza absoluta que a atitude não tinha sido a mais certa e precisava se afastar urgente daquele lugar.

Antes de tomar qualquer gesto, a anciã da ponta pegou da pedra e estendeu para Meliza.

__Vá e não volte nunca mais a este lugar.

Retornar para Torin na baco triunfante era tudo o que Meliza mais desejava, contudo naquele momento restava uma indagação?

“Porque elas simplesmente lhe entregaram o muiraquitã.

Capitulo 9

Vários pensamentos passavam pela mente. O resíduo do pensamento estava enterrado no seu subconsciente. Sair ilesa daquele lugar era muito mais do que esperava naquela circunstância tão perigosa.

Já distante da aldeia e atravessando as margens do rio, vistoriou o lugar em busca de pegadas ou qualquer sinal que indicasse a presença de seus amigos.

Perto dali, não muito distante, Flin andava de um lado para outro à espera de sua chegada. Estávamos sentados no meio do nado em cima de um grande pedregulho há horas. Se não fosse a minha grande paciência e tato, o jovem já teria se embreado na selva a procura da garota faz tempo e provavelmente não retornaria com vida daquele lugar.

__Pare com isto __gesticulei para ele se sentar__está me deixando louco com este vai e veem há horas. Acontecimentos ruins são rápidos de informação.

Um instante precioso e mais nada foi o suficiente para dar fim aquela agonia. Por entre as folhagens verde, Meliza apareceu esplendorosa como sempre. O impulso e a satisfação de vê-la são e salvo foi o que bastava para Flin saltar e pular com os braços abertos, envolvendo o corpo pequeno e delicado de tão formosa moça. Dando-se conta de sua precipitação a largou abruptamente, desconversando o impulso caloroso. Melisza arqueou a sobrancelha, levemente constrangida.

__Tenho muitas perguntas, mas por ora retornemos o mais rápido para ajuda Torin- na baco.

Como era de se esperara o retorno é sempre mais fácil que a ida e durante todo o percurso de volta, milagrosamente obtivemos o que por natural não há na sociedade moderna, o silêncio de uma mulher. Introspectiva por natureza, Meliza não era de muita conversa e a minha presença ao lado do jovem Flin, não contribuía em nada para minimizar o clima de desconforto dela. Se fosse em outra ocasião, talvez eu fizesse algumas perguntas, mas por um motivo qualquer, eu estava satisfeito, por ora, com aquele momento de paz e tranquilidade.

Quando chegamos ao local onde Torin – na baco se encontrava, Meliza ficou estarrecida com o quadro deplorável de todas as árvores cortadas naquela imensidão de espaço. Um massacre visivelmente reincido pelo homem e habitualmente sofrido pelos seres da floresta. Sem protelar mais, imediatamente colocou a pedra verde sob as raízes da gigantesca árvore e se distanciou um pouco para pronunciar algumas palavras.

A jovem gesticulou fazendo uma grande roda na terra com a utilização de um graveto, e pequenos símbolos foram desenhados. Curiosamente olhei cada um deles em busca de conhecimento e respostas. As gravuras representavam figuras geométricas entrelaçadas umas nas outras. A face da jovem estava marejada de lágrimas pela agonia do resultado.

___Continuando firme em seu idioleto estranho:

___ Orcá in oberó , no matte, vibi no mai. Orcá in oberó no matte, vibi no mais ,.....

, verificamos que as cores do tronco da árvore se modificava, e um verde cintilante e brilhoso percorreu todo galho, folhas, reluzindo e ofuscando a nossa visão.

Lembrava muito as grandes árvores de Natal, com suas luzes coloridas. Há quanto tempo não tinha um Natal, pensei, em família. Um súbito pensamento afortunado pela lembrança.

Momentaneamente após este acontecimento as luzes cessaram. A jovem então submersa em sua prece, aguardou ansiosa o resultado.

Torin- na baco espreguiçou, se pudermos considerar esta possibilidade em um ser inanimado. Relaxou os imensos e pontiagudos galhos e os estendeu delicadamente até a presença da menina, envolvendo-a e puxando-a para si. Reconhecer este acontecimento como um fato para mim era absurdamente complicado, mas como tudo naquele local era complicado, passei de incrédulo e cético em relação aquele mundo, para alguém crente de que tudo era provável, até uma árvore possuir sentimentos.

Bem, de posse destas e de outras informações montamos um pequeno e aconchegante acampamento e nos reconfortamos.

Ao amanhecer, um lindo dia sinalizou uma esperança velada de horas melhores. Eu continuava submerso no esquecimento e o maior infortúnio era poder separar fantasia, alucinação da realidade.

