A Arca de Zândrus - Vol. 1 - O Guardião - Capítulo 11

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Capítulo 11

A RAINHA DOS DRAGÕES

Uma fresta de luz incomodava os cansados olhos de Volano. Relutava em acordar. Estava exausto, pois não havia descansado absolutamente nada na noite anterior, quando encontrara seu velho amigo Thapas.

Tentava reunir forças para despertar, mas inúmeras imagens de sua cabana vinham à sua mente. Imaginava-se deitado em sua confortável e aquecida cama, sem nenhum compromisso urgente, apenas o de dar continuidade ao aprendizado de seu filho. Levantaria, colocaria um pouco de água numa jarra de barro, aqueceria e prepararia um chá, que tomaria enquanto comesse alguns biscoitos com mel.

Depois disso, sairia da cabana para ver o sol, sentindo seus raios penetrando em seu corpo, alimentando-o, renergizando-o. Faria um alongamento, preparando os velhos ossos para a leve caminhada que fazia toda manhã em torno do perímetro que protegia sua casa. Colheria algumas hortaliças e conversaria com as plantas e aves próximas. Iria até o quarto do filho e o acordaria com um suave cantarolar, abrindo as cortinas e deixando o brilho do sol adentrar. Assim, estariam prontos para mais um dia calmo, sereno, seguro, tranqüilo e previsível, como todos os dias o foram nos últimos anos.

Vagarosamente, abriu os olhos. Olhou à sua volta, com a visão ainda meio turva. Os elementais que criara cavaram um túnel que os levou até a superfície da montanha. Restava ainda uma fina camada de rocha para transpor. Alguns poucos buracos nela permitiam a entrada dos raios do sol. Aos poucos, o mago foi lembrando-se: estava muito cansado, faltava pouco para que seus elementais concluíssem a tarefa, e seu filho adormecera. Resolveu desfazer a magia e entregar-se também ao sono.

Não sabia quanto tempo havia passado. Podia ainda ser só o início da manhã, ou talvez o da tarde. Combinara com Meliel que amanhã se encontrariam no Templo de Kira. Aquela seria a quarta noite de lua crescente. Dentro de quatro crepúsculos, o Guardião estaria apto para libertar Bardik, o demônio aprisionado no Templo de Koranus, o Templo de Água.

O mago levantou-se e aproximou-se de Valmiro. Contemplou-o. Como eram fisicamente parecidos! Lembrou-se do momento de seu nascimento, quando o segurou pela primeira vez. Lauane ajudara Zadhima nessa ocasião, que levou horas para ter um desfecho. Os lençóis ficaram bastante ensangüentados e a princesa das Donzelas Celestiais estava com uma expressão de que tinham lhe tirado toda a energia. Era dia, uma manhã chuvosa, com muitos raios e trovões. Por várias vezes, Volano temeu estar amaldiçoado, pois Lauane a todo instante dizia que nunca vira tanta dificuldade para uma criança nascer. Era acostumada a ajudar outras Donzelas nessa situação e, freqüentemente, dizia para Zadhima que seria um momento fácil, que não levaria nem meia hora. Mas começara ainda durante a noite e só foi concluir na manhã seguinte.

Dezenove anos se passaram. O Mestre dos Magos ainda tinha vontade de carregar seu filho, como se fosse um pequeno e desprotegido bebê. Mas a realidade é que aquela criança crescera. Dera-lhe orgulho e alegria inúmeras vezes.

Fez um afago na testa do rapaz e começou a cantarolar baixinho. Aos poucos, o jovem bruxo foi despertando. Seu semblante era de uma pessoa tranqüila, alheia aos problemas do mundo. Parecia sentir-se seguro, protegido. Na verdade, seu pai fazia-o sentir-se assim.

– Temos de continuar... – disse-lhe Volano, com uma voz serena e um largo sorriso. – Precisamos sair daqui e procurar Dragonesa.

Os olhos do jovem murcharam. Olhou em volta. Parecia que estava em um sonho, em um bom sonho, em um paraíso talvez, e aquelas palavras do pai haviam arrancado-lhe de lá, bruscamente. Levantou e se espreguiçou.

O mago pegou o cajado e emitiu um raio violeta, desobstruindo a passagem. Uma forte luz iluminou o buraco onde estavam. Era o sol. Mas não se sentiam aquecidos. O frio era muito forte e o vento, bastante agressivo, trazia flocos de neve. Nunca o céu parecera estar tão próximo. Dava-se a impressão de poder tocar as nuvens.

Ouviram um ruído vindo por trás. Alguma coisa estava se aproximando e vinha rápido. Volano e Valmiro levitaram para fora do buraco. Os uivos do vento atrapalhavam uma melhor audição, mas mesmo assim conseguiram perceber que aquela coisa aproximava-se a passos largos. Prepararam esferas violetas em suas mãos para um ataque. Aquilo podia ser qualquer coisa. Podia ter qualquer tamanho, qualquer formato. Uma fera daquela região, quem sabe. Um perigoso e insaciável lobusto, talvez.

O barulho aproximou-se ainda mais. Um vulto já era perceptível. De repente, parou. Seja lá o que fosse, parecia saber que estavam ali em cima, à sua espera. Vagarosamente, foi se aproximando.

Agora, já era possível visualizar. Era Tóro.

– Xetriquênio..., – falou o mago, suspirando de alívio. – quase que você era desintegrado...

– Tive um atraso naquela neblina. É realmente frio por lá... – enquanto falava, apoiava-se nas rochas para sair de dentro do buraco. – Encontrei a entrada de uma caverna e imaginei que vocês estivessem dentro. O caminho é longo! Parei para descansar um pouco e acabei dormindo.

– Estávamos todos cansados... Mas agora estamos renergizados e precisamos prosseguir. – ordenou o mago.

O bárbaro olhou à sua volta. Via a ponta de várias outras montanhas. Estavam em um ponto plano, com um pequeno monte a muitos metros, logo à frente, que era o cume.

– Como sabe que Dragonesa fica exatamente nessa montanha? – indagou o xetriquênio.

– Não, ela não fica exatamente aqui. Costuma circular toda essa área. – respondeu, olhando ao redor. – Em algum lugar, certamente, já preparou seu ninho. Está em sua época de procriação...

– Se ela fica circulando por aí... então... ela pode... nos atacar a qualquer instante... – observou Valmiro. Era perceptível um certo medo em suas palavras.

– Sim, ela pode. Estamos vulneráveis. Qualquer um que se atreva a vir até aqui é uma presa fácil para Dragonesa. Por isso, é uma das Criaturas Místicas mais temidas.

– Já entendi, mago... Temos de redobrar nossa atenção...

– Triplicar, senhor Tóro. É melhor triplicarmos. Somos três. Dragonesa é como se fosse sete.

O bruxo e o bárbaro olharam espantados. Entenderam bem o que Volano acabara de dizer-lhes? Sete?! Não era apenas Dragonesa? Imaginavam que fosse apenas uma Criatura Mística...

– Enfrentaremos sete dragões?!

– Não, meu filho. – deu um sorriso. – Bom... sim... – respondeu pausadamente. – Dragonesa possui um único corpo. Mas tem sete cabeças, cada uma de um dragão. Esqueçam tudo o que já enfrentaram. Teremos à nossa frente uma fera que cospe fogo, congela, lança ácido, arremessa uma pegajosa teia, emite um gás letal, empedra e dispara um raio que chacoalha todos os seus ossos, partindo-os em inúmeros e diminutos pedaços.

Nem mesmo Tóro imaginava um dia afrontar um ser como esse. Seus ombros estavam caídos, sua fisionomia era de derrota. Valmiro estava completamente imóvel; parecia uma estátua de pedra. O Mestre percebeu o medo em seus olhos. Não pretendia aterrorizar, mas precisava continuar alertando seus companheiros.

– E tem mais uma coisa... Além disso tudo... é um dragão. Dragonesa pode voar.