Meliza sinalizou para Flin que iria em busca de cerejas silvestres para a alimentação e ele se dispôs a ajuda-la, mas foi impedido.

__Descanse, vocês já fizeram o bastante. Logo, logo eu retorno. Prometo não demorar.

Imaginei desde quando uma mulher vai as compras sem demorar, mas parece que qualquer questionamento não iria ajudar. Flin se recostou em um monte folhas e fechou os olhos. Fiz o mesmo.

Até que não era tão horrível esquecer de tudo por algumas horas e viver aquele momento sublime. Quem nunca esquecera a realidade para viver em uma vida e mundo paralelo, recriando valores e desejos próprios? O jovem faz isto a todo instante, ele é com certeza o melhor e maior reciclador da Terra.

Suspirei tão tranquilo com todo sossego a nossa volta, que não percebi que o tempo invadiu o entardecer e nada de Meliza retornar.... Flin, dormia em sono profundo.

Só me dei conta de que algo estranho se sucedera quando a grande árvore, se contorceu, empurrando a mim e acordando Flin de um sobressalto.

Ele pulou o mais rápido possível entrando na mata, após escutar um estrondo e horripilante grito. A única atitude compreensível da minha parte, foi aguardar as respostas, que não demoraram a acontecer.

Flin retornou suado e apreensivo. Os joelhos jogados no chão e as mãos firmes no rosto.

___Sinto muito Torin…o Mapinguari pegou sua Meliza.

Creio que não estava preparado para o atual acontecimento, pois as raízes gigantes presas profundamente no chão se ergueram, como cordas no ar e retornaram para o mesmo lugar levantando uma enorme poeira. Entendi que esta era a forma de Torin demonstrar sua imensa insatisfação a respeito do fato de que sua Meliza corria grande perigo.

Capitulo 10

Sonolento, mas na espreita, o velho Mapinguari não tirava o olho de Meliza a sua frente. Apesar de amarrada a uma extensa e grossa corda, captura-la já lhe fora muito difícil, mantê-la em cativeiro e quieta era outra árdua tarefa a executar.

A natureza rebelde de sua presa o mantinha em alerta. Quando menos esperava a jovem se remexia de um lado a outro, tomando obrigatório que o animal se mantivesse acordado. Impossível qualquer repouso. O que diria sua rainha se a presa fugisse daquele lugar. Ela tinha sido bastante clara em suas observações:__ Pegue a preferida, a Meliza de Tori na baco, .......não a machuque e nem a deixe escapar, pois pagará com sua vida se algo acontecer com ela.

Ser desleal a Califas era algo imperdoável e ele não queria passar por este contratempo tão perigoso.

Meliza ciente do incomodo que lhe causava, continuou a se mexer e repuxar a corda, perturbando o sono do imenso bicho.

__Você não vai dormir, nem um instante se quer __falou em voz alta__ou me deixa ir ou vai enlouquecer comigo.

Olhou mais uma vez para o Mapinguari fedorento e repugnante. O seu aspecto tinha algumas semelhanças com os seres humanos. O corpo ereto, coberto por um espesso pelo parecia como dos gorilas. Na testa apenas um enorme olho coral. Sua boca era simplesmente descomunal, tão grande que não terminava no queixo, mas na barriga. Na parte frontal do peito e costas possuía uma espécie de armadura revestida de couro, igual à dos jacarés. Peculiar o seu dorso com vários espinhos coloridos. Facilmente se reconhecia o Mapinguari na floresta através do seu urro ensurdecedor e pela quebra dos arbustos e mato pisoteado por enormes pés de três pontiagudas unhas.

Animais estranhos e solitários nunca andam em bando. Sua maior diversão seria devorar cabeças, saboreando suas presas com cruel e meticulosa precisão Sua inteligência limitada o tornava presa fácil para a ardilosa Califas. Sua servidão fazia dele um animal de grande serventia aos desejos insanos de tão maquiavélica mulher.

Para o Mapinguari brincar com a sorte era manter viva e a salvo a Meliza do forte Torin- na baco. No entanto, até ele tinha receio de incomodar os seres da floresta.

Melizaa suspirou magoada. Ansiava pela liberdade e pela diminuição de sua teimosia, pois acabara sendo presa por não ter permitido ser acompanhada para pegar cerejas silvestres na floresta. Desejava que Torin- na baco tivesse se restabelecido plenamente.

Ciente do fato de que aquele animal repugnante se alimentava de suas irmãs, aguardava o fim próximo. Mantê-la em cativeiro era um fato a se pensar. Normalmente Melizas eram mortas e devoradas no instante da sua captura. Qual seria o plano deste animal?