– Vvvv... vooa... voar...? – indagou o rapaz, com uma feição de quem não gostara nem um pouco de ter ouvido aquelas palavras. – Precisamos... precisamos mesmo enfrentá-la? Não tem outro jeito?

– Infelizmente, não... – respondeu seu pai, num tom seco, seguindo em frente.

O grupo dirigiu-se para o ápice da montanha, onde a escalada foi bem menos complicada. A quase três mil metros de altitude, tinham uma visão privilegiada da ilha. Volano usou sua magia e uma corrente de vento dissipou parte da neblina, permitindo que o grupo se deslumbrasse com as imagens compactas de algumas regiões de Fesgra.

O frio era intenso. As extremidades dos corpos estavam roxeadas, endurecidas, quase congeladas. Os lábios do mago estavam ressecados e ele sentiu um leve gosto de sangue quando os umedeceu com a língua. Valmiro sentia um grande zunido em seu ouvido esquerdo e constantemente desequilibrava-se. Quando caía no chão e tocava a neve, não sentia a palma de suas mãos esfriar. Pelo contrário. A sensação era de uma leve queimadura. Tóro, com as vestimentas que usava, era certamente o mais afetado, mas em nenhum momento deixou escapar qualquer palavra que demonstrasse fraqueza.

E foi ele quem percebeu um lobo aproximar-se. Não um lobo como outros encontrados em florestas. Este era maior que o próprio bárbaro. Seu abundante pêlo era cinza, que tomava a cor de um azul marinho vindo da fronte de sua cabeça, perpassando por seu dorso e apoderando-se por completo de sua cauda. Suas patas eram largas, com afiadas e compridas garras negras. Sua mandíbula ostentava amareladas e pontiagudas presas. Era extremamente robusto. Era um lobusto, o que Volano temera encontrar ainda há pouco.

Olhava atento para os humanos, com um leve rosnado. O xetriquênio também o encarava. Um parecia aguardar que o outro atacasse primeiro. E foi a fera quem cansou de esperar: avançou para cima de Tóro.

Pai e filho afastaram-se e quase despencaram, pois o local onde se encontravam não era muito largo. O bruxo olhou para baixo. A visão agora não era tão deslumbrante. Na verdade, não gostava muito de altura; causava-lhe vertigem. Sua cabeça rodava e a visão não conseguia se focar em um ponto fixo. Volano levantou-o do chão, apoiando-lhe.

O bárbaro segurou as patas dianteiras do lobo e jogou-o para o lado com tamanha força que o animal caiu longe e embolou-se na neve, ficando a apenas meio palmo de uma queda. Mas isso parecia diversão para o lobusto, que retornou correndo, com uma grande fúria. Tóro pegou o braço de pedra de sua cintura e preparou-se. Quando a criatura aproximou-se o suficiente, acertou-lhe a cabeça com o artefato de rocha. Muito sangue caiu no chão, bem como a fera. Parecia derrotada.

Mero engano. Estava ferida, mas não vencida.

O animal levantou e afastou-se um pouco. Rosnava raivosamente. Não se entregava facilmente. Começou a circundar lentamente o xetriquênio. Parecia analisá-lo. Talvez tivesse entendido que avançar e impor sua força não eram suficientes para subjugar o bárbaro. Precisava astutamente armar uma armadilha, uma arapuca. Alguma coisa para imobilizá-lo. De repente, parou. Deu um forte e prolongado uivo. Um único, que foi o suficiente para atrair outros dois lobustos, que pareciam ser maiores ainda.

As três criaturas caminhavam pacientemente na direção de Tóro, que recuava, ainda tentando encontrar um meio de enfrentá-las sem sofrer danos. Seu pé esquerdo não mais sentiu o chão. Parou. Mais um passo para trás e rolaria montanha abaixo.

Volano ainda não havia interferido porque acreditava que o xetriquênio não teria problemas com aquele primeiro lobo. Mas agora precisava ajudá-lo. Quando fez menção de invocar alguma magia, o bárbaro reclamou.

– NÃO!!! Deixe-me enfrentá-los sozinho! Não tire a minha diversão! – esbravejou, andando para frente.

Os dois lobos maiores pularam para cima do humano e o derrubaram, cobrindo todo o seu corpo. Não demorou muito para que ele conseguisse levantá-los e arremessá-los para longe. O menor deles, já impaciente e querendo concluir logo aquela luta, avançou rapidamente e abocanhou o braço esquerdo do xetriquênio, que caiu ajoelhado no chão, gritando. Com a mão direita fechada, acertou um murro na nuca da fera. Ainda assim, a criatura não largou seu braço. As outras duas aproximaram-se e correram na direção do pescoço do humano.

Volano desrespeitou a vontade de Tóro e o ajudou, paralisando os dois lobustos no ar com a sua telecinese. Depois, com os olhos violetas, lançou-lhes uma magia. As feras urraram e feixes de luz da mesma tonalidade saíram de dentro de seus corpos, consumindo-os por completo em questão de segundos.

O bárbaro apertou o pescoço do lobo, forçando-o a largar o seu membro. Com a mão direita, empreendeu um forte murro no focinho do animal, derrubando-o. Mesmo com o braço ferido e ensangüentado, pegou a criatura e levantou-a no ar. Com uma das mãos, segurou firme pelo pescoço, e com a outra, agarrou nas patas traseiras. Deu um possante urro e empregou força contrária em seus braços, rasgando o corpo do lobusto, partindo-o em dois.

O xetriquênio bebeu o sangue que escorria como se estivesse premiando-se.

– Eu disse a Meliel que queria uma Arma com a qual eu pudesse partir ao meio o corpo de algum louco que se atrevesse a me atacar! – olhou para os pedaços do animal e rosnou. – Nada derruba um xetriquênio! Naaadaaaaaa!!! – gritou, virando-se para todas as direções, como se quisesse que toda Fesgra o ouvisse.

E alguém ouviu.

Um forte rugido tomou conta do ambiente. Depois outro, mais agudo. Um terceiro, mais prolongado. O quarto foi mais rápido, mas arrepiou os cabelos dos braços de Valmiro. Um quinto rosnado tinha o som de labaredas. O sexto era grave e chegou a provocar um leve deslizamento de neve. Por fim, um sétimo urro era tão grave que deixou os humanos tontos, com os ouvidos parecendo que iriam explodir.

Um forte bater de asas vinha de longe. O mago ordenou que os demais se escondessem, e foram para debaixo de um rochedo. O som aumentou e uma sombra passou próximo de onde estavam. Valmiro esticou o pescoço para fora. Voltou à sua posição, com os olhos arregalados, a respiração ofegante e um grande pavor visível em seu rosto.

– É Dra... é Drago... – sua respiração acelerara ainda mais. De repente, foi diminuindo velozmente. Sua pele começou a perder cor. Parecia que estava perdendo os sentidos.

Seu pai pegou em suas mãos e começou a esfregar-lhe os pulsos. Tóro apoiou o bruxo em seus braços. Aos poucos, o jovem foi voltando ao normal.

– Sim, meu filho, é Dragonesa...

* * * * *

Kalena abriu vagarosamente os olhos. O sol cegava-lhe. Estava ainda muito cansada. Tentava recordar o que acontecera. Muitas imagens vinham à sua mente, num ritmo frenético. Estava um pouco confusa. Respirou profundamente. Agora conseguia recordar os fatos. Ela e os outros haviam saído daquela vila e ido em direção a uma pequena cidade, a oeste, para ajudar seus habitantes contra aquelas criaturas que ninguém nunca vira antes.

Andara algumas horas durante a noite, até que suas pernas não mais lhe obedeciam. Lembrou-se de um gramado, no qual foi deixando seu corpo cair vagarosamente. Era macio, confortável, cheiroso. À medida que as pontas daquele mato iam tocando sua pele, parecia que todo o seu corpo ia relaxando, talvez se renergizando. Não conseguia ver mais ninguém, nem nada à sua frente. A esfera de luz que criara apagou-se rapidamente, e com ela toda e qualquer imagem. Entregara-se ao cansaço, ao sono.