Se pudesse voltar atrás, não seria teimosa. A vida é assim, desejamos a todo instante desfazer nossas atitudes precipitadas, mas sem esquecermos que a maioria delas é causada unicamente por nós.

Faminta, olhou a sua volta à procura de comida. O cheiro insuportável de mofo e palha molhada contribuía para o constante enjoo. O bicho, cansado, abria e fechava o grande e asqueroso olho.

Imediatamente lhe veio à mente a canção que aprendera com a Mãe d’água. Costume entre sua tribo, cantarolar era uma espécie de prece.

__Dorme, dorme ser pequenino, cheio de graça e esplendor. Luz divina, brilhante, segue constante a nossa voz. Vem, mãe natureza, digna, perfeita, nos abençoar. Trás paz, alegria, relva macia de nosso Pai. (,) __Meliza repete várias vezes a musica. O Mapinguari se acomodou de vez perto de um monte de feno molhado e chegou a espreguiçar. Sonolento

Pegadas percorriam toda a margem do rio, levando todos a acreditar que a Cidade flutuante não estava longe dali. De fato as coisas não acontecem por acaso. Nenhum elo presente, oriundo ou não de uma ação, está ao acaso neste mundo, sem a conivência de uma grandeza maior. Todos os fatos isolados ou não, se cruzam na linha do tempo e apesar de qualquer interferência em prol de alterá-lo, cedo ou tarde, acontecem. Não temos como impedir a correnteza de seguir o seu curso, mas podemos ir a favor ou contra a sua poderosa força, facilitando ou dificultando o percurso. Os últimos e estranhos acontecimentos não poderiam explicar todas as atitudes eventualmente tomadas por mim, e muito menos amenizar os sentimentos confusos, turbilhões de interrogativas que minha mente registrava ao longo da floresta. Fingir não entender não era solução para reduzir o risco, mas a lógica persistia na inevitável busca de compreensão.

Os olhos amendoados de Flin, marejados de lágrimas diante da devassidão dos riscos, demonstravam claramente o receio da perda. Nenhum sentimento estava completamente definido. A natureza demonstrava claramente a sua reciclagem, e adequação, mas a destruição advinda das maldades de Califas se estendia a terras virgens e imaculadas dos Aventes. E a presença maligna, jamais vivenciada por tais criaturas, era de sua responsabilidade. A ira que brotou em seu coração contrariava a natureza pueril. Encontrar a cidade flutuante antes da aurora, este sim, um objetivo bastante perigoso e difícil. De longe a rainha observava cada milímetro da pele suada e suja pela lama do rio e as veias alteradas pela ansiedade do conflito final. Tê-lo ao seu lado era um prêmio mais do que razoável, favorecê-lo ao seu encontro, com certeza um risco. Contudo desfrutar dos prazeres daquele corpo, uma excelente recompensa para tantos anos de solidão.

Eu estava perplexo ao me deparar com o aspecto irreconhecível de Flin, procurei encharcar no rio um pano para oferecer como alívio pela perda sofrida. Os cabelos em completo desalinho grudavam no rosto marcado por farpas de gravetos secos, que obrigara abrir caminho, no desespero confuso de encontrá-la. O mais natural seria um banho completo naquele lugar. Mergulhar o corpo e alma, refrescar não somente o dorso, mas a mente.

Flin reconheceu no semblante pálido de Benedito a preocupação com o seu estado físico e mental. Calmamente retirou as cordas em volta dos ombros e disponibilizou nas pedras o arco e flecha, que conseguira de presente de Meliza quando adentrara o reino das Icamiabas. As vestimentas escorregaram pela pele amortecida e o físico do jovem apareceu em todo seu esplendor. Com passos calmos e lentos entrou no rio, até que a água alcançou o seu pescoço. Alívio percorreu cada pedacinho do corpo e os olhos, até então abertos, se fecharam por encanto. Um murmúrio na água fez com que, vagarosamente, poças se formassem ao seu redor, como em um roda-moinho. Levantei-me da pedra onde estava encostado e fiquei mirando as ondulações da água em busca de alguma alternativa, caso persistisse os movimentos. Flin parecia absolutamente adormecido. Nada era mais confuso para um descrente do que ser testemunha ocular de evento sem explicação alguma. Á água cristalina foi tomando forma de mãos, que abraçaram o jovem em plena harmonia. As folhagens trepidavam nos galhos pontiagudos e a luz rasgando o ar, perfurou a mais tenra raiz das ervas flutuantes. Grandes correntes de folhas e flores surgiram abruptamente e adornaram a face ferida, cobrindo-a, apoderando-se de todo o rosto. Confuso, retirei rapidamente os sapatos já me preparando para mergulhar na imensidão das águas. Parei incrédulo. As ervas e folhas acarinhavam suavemente o corpo jovem, afundando-o. Instantes que pareceram horas, ele submergiu. Imponente em sua busca incessante de poder, Califas absorta em seus pensamentos não se dispôs a intervir na cura do jovem Flin, apesar de sentir-se incomodada com tamanha força atribuída a ele pela mãe Natureza. Seus olhos pairavam avidamente no seio suave da face, coroada de pétalas brancas. As suaves madeixas ladas escorriam como fios dourados pelas mãos carinhosas da cristalina água. Os lábios marcados, agora, avermelhados, cobiçados por outros lábios à distância. Imaginação pairava em sua mente, e a gula aumentava o seu apetite. Jamais abriria mão de possuí-lo, como serviçal ou como preferido.