Dormira, mas parecia ter sido por pouco tempo. A impressão que tinha é de que no instante que fechou os olhos, os abriu novamente. Mas agora o dia estava claro, totalmente iluminado pelo sol.

Olhou em volta e viu seus companheiros de jornada também repousando. Cogles estava completamente encolhido e estranhos ruídos vinham de sua barriga. Meliel encostara-se numa árvore, com o cajado à mão, e parecia não respirar. Já o vira dormir assim muitas outras vezes, por isso ficou despreocupada. Roguinil estava acordado, em pé, a alguns metros, observando o horizonte. Talvez tivesse ficado de vigília. Lentamente, aproximou-se do príncipe. Tocou suavemente o seu ombro e ele se virou. Seus olhos estavam lacrimejando.

– O que houve...? – perguntou a princesa. – O que está acontecendo? Por que tem sido rude comigo?

Mas o kan-potrense nada respondeu. Apenas fitou a bela bruxa dilamésia. Deu fortes suspiros. Não conseguia tirar de sua mente a imagem da jovem com Cogles. Mas sua raiva estava diminuindo. Convencera-se de que Kalena não tinha qualquer compromisso para com ele; não era sua esposa ou prometida. Não lhe devia qualquer consideração ou respeito. Tiveram um caso, uma tarde onde entregaram seus corpos e suas mentes aos desejos carnais. Apenas isso. Nenhuma emoção, nenhum sentimento além do prazer físico. Estava ali para cumprir uma missão, para salvar os povos de Fesgra, e não para apaixonar-se pela filha de seu dominador. Não estava ali para criar rancor ou mágoas de qualquer pessoa.

Olhava agora para Kalena de um outro jeito. As curvas de seu belo corpo ainda lhe seduziam, pareciam dançar sem se mexer. Mas agora era só isso. Nada mais que admiração por algo que se degradaria ao longo do tempo.

– Está tudo bem... – disse-lhe com um largo sorriso, com um semblante tranqüilo e amigável. – Agora está tudo bem. Vamos acordar os outros.

Após alguns minutos, o grupo retomara a caminhada. Cogles reclamava de fome, mas nada havia para que pudessem comer. Beberam um pouco de água quando passaram por um pequeno trecho do Rio Comprido, um rio que nascia na Serra Labirinto, na região central de Fesgra, e se estendia para oeste, perpassando diversos reinos até encontrar o oceano. Um único filamento corria em sentido leste e formava um pequeno lago, próximo onde o grupo estava agora. O Comprido não era dilatado como o Rio Largo, mas em compensação era o mais extenso de toda a ilha.

O grupo se encontrava nas terras do Reino dos Fidélios, que há alguns séculos já pertenceu a Dilames, mas aproveitou-se que o Reino-Maior enfraqueceu-se quando estava guerreando com os povos das Terras do Oeste e do Sudoeste e conseguiu impor sua independência. As relações foram difíceis durante as primeiras décadas, mas já faz um bom tempo que Fidélios e Dilames mantêm uma convivência pacífica e um comércio altamente rentável para ambos os lados.

A pequena cidade para a qual os humanos estavam indo era Polustra, a um dia de distância da capital, Garatéia. O campo por onde passavam era verde e bastante fértil, com várias espécies vegetais; algumas pequenas, como arbustos, outras maiores, como árvores. Poucas tinham frutas no momento devido à proximidade do inverno. Alguns pequenos animais silvestres foram surgindo e Cogles caçou dois coelhos para que Meliel os assasse.

Prosseguiram a jornada e, após algumas horas, puderam avistar os contornos de Polustra. Àquela distância, não puderam ver ninguém. Meliel achou prudente aproximarem-se cautelosamente. Talvez não estivessem vendo pessoas por causa da distância, mas também podia ser por outro motivo, o mesmo que os levou até ali.

Desceram um pequeno morro e chegaram à entrada principal da cidade. Era cercada por um muro de não mais que quatro metros de altura. Estava destruído em quase todo o seu comprimento frontal. Nenhum guarda, nenhuma sentinela, nenhum animal, nenhuma caravana, nenhum movimento, nenhum sinal de vida.

O grosso portão de madeira estava caído ao chão, quebrado, estraçalhado. Passaram por ele e viram muito sangue no chão, muitos rastros. Havia também muitas armas, como lanças, espadas, escudos, arcos e flechas. Algumas casas estavam manchadas com sangue. Adentraram ainda mais o interior da cidade. Chegaram a uma outra rua. Havia alguns corpos daquelas criaturas que enfrentaram na vila. O chão estava tomado por uma gosma de um verde bem escuro. Algumas edificações tiveram o teto arrancado e outras haviam sido completamente destruídas, sobrando apenas um monte de pedras.

Não restava dúvidas de que haviam chegado muito tarde.

Ouviram o grito de uma criança. Era insistente. O grupo correu para uma outra rua, seguindo aquele som desesperado. O mago parou atrás de uma moradia e os demais fizeram o mesmo. Esgueiraram seus rostos pela parede. Depararam com várias daquelas criaturas, circundando a criança. Era um menino, aparentando apenas dez anos de idade. Estava ferido, com a roupa suja de sangue e de gosma verde. Seus olhos tremiam e jorravam lágrimas. Aliás, todo o seu corpo tremia.

De repente, eis que surge por trás Gorak. O demônio aproximou-se do garoto e o prendeu em sua cauda. Kalena fez menção de socorrê-lo, mas seu mentor a impediu, alegando que não tinham como enfrentar o ser das trevas sem Volano e a Arca.

Gorak abriu sua bocarra; parecia que engoliria a criança por inteiro. Ao invés disso, expeliu um abundante líquido verde. À medida que aquele gogo cobria o corpo do garoto, o demônio retirava a sua cauda. Em poucos instantes, a gosma enrijeceu. A criança estava presa em um casulo, ainda viva.

– O que está acontecendo? O que ele está fazendo com aquele menino?! – sussurrava a princesa, indignada e aflita com a cena que acabara de presenciar.

– Não tenho a menor idéia, minha jovem... Mas sei que algo de bom não é... – respondeu-lhe o mago.

– Não vamos esperar para saber!

Roguinil desembainhou a espada. Estava decidido a degolar impiedosamente aqueles seres. Mas o casulo começou a se mexer. Parecia ter voltado a uma consistência mais tenra. Ganhou volume. Voltou a endurecer. De repente, começou a rachar. De dentro, não saiu o garoto, e sim uma daquelas criaturas. E parecia estar faminta. Uma outra arrastou o corpo de uma mulher para próximo, o qual foi devorado pelo novo ser.

Poucos instantes depois, a fera agachou-se e expeliu, de sua traseira, dois ovos, um atrás do outro: um avermelhado e outro esverdeado.

Os humanos observaram incrédulos. Então era isso que Gorak fazia. Raptava algumas pessoas para transformá-las naqueles seres, e matava outras para servi-lhes de alimento, quando, então, as feras se reproduziam. E botavam não apenas ovos com crias, que eram os esverdeados, mas também ovos explosivos, os avermelhados.

O demônio e suas criaturas marcharam para o centro da cidade. Os humanos os seguiram cautelosamente. A visão que tiveram foi aterrorizante. Milhares de ovos, milhares de corpos dos habitantes de Polustra. Algumas outras centenas de criaturas, todas se alimentando e pondo mais ovos.

– Um exército... – murmurou Cogles.

– Como? – perguntou-lhe Meliel, que não havia ouvido direito.

– Um exército. Gorak está criando um exército desses seres...

Roguinil olhou espantando para o guerreiro.

– Um exército?! E para atacar quem? – indagou o príncipe, quase que debochando.