Impossível relatar os acontecimentos sem que estivesse embriagado. O belo rosto retornou ao seu estado original. Braços, pernas e demais áreas feridas, cicatrizaram.

Meu coração pairou tranqüilo. Peguei-o pelos braços e agradeci a sua vida a Deus. Há muito que não tomava conhecimento da sua existência, mas só um ser supremo e amoroso conceberia tamanha graça. Eu me apegara aquele garoto e não tê-lo ao meu lado seria demasiado desastroso para minha vida. Gotas de lágrimas escorreram pelos meus olhos. Depositei-o com calma na relva verde e macia a margem do rio. Aguardei um instante para ver o seu despertar.

Os olhos amendoados se abriram e um belo sorriso acompanhou todo o seu rosto. Levantou-se sem preocupar-se com o estado natural em que estava. Foi de encontro as vestimentas que não faziam parte do milagre natural e continuavam sujas.

. __Uma pena não ter lavanderias neste lugar. _ Fiz um comentário irônico na certeza de não ser compreendido.

__ Depois você me explica o que quis dizer com isso A hora já tarda e precisamos encontrar o Anhangá. Somente ele poderá em curto prazo nos orientar quanto à localização da Cidade Flutuante. È importante encontrarmos Melissa e impedir que Cakifas invada a mata e as terras das tribos dos homens pintados.

Muitos planos envolviam o percurso da Cidade Flutuante, mas Califas já tinha dominado terras o suficiente para se interessar por aquela, dos homens pintados. Neste momento esta suposta guerrilha seria a isca perfeita para atrair a sua presa. Sem interesse no homem branco, iria descartá-lo simplesmente como um verme ou escravizá-lo até a morte. Contudo, achava incompreensível da parte do jovem Guariné, proteger um elemento de conduta tão permissiva e destrutiva a natureza.

Capitulo.

Eu já escutara falar do Anhangá, afinal de contas, eu era um repórter e escutara todo tipo de baboseira possível. Mas quando Flin se aproximou e disse:__Vamos procurar o Anhangá, eu surtei. Segundo a lenda o Anhangá é um espírito que vive na floresta e toma a forma do que quiser. Pode ser boi, peixe, pessoa ou macaco, o mais comum é sua aparição na forma de um veado branco com olhos de fogo. Imagine, depois de tudo que eu passara dar de cara com um bicho deste?

Até onde eu sabia os registros de sua presença aparecem nas cartas de José de Anchieta, Manuel da Nóbrega e Fernão Cardim no século XVI. Infelizmente eles discordavam de Flin e seus relatos o representam como um espírito malévolo, temido pelos povos indígenas. Outros relatos, como o do alemão Hans Staden, enaltecem o medo dos indígenas de sair à noite. Muito contraditório, haja vista que para alguns indígenas, Anhangá é considerado o deus da caça e do campo. Ele protege os animais contra caçadores. Já para os jesuítas que chegaram aqui no Brasil, Anhangá era considerada uma figura maligna, comparado ao demônio da teologia cristã. Até inspiração para nome de rio o Anhangá originou. Inicialmente conhecido como Rio das Almas, o rio Anhangabaú era muito temido pelos indígenas da região. Os índios acreditavam que suas águas traziam doenças ao corpo e ao espírito. Essa crença leva a suspeita de que suas águas não eram potáveis. E era este ser que eu iria encontrar. Mas esta é uma outra história e me levantei junto ao jovem Flin para mais um imenso e cansativo percurso: Encontrar a cidade Flutuante.

brisse
Enviado por brisse em 30/09/2021
Código do texto: T7353612
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