– Talvez o senhor Cogles tenha razão... – falou o mago, dando uma pausa e olhando assustado para os demais. – A quantidade dessas criaturas aqui é enorme, muito maior do que a que enfrentamos naquela vila. E ainda há os ovos que explodem... Gorak pode estar conduzindo suas crias para várias cidades humanas, transformando seus habitantes nesses seres. Se obtiver êxito, em poucas semanas toda Fesgra estará infestada dessas criaturas. O fim dos povos. O início de um reino das trevas...!

– E, enquanto isso, o Guardião vai libertando os outros demônios... – Kalena olhava apavorada para seu mentor.

– E sabe-se lá o que esses outros podem fazer... – argumentou Cogles.

– O que faremos?

– Vamos matar todas essas criaturas, princesa. – respondeu-lhe o kan-potrense, erguendo a espada.

– São muitas... além de Gorak. É uma criatura das trevas. Segundo Volano, virá direto para cima de mim e Kalena. Além disso, corremos o risco de que nos prenda no seu casulo e que nos transforme em um de seus seres.

– O que sugere, então, mago?

– Bem, príncipe... a próxima aglomeração humana é Garatéia, a capital desse reino. Fica a um dia de distância.

Os demais se olharam. Perceberam aonde Meliel queria chegar com aquela informação.

– Em Garatéia teremos mais força para combater essas criaturas e maiores chances de sucesso. – alegou o mago. – Precisamos correr para avisá-los a tempo e nos prepararmos.

– E quanto a Volano e os outros?

– Espero, senhor Cogles, que meu velho amigo entenda os sinais que tenho deixado para ele. Repetirei isso aqui.

Meliel reuniu umas pedrinhas no chão e deu-lhes um formato. Depois, liderou o grupo para uma jornada rumo ao centro político de Fidélios.

Do alto de um monte, Roguinil pôde ver quase a metade da cidade infestada por aqueles seres. Cogles levou pouco mais de dois minutos para fazer a sua contabilidade. Eram quase quatro centenas, além do próprio Gorak e de inúmeros ovos.

* * * * *

O grupo de Volano, após perceber que Dragonesa não estava por perto, saiu debaixo do rochedo. À frente dos humanos, apenas o cume da cadeia montanhosa. O vento estava mais forte, mais gélido, e espalhava com fúria os flocos de neve, o que atrapalhava a visão.

Olharam ao redor. Nenhum sinal daquilo que vieram caçar. O mago pediu ajuda ao filho e, concentrados, levitaram a si mesmos e a Tóro até uma outra montanha bem próxima. Teriam de percorrer cada local à procura de Dragonesa. Começaram a andar.

Valmiro olhava para frente. Tinha uma grande rocha impedindo a passagem. Teriam de contorná-la para prosseguirem. A imagem começou a ficar retorcida, descolorida. Sentiu sua barriga roer. A dor foi aumentando. Há quanto tempo não comia? Nem se lembrava... Estava com muita fome, mas não queria revelar isso a Volano. Ninguém mais estava reclamando de fome. Não queria, portanto, demonstrar fraqueza a seu pai. Tentava, a todo custo, dizer à sua mente que não estava faminto. Mas o seu corpo não se convencia disso. Pôs a mão na barriga e ajoelhou-se, não suportando a dor.

– O que está sentindo, meu filho? – perguntou-lhe o Mestre, com um ar de preocupação.

– Nada... – respondeu, segurando mais forte a sua barriga, como se isso fosse atenuar a dor.

Tóro parecia ter entendido a situação do jovem, mas nada revelou ao mago. Olhou para cima e viu uma águia sobrevoando o local.

– Volano... aquela águia... é a mesma que estava em sua cabana quando saímos de lá?

O mago virou-se para o pássaro e o examinou por um instante.

– Não, não é.

O xetriquênio estendeu seu braço esquerdo e começou a emitir um forte e agudo assobio, tentando imitar o mesmo som da águia. A ave circundou e depois desceu em direção ao bárbaro, pousando em seu braço. Tóro fez-lhe um afago na nuca e pediu-lhe desculpas. Nem Volano nem Valmiro entenderam de imediato o por quê, mas depois que Tóro quebrou o pescoço da águia, compreenderam aquele pedido de escusa.

Com as próprias mãos, retirou o máximo que pôde das penas. Depois, aproximou-se de Valmiro e entregou-lhe o animal.

– Vai se sentir melhor comendo isto.

O jovem bruxo revezava seu olhar entre o bárbaro e a ave morta. Sentiria-se melhor? Só de olhar para aquela carne crua, lembrando da forma como o animal fora brutal e friamente morto, dava-lhe náusea.

– Não... não há nem como... assar...? – perguntou-lhe, gaguejando, temendo que o xetriquênio percebesse que preferia ficar com fome a comer aquela ave e acabasse se aborrecendo.

– Infelizmente, não. – respondeu, num tom seco. – É comer do jeito que está ou morrer de fome. – largou o pequeno animal no chão e virou-se de costas, afastando-se.

Valmiro olhou para o pai, o qual balançava a cabeça positivamente. Tóro tinha razão. Era melhor enfrentar aquilo do que morrer de fome. Encarava a ave morta em suas mãos. Fechou os olhos, fez uma faceta de nojo e abriu a boca. Vagarosamente, foi levando o animal à boca. Sua língua tocou o pequeno corpo. Ainda havia algumas penas. Cuspiu-as. Sentia-se engasgado.

Nem teve coragem de levantar seus olhos. Temia encarar Tóro. O que o bárbaro estaria pensando a seu respeito nesse momento? Será que seu pai o via como um estorvo, como um grande contratempo? Não era isso o que queria ser. Desejava, mais do que tudo, ser um grande motivo de orgulho, não apenas para seu pai, mas para toda Fesgra. Queria que todos o admirassem, o venerassem. Mas para que isso ocorresse, teria de ser o responsável por grandes feitos, como aprisionar o Guardião e salvar os povos das garras de Gorak e de outros temíveis demônios. Mas a verdade é que mal conseguia encarar uma carne gélida e crua que nem aquela que estava em suas mãos! Salvar o mundo? Humpft! Talvez isso fosse sonhar muito alto...

Olhou em volta à procura de alguma outra fonte de alimento. Nada. Apenas gelo, neve, rocha e neblina. “Como é que Dragonesa se alimenta?”, pensou. “Com certeza não é comendo águias... Talvez ela se alimente daqueles lobos...”. Discretamente, olhou para seu pai e o bárbaro. Estavam voltados para outra posição, talvez à procura de algum sinal da Criatura Mística. Olhou para a ave morta. “Não vou comer isso de jeito nenhum! Mas Tóro não precisa saber disso...”.

O bruxo arrastou-se vagarosamente para a grande rocha à frente. “Vou enterrar isso aqui e pronto. Ele pensará que me saciei...”.

Valmiro começou a cavar um buraco no chão, onde jogaria aquela águia e se livraria daquela tormenta gastronômica. Ao seu lado, havia uma pequena elevação, num formato quase que cilíndrico. Teve a impressão daquilo ter se mexido. Olhou e não viu nada. Continuou cavando o buraco. Mais uma vez, parecia que a pequena elevação mexera-se. Ficou observando, cautelosamente. Dessa vez, não lhe restaram dúvidas. O monte de neve realmente estava se mexendo, agora quase que freneticamente.

O bruxo ouviu um leve e conhecido rugido. Sua respiração acelerou, seu coração pareceu saltar. Os lábios secaram e os olhos não mais piscavam. Receava em olhar para cima. Ouviu seu pai e Tóro chamar-lhe, e mais uma vez o rugido soou. Rapidamente, levantou o rosto. Três cabeças de dragão fitavam-no. Valmiro evitava qualquer movimento brusco.

Tanto ele quanto Dragonesa foram surpreendidos por uma esfera violeta que atingiu uma das cabeças da Criatura. Olhou para trás e viu seu pai criando outra dessa esfera. Subitamente, correu naquela direção enquanto o mago arremessava a magia. Isso não tinha grandes efeitos sobre a fera, apenas tirava-lhe a atenção de cima de Valmiro.

O xetriquênio havia escalado um pouco a rocha e, quando atingiu uma boa altura, pulou sobre um dos bestuntos de Dragonesa, que se chacoalhava, tentando se livrar do bárbaro.

Volano e filho correram, mas a fera os seguiu. Em campo aberto, o jovem bruxo conseguiu visualizar melhor a Criatura Mística. De fato, impunha medo até mesmo ao mais bravo, impetuoso e experiente guerreiro. Seu corpo era de um branco muito alvo, daí Valmiro ter confundido sua cauda com um pequeno monte de neve. Suas patas eram grossas, não muito curtas, adornadas com rígidas e pontiagudas presas acinzentadas. Seu coro parecia ser mais resistente ainda. Andava como um quadrúpede e fazia o chão estremecer um pouco. Suas asas, da mesma tonalidade do restante do corpo, eram gigantescas.

As cabeças eram as partes mais intrigantes para Valmiro. Todas se pareciam com a face das serpentes marinhas que enfrentaram no Largo, dias antes. Mas não tinham nadadeiras no lugar de orelhas. Possuíam dois filamentos saindo de seus focinhos, como se fossem bigodes. As narinas eram largas e os olhos, esbugalhados. Um pouco de pelugem surgia em seu dorso. Suas mandíbulas estavam fechadas, e por isso não pôde avaliar as presas. Mas tinha a impressão de que logo as testemunharia.

A cabeça do meio era do mesmo branco alvo do restante do corpo. Do seu lado esquerdo, havia uma outra, de cor preta; uma cinza e uma azul. Do lado direito, uma vermelha, onde Tóro estava, outra marrom e, por fim, uma verde. Os alongados pescoços acompanhavam essas tonalidades.

O xetriquênio empreendeu uma série de murros na cabeça da fera, que urrava, demonstrando que sentia, no mínimo, um incômodo. A de cor marrom virou-se para o bárbaro e expeliu um líquido da mesma cor, de uma tonalidade mais clara. Tóro, mesmo não sabendo o que era aquele fluido, tratou de pular no dorso de Dragonesa. Viu a substância fazer um buraco na rocha que atingiu, emitindo uma pequena fumaça. Sentiu-se aliviado, pois se livrara de uma rajada de ácido.

Outras quatro cabeças concentraram-se em Volano e filho. Enquanto a branca soltava uma fumaça de igual tonalidade na direção do mago, a preta disparava um emaranhado de teia em cima do bruxo. O Mestre dos Magos não foi rápido o suficiente para se desviar da fumaça, que congelou todo o seu corpo. Valmiro, que ficou preocupado com o que ocorrera, perdeu a concentração no que estava prestes a lhe acontecer e acabou ficando preso na pegajosa teia, caindo no chão, embolando-se.

O bárbaro era atacado por outros três bestuntos. Quando se aproximavam de Tóro, este os esmurrava. Dragonesa parecia ter percebido a gigantesca força do xetriquênio. Um combate físico com ele não lhe seria muito vantajoso. Mas havia suas habilidades inatas! A cabeça cinza aproximou-se lentamente de Tóro. Seus olhos o fitavam, parecia que queriam fazê-lo adormecer. O bárbaro tentava, mas era difícil livrar-se daquele olhar. Percebeu a ponta de seus dedos endurecerem. Tentava fechar os olhos, mas isso também estava sendo dificultoso. Em sua mente, vinham as lembranças de sua esposa Miriella e de seus filhos, todos mortos, incendiados pelos soldados de Endoro. Aos poucos, tais imagens iam perdendo o movimento, a coloração, tornando-se acinzentadas. Tóro estava imóvel, duro, petrificado.

Valmiro não conseguia ver além do gigantesco corpo de Dragonesa, por isso não ficou sabendo do que ocorrera ao bárbaro. Mas podia ver o bloco de gelo ao seu lado, com seu pai dentro, imóvel. Procurava pelo xetriquênio, mas não percebia nenhum movimento, nenhuma ação. O que lhe ocorrera?

A fera aproximou-se, rugindo, tremendo o chão. O jovem bruxo olhava desesperado para todos os lados. Não havia ninguém que pudesse lhe ajudar.

Dragonesa abaixou suas cabeças e ficou frente a frente com Valmiro. Parecia fitá-lo com amplo interesse. Parecia reconhecê-lo. As sete narinas inalavam seu suor, seu cheiro. Algumas cachimônias debatiam-se furiosamente, como se quisessem agredi-lo; outras, ao contrário, pareciam proteger o jovem bruxo de um ataque. O rapaz respirava aceleradamente, com olhos trêmulos. Não estava entendendo a atitude da Criatura. Por quê simplesmente não o comia logo e acabava com aquela angústia? O que a impedia de fazer isso?

Por fim, depois do que parecia uma briga consigo mesma, Dragonesa reuniu seus sete bestuntos numa mesma direção, virou-se de costas; afastou-se um pouco e começou a bater as asas. Uma forte ventania se fez, levantando muitos flocos de neve e aumentando a sensação de frio. Nesse instante, Valmiro pôde ver o que ocorrera ao bárbaro. A estátua de pedra deslizou pelo corpo da fera. A queda e o impacto poderiam espatifá-la, mas o bruxo utilizou telecinese e suavizou sua chegada ao chão.

Dragonesa já voava distante, sumindo por detrás de uma montanha.

Ainda assim, o rapaz estava desesperado. Saíra de casa a alguns dias, acompanhado de seu pai e um outro mago, além de três guerreiros e uma princesa que acumulava habilidades de magia e de combate físico, sem falar na caçadora de recompensas. As circunstâncias fizeram o grupo rachar-se ao meio. Cada vez mais, o número diminuía. Agora, restava apenas ele contra... contra sete dragões! Mesmo que Dragonesa fosse um único ser, tinha a força e as habilidades de sete dragões! Como combatê-la, como vencê-la?

Lembrou-se de uma vez que leu um livro sobre essa espécie. Há um punhado de anos, os reinos de Fesgra se juntaram numa grande caçada contra essas terríveis e danosas criaturas, que devastavam plantações, destruíam casas, perseguiam caravanas de mercadores, dentre tantas outras coisas que acabaram por estimular uma aliança entre os povos jamais vista em toda a história. O objetivo de exterminar todas as raças de dragões foi alcançado afinal.

Valmiro olhava para o bloco de gelo. Sua respiração estava voltando ao normal. Sentia as conseqüências do frio e da altitude de uma forma letal como até agora não sentira. O dia parecia estar escurecendo; as imagens à sua volta iam ficando embaçadas. Sua cabeça rodava, a mente não mais conseguia pensar em muitas coisas ao mesmo tempo. Tinha vontade de ficar caído ali no chão, preso àquela teia; queria fechar os olhos, sonhar com a sua tranqüila e previsível vida na cabana. Sabia que assim, aos poucos, aquela neve cobriria o seu corpo e o congelaria por completo em questão de minutos. Morreria.

Sim, isso seria o mais cômodo e fácil a se fazer naquele instante. Mas, subitamente, veio à sua mente a imagem de uma mulher. Não sabia se sua mãe era daquele jeito, mas era a forma como a imaginava. Refletiu sobre tudo pelo que seus pais já haviam passado, seus sacrifícios para mantê-lo vivo e em segredo do Reino Celestial. Lembrou-se da importância daquela missão, da força e perseverança de cada um para cumpri-la. O sucesso daquela jornada estava agora em suas mãos e não podia desapontar o pai nem os companheiros.

“Mas... sou apenas Valmiro, um bruxo que há pouco completou os estudos de Magia Mediana...”, pensou, com pena de si mesmo. “O que posso, eu, sozinho, fazer contra Dragonesa...?”. Subitamente, veio-lhe um fio de esperança. “Mas parece que ela também não pode fazer nada contra mim...!”, raciocinou, lembrando-se que a fera teve a oportunidade de esmagá-lo, trucidá-lo e não o fez. O que a teria impedido? “Não porto nenhum artefato mágico que me proteja...”, congelou esse pensamento, pois um outro surgiu. Deu um leve sorriso; seus olhos percorreram freneticamente para todas as direções. Começou a rir, quase que escandalosamente. Concentrou-se e criou dois pequenos elementais, os quais o ajudaram a se livrar da teia. Depois, lembrando-se das palavras do pai, os desfez.

O jovem pegou por dentro de suas vestes o grimoire, com um semblante irradiante. Não precisava de nenhum artefato mágico! Portava o grimoire de safira, o livro de magias do maior Mestre dos Mestres que Fesgra já tivera. Certamente, o conhecimento de como enfrentar e derrotar Dragonesa encontrava-se em suas páginas.

Abriu o livro e começou a folheá-lo. Antes de qualquer outra coisa, precisava ajudar seu pai e Tóro. Encontrou um longo texto que tratava de Criaturas Místicas. Procurou minuciosamente e deparou-se com um trecho que abordava especificamente de Dragonesa. Pelo que leu, tinha duas opções: cortar fora a cabeça que provocara o congelamento de Volano e a petrificação do xetriquênio ou convencer Dragonesa a desfazer a magia. Achou que a primeira opção seria mais fácil...

Valmiro sentiu gosto de sangue na boca e uma pequena náusea. Fechou os olhos e respirou profundamente. Não podia permitir que o medo lhe tomasse conta. Continuou com a leitura, apreendendo tudo que podia acerca daquela Criatura. Quase uma hora depois, achava-se preparado para enfrentá-la sozinho. Pôs o grimoire de volta em suas vestes e arrastou a estátua do bárbaro para próximo do bloco de gelo onde Volano estava preso.

Olhou para a montanha à frente, por onde Dragonesa havia sumido. A única maneira de se chegar lá era voando. Ou levitando. Isso ele sabia fazer, mas precisaria de muita força, de muita energia para transpor aquela distância. Encheu os pulmões de ar e de coragem. Olhava fixo para frente. Começou a correr, seus olhos tornando-se incolores. Quando atingiu a extremidade da superfície onde estava, deu um salto. Seus braços e pernas balançavam no ar. Foi perdendo altitude. O bruxo estava consciente disso, mas não se desesperou. Pelo contrário, aumentou a sua concentração, ampliou a energia que desprendia para a magia. Voltou a ganhar altura e rapidamente atingiu o solo da outra montanha.

Ficou agachado no chão, respirando rapidamente, tentando recuperar o fôlego. Deu um largo sorriso. Surpreendera-se consigo mesmo. Jamais imaginou que seria capaz daquela proeza. Levantou-se e olhou para trás. “Aliás, quantos seriam capazes disso?”. De fato, a distância que percorreu era muito grande e exigia muito domínio daquela magia. Mas esse não era o maior desafio para o jovem bruxo. Ainda teria de encontrar Dragonesa por entre aquelas montanhas, enfrentá-la e, por fim, tirar-lhe seu valioso coração.

O sol ainda estava um pouco distante do centro do céu, o que proporcionava uma boa iluminação, mesmo com todos aqueles flocos de neve arrastados pelo furioso vento. O jovem bruxo olhava para todos os lados com a sua visão de águia. Avistou o que procurava. Estava a algumas montanhas de distância. Teria de utilizar telecinese para transpor o abismo que separava uma serra da outra. Não estava mais preocupado com isso; sentia-se, agora, encorajado, confiante de que podia executar a magia com grande êxito. Começou a correr. Atravessou o despenhadeiro com tanta facilidade que nem se deu conta de que o fizera.

Quanto mais corria, mais frio ficava o vento. Sentia pequenas alfinetadas em seu rosto, mas não se importava com isso. Aquela gélida brisa fazia-o sentir-se livre, poderoso, como se nada fosse capaz de pará-lo agora. Em poucos minutos, chegou à montanha onde avistara Dragonesa. A altitude dessa serra era menor. Se estivesse certo, a Criatura estaria a alguns metros, numa ribanceira. Aproximou-se cautelosamente, tentando não fazer qualquer ruído que fosse. Aos poucos, foi avistando a escarpa onde vira a Rainha dos Dragões. Já conseguia enxergar os contornos de suas cabeças, que pareciam repousar umas sobre as outras.

Sua respiração aumentou, mas a coragem também. Sentia-se seguro; lera muitas informações acerca da Criatura no grimoire. Sabia exatamente como combatê-la. Era um ser mágico, e como tal, o uso de armas não seria muito eficaz. “Combate-se magia com magia, magia com magia...”, procurava reforçar o pensamento. Tornou os olhos violetas e criou esferas de igual cor nas mãos. Sua respiração disparou. Preparou as pernas e o corpo para pular diante da fera e surpreendê-la com um ataque.

De repente, Dragonesa levantou um de seus bestuntos. Depois outro, mais outro, e foi assim até que todos estivessem concentrados num ponto fixo. Mas não era para Valmiro que estavam olhando. O jovem bruxo virou-se para o lado direito e constatou em quê a Criatura Mística se atentava. Quatro lobustos, com presas escancaradas e olhos vigilantes no rapaz.

Um dos lobos avançou rumo ao bruxo. Valmiro ergueu suas mãos para arremessar as esferas, mas parou subitamente. Seus olhos se arregalaram como nunca. A cabeça cinza simplesmente abocanhara o lobusto no ar. Enquanto balançava o corpo daquele animal, como se quisesse estraçalhá-lo, as demais cachimônias se preocuparam com os outros. Seis cabeças de Dragonesa contra três lobos. “Não têm a menor chance”, pensou o rapaz, fitando os lobustos. Naquele instante, teve uma certa pena das feras, que pareciam pequenos ratos diante da imponência da Criatura Mística.

Antes que Dragonesa os abocanhasse, emitiram estridentes uivos. Fora a última coisa que fizeram. Muito sangue jorrou na neve. Valmiro assistia àquela cena com um certo pavor, mas decidido do que tinha de fazer; estava confiante nas informações colhidas no grimoire.

De repente, a Rainha dos Dragões saiu do extenso buraco onde se encontrava e dirigiu-se para o bruxo. Suas cabeças o cercavam. Uma delas o derrubou no chão. O jovem viu-se encurralado. Aguardava um ataque a qualquer momento. Estava com as esferas prontas em suas mãos. Se o que lera no livro de magias estivesse correto, tinha uma chance de repelir aquela Criatura.

O ataque que aguardava estava demorando a acontecer. Algumas das cachimônias de Dragonesa pareciam cheirar Valmiro, enquanto outras o olhavam atento, talvez desconfiadas. Por fim, afastaram-se. A branca soltou um forte rugido e as asas começaram a bater furiosamente, mas a fera não alçou vôo. Ia voltando para o buraco quando surgiu meia dúzia de lobustos de um lado e um pouco mais do outro.

A atenção da Criatura ficou dividida; precisava defender-se de todos os lados. Mas, antes de qualquer ataque, voltou-se para Valmiro e, usando algumas cabeças, empurrou-o para dentro do buraco. Diferentemente de Dragonesa, o jovem bruxo era muito pequeno e não conseguia ver o que estava acontecendo lá em cima. Apenas ouvia uivos, rugidos, rosnados. Às vezes, conseguia ver as pontas das asas da Rainha.

De repente, um dos lobustos caiu no buraco. Valmiro não tinha certeza se realmente caiu ou se fora arremessado. A fera estava muito ferida, sangrando em demasiado. Uma de suas patas traseiras fora arrancada e havia um enorme buraco em seu corpo. “Dragonesa deve ter experimentado um pouco de sua carne e, não satisfeita, jogou-o aqui”.

Os olhos do rapaz pareciam brilhar naquele instante. Estavam focados em alguma coisa. Ao lado do corpo do lobusto, havia um objeto da metade do tamanho do jovem rapaz, branco como a neve. Era quase imperceptível naquele ambiente. Era um ovo. Dragonesa pusera um ovo, afinal. Segundo seu pai, a Criatura estava agora em contagem regressiva. A qualquer instante, poderia morrer. Valmiro pareceu tomar um susto. Olhou para cima preocupado. E se esse instante fosse justamente agora? E se a Criatura não resistisse a todos aqueles lobustos?

O bruxo teve uma idéia. Era muito arriscada, mas tinha de tentar. Se desse certo...

Pegou o ovo. Era pesado, muito pesado. “Como eu gostaria de ter as luvas de Tóro agora...”. Precisava carregá-lo, não importava qual fosse seu peso. Juntou todas as suas forças e utilizou telecinese para sair do buraco. A visão que teve não foi nada encorajadora. Não havia sequer um único espaço no chão que não estivesse ensangüentado ou coberto por teia. Havia muitos corpos de lobustos estendidos no solo; alguns com marcas de presas, outros que pareciam ter sido derretidos, outros ainda pegando fogo, e mais alguns transformados em pedra.

Mas muitos outros daqueles lobos surgiam do nada. Parecia que todos os que habitavam aquelas montanhas haviam resolvido convergir para aquele local no intuito de aniquilar Dragonesa. Talvez quisessem fazer isso há muito tempo.

Valmiro olhou para a Criatura Mística. Estava ferida, mas muito pouco. Sabia que a fera poderia eliminar todos aqueles lobos de uma só vez, sem nenhuma dificuldade. Mas talvez estivesse se divertindo assim, eliminando os pequenos lobustos vagarosamente, deliciando-se com cada vez que fazia uma vítima.

Dando passos lentos, mas firmes, o bruxo foi afastando-se do campo de batalha. Dragonesa parecia que não se apercebera do roubo de seu ovo. Em outras circunstâncias, isso seria um alívio. Mas, naquela ocasião, o que mais o rapaz queria é que ela o visse carregando aquele objeto.

Não demorou muito para que isso ocorresse.

A fera tornou-se mais raivosa e deixou de abocanhar os lobustos. Os que vinham em sua direção agora eram repelidos com um líquido de cor marrom que corroía seus corpos, ou com um gás esverdeado que parecia sufocá-los, ou ainda com labaredas que os tostavam.

Dragonesa mostrava-se furiosa. Talvez considerasse aquilo como um ato de traição. Protegera Valmiro do ataque dos lobos e agora lhe roubava seu ovo, seu único ovo. A Rainha dos Dragões bateu as asas e alçou vôo. Centenas de lobustos foram congelados ou petrificados, conforme a fúria de cada uma das cabeças da Criatura, a qual partiu raivosamente na direção do bruxo.

O rapaz tinha dificuldade em correr com aquele peso, mas estava consciente de que precisava fazê-lo. Chegou à encosta e deu um salto usando telecinese. O deslocamento de ar provocado pela batida das asas de Dragonesa acabou desconcentrando Valmiro, que deixou o ovo cair. A Criatura, rapidamente, deu um rasante e foi em direção ao objeto. Seu impulso acabou provocando um novo deslocamento de ar, atrapalhando a trajetória do bruxo. Mas Valmiro rapidamente se concentrou e seguiu a fera.

Ambos lutavam para ser o primeiro a alcançar o ovo. Algumas cabeças da Rainha tentavam abocanhar o rapaz, mas este estava protegido por um círculo violeta, repelindo o ataque. No íntimo, Valmiro sentia-se muito poderoso, pois estava colocando em prática, satisfatoriamente, algumas coisas que lera no grimoire e que normalmente levaria mais tempo para aprender. Conseguiu fazer o que só feiticeiros fazem: concentrar-se e manter duas magias simultaneamente. Atraiu o ovo para si e, ainda com telecinese, levitou para o alto. Dragonesa tentava, mas não conseguia tocá-lo por causa do perímetro de segurança que o protegia.

E foi assim até que o rapaz alcançou a montanha onde seu pai, congelado, e Tóro, petrificado, haviam permanecido. Conforme lera no livro de magias de Zândrus, só existiam duas maneiras de resolver o problema. Uma delas era arrancando as cabeças responsáveis por aquilo. A outra, era a própria Dragonesa quebrando o feitiço. Qual das duas Valmiro utilizaria? A Criatura olhava atenta, furiosa; andava quase que de lado. Seus bestuntos não paravam de balançar. O de cor cinza mirava os olhos do bruxo, tentando petrificá-lo, mas ele protegia-se com o ovo, colocando-o em sua frente; a fera desistia da idéia.

Subitamente, Valmiro colocou o objeto no chão. Com uma das mãos, criou uma esfera violeta e a arremessou em uma pequena pedra, destruindo-a. Depois, fez outra e apontou-a para o ovo. Dragonesa rugiu raivosamente; suas cabeças pareciam ter enlouquecido. Então, o rapaz apontou a outra mão para o bloco de gelo onde seu pai estava preso, e depois para a estátua de Tóro. A Criatura contorcia-se, rosnava. O bruxo aumentou a intensidade da esfera e ergueu a mão, como se fosse disparar no ovo. A Rainha dos Dragões via-se vencida. Sabia que não voltaria a gerar uma outra cria e que seus dias de vida estavam terminando. Não lhe restava outra alternativa a não ser ceder àquela chantagem.

A cabeça cinza aproximou-se do bárbaro e o fitou. Aos poucos, as extremidades do xetriquênio foram perdendo a coloração acinzentada. Seus dedos começaram a se mexer. Em instantes, o bárbaro havia voltado ao seu estado normal. Enquanto isso, a cabeça vermelha soltara pequenas chamas no bloco de gelo, derretendo-o vagarosamente. Volano começou a tossir e a tremer quando ficou completamente livre. Esperava-se que seu filho fosse abraçá-lo. Mas, ao invés disso, em nenhum instante o rapaz se desconcentrou do ovo. Não se sentia feliz em utilizar aquela tática, mas era a única que não arriscava a sua vida. Pelo menos, não por enquanto.

Seu pai e Tóro fitavam admirados aquela cena.

– Não fiquem aí parados! Ajudem-me! – berrava Valmiro.

– O que quer que a gente faça? – perguntou o bárbaro.

– Que tal matá-la? – sugeriu o bruxo, ironicamente, apontando para a fera alada.

– Estamos num espaço muito pequeno para combatê-la... Somos alvo fácil! – observou Tóro.

– Se é de espaço maior que precisamos... – enquanto falava, o mago puxou o bárbaro pelo braço e aproximou-se do filho – ... então para um espaço maior nós iremos. Pegue o ovo. – disse para Valmiro.

O bruxo agarrou o objeto com os dois braços. No seu esquerdo, o xetriquênio segurava-se. No seu direito, seu pai era quem se prendia. Os três correram e pularam. O rapaz gritou alguma coisa do tipo “não gosto de altuuuuuu...”, mas ninguém se importou com isso. Volano usava telecinese para afastar o trio da parede da montanha, enquanto o filho, usando a mesma magia, tentava acelerar a velocidade com que caíam, pois Dragonesa vinha logo atrás, batendo furiosamente suas asas.

O trecho de nevoeiro estava aproximando-se. O sol havia enfraquecido, o que tornou o vento mais gélido ainda. Entraram na cerração. Não conseguiam ver nada, apenas ouviam o bater de asas cada vez mais próximo. Passaram pela cerração. O chão estava ficando maior. A fera estava agora a menos de dois metros de distância. Não os atacava, provavelmente porque temia que isso afetasse o ovo. De uma forma ou de outra, estavam protegidos.

Faltava pouco para chegarem ao solo. Sabiam que quando isso acontecesse, um embate mortal com a Rainha dos Dragões finalmente teria de ocorrer.

Valmiro providenciou para que tocassem segura e levemente no chão. Dragonesa pousou a alguns metros de distância, suas cabeças firmes mirando o trio. O bruxo colocou o ovo em um canto.

– Ela só nos atacará quando achar que sua cria está segura. – observou o mago.

– É...? Só que eu não vou ficar esperando por isso!

O xetriquênio, que parecia possuído por uma grande fúria, juntou os punhos, agachou-se e bateu firme no chão. Uma rachadura começou a se formar e Tóro repetiu o ato, ampliando a fissura. A Criatura teve de dar um salto para escapar da fenda. E, quando fez isso, expeliu chamas na direção do bárbaro, o qual teve de rolar pelo chão para livrar-se do fogo, quase caindo na própria armadilha que criara para aprisionar a criatura.

A cabeça central virou-se para Volano e emitiu uma fumaça, como fizera da outra vez.

– Não desta vez, Dragonesa... Estou preparado para você agora. – falou, erguendo o cajado e provocando uma ventania, repelindo aquela fumaça, dissipando-a no ar. Algumas folhas de árvores próximas acabaram sendo congeladas.

A fera mostrava-se cada vez mais enfurecida. Parecia estar determinada a pôr logo um fim em tudo aquilo. Num ataque fulminante, concentrou alguns bestuntos no bárbaro, disparando-lhe teia, raio, chamas, fumaça e líquido. Tóro pulava de um lado para outro, tentando se livrar daquela investida. Dragonesa era insistente. O xetriquênio pegou o braço de pedra que estava em sua cintura e bateu em um dos raios lançados pela fera, no intuito de fazê-lo retornar à sua origem. Mas o membro de rocha simplesmente espatifou-se e seus pedaços não voltaram a se juntar, como ocorria anteriormente.

Agora era Tóro quem se mostrava furioso. Em um contra-ataque que mais parecia uma tentativa louca de se matar, o bárbaro avançou rumo à Criatura. As cabeças que vinham em sua direção eram desviadas com impiedosos murros.

– Ele não vai agüentar muito tempo! – esbravejava Valmiro.

– Ele só a está enfraquecendo...

Enquanto Volano fazia essa observação, erguia o cajado. O vento agitava-se. De repente, parou. Dois funis de vento em alta velocidade maiores que Dragonesa surgiram e avançaram em sua direção. A Rainha dos Dragões batia fortemente suas asas, mas não voava. Parecia tentar afastar os turbilhões com a sua rajada de vento. Mas não era isso que estava fazendo. Com um certo sacrifício, conseguira desfazer a magia do Mestre dos Magos.

E foi justamente para ele que a Criatura voltara-se agora, concentrando todo o seu ataque.

O mago teletransportou-se para o dorso da fera e tentou fincar seu cajado, mas não tinha toda a sua força e um dos bestuntos o abocanhou, arrancando-o do alto e jogando-o no chão com grande força.

Valmiro correu na direção do pai, que estava muito ferido, sangrando bastante; mal conseguia falar. Tóro ficou na frente de ambos para protegê-los. A Rainha dos Dragões parecia triunfante. Todas as suas cabeças rugiam fortemente, como se estivessem se preparando para o golpe final.

O jovem bruxo levantou-se por trás do bárbaro.

– Quando eu der o sinal, pule o máximo que puder para a direita. – sussurrou o rapaz.

– O que você vai fazer?

– Não temos tempo para explicações! Faça o que estou lhe dizendo!

A cabeça marrom de Dragonesa abriu sua mandíbula e foi em direção ao xetriquênio para abocanhá-lo. “Agora!”, gritou Valmiro. Tóro pulou, deixando caminho livre entre o bruxo e a bocarra. O jovem arremessou uma pequena, mas muito intensa esfera de um tom verde azulado cintilante para dentro daquela boca, a qual ficou bastante próxima do rapaz, pronta para cravar as presas em seu corpo.

Mas algo começou a ocorrer no interior daquele pescoço da Criatura. Primeiro, foi uma forte tremedeira. Depois, um perceptível inchaço. Tudo parou e parecia que nada mais aconteceria. Foi quando uma forte implosão espalhou pedaços de carne para todos os lados. Os humanos ficaram completamente cobertos pelo sangue de Dragonesa.

Isso só fez enfurecer ainda mais a fera. Mas, à medida que abria alguma de suas bocas, ainda que só um pouco, Valmiro lançava-lhe mais dessas esferas. Outras explosões ocorreram.

A Rainha dos Dragões parecia ter aprendido o truque do bruxo e não mais escancarava suas bocarras, que agora só eram duas. Era visível que o animal estava combalido, mas não demonstrava que iria desistir. Pelo contrário, parecia querer levar alguém consigo para a morte.

E o escolhido foi Valmiro.

A fera avançou e disparou um raio azulado. O rapaz conseguiu se esquivar. Pôde ver o que lhe aconteceria se não tivesse êxito nisso: o raio incisou a terra como uma faca corta uma macia carne. Olhou para o alto e viu Tóro trepando o pescoço da Criatura.

– Anda, joga logo! – gritava o bárbaro, forçando com as mãos uma das bocas a se abrir.

Valmiro não se demorou e arremessou outra esfera, a qual sumiu por dentro da fera. O xetriquênio, já sabendo do que viria depois, tratou de saltar. Ouviu o barulho da explosão e sentiu os pedaços do pescoço misturados ao sangue batendo em suas costas.

Restava apenas uma cabeça, a central, a que congelava. Tóro tentou repetir o ato, pulando no pescoço, mas Dragonesa foi mais ágil e bloqueou seu pulo com uma das asas. A Criatura parecia decidida a tomar todas as providências para não perder seu último bestunto. Alçou vôo e ganhou altitude. Provavelmente, atacaria agora de longe.

Tóro arrancou um pedregulho do chão e o rumou na fera, a qual o congelou tranqüilamente. Enquanto isso, Valmiro folheava rapidamente o grimoire. Dragonesa deu um vôo rasante e avançou para cima do xetriquênio, que conseguiu fugir por debaixo do dragão, segurando a ponta de sua cauda. A idéia primordial era impedir que a Criatura fizesse vôos; quem sabe, até dar-lhe algumas sacudidelas.

Mas obviamente a Rainha era muito mais forte que o bárbaro e as luvas de couro de leão e saiu arrastando o xetriquênio. Valmiro continuava lendo o livro de magias.

A fera pousou e começou a sacudir sua cauda, tentando explicitamente esmagar Tóro. O bárbaro largou o rabo, conseguiu alcançar uma das patas traseiras e imprimiu-lhe um grande murro. Dragonesa rugiu e voltou a ganhar altitude. Voava cada vez mais alto. Fez algumas voltas no ar e preparou-se para um novo ataque. Agora vinha na direção do rapaz. Valmiro jogou o livro no chão e ficou olhando atento para a Criatura, que se aproximava velozmente.

Quando a Rainha atingiu uma certa distância, teve a sua trajetória interrompida bruscamente. Um grande círculo violeta fora formado em torno de seu corpo.

– Perímetro de segurança... Nada entra, nada sai. – falava o bruxo, sorrindo e com os olhos tomados por um forte violeta.

Ergueu as mãos e as balançou levemente. O círculo, bem como o corpo de Dragonesa, seguiam o movimento de suas mãos. Valmiro jogou-as para o alto; a fera, “aprisionada”, acompanhou, atingindo uma grande altitude. Com toda a força, impeliu suas mãos para baixo. O círculo e a Criatura foram arremessados violentamente para o chão. Já bem próximos do solo, o perímetro de segurança desapareceu; o rapaz desfizera a magia.

A fera sofreu um forte impacto, provocando um pequeno tremor e o deslizamento de algumas pedras.

Quando atingiu o chão, Dragonesa acabou rugindo alto. Certamente, machucara-se bastante. Valmiro teve de ser bastante ágil nesse momento para criar e arremessar uma última esfera daquelas, aproveitando aquela bocarra que gemera de dor. Uma grande quantidade de sangue e de pedaços do pescoço voltou a se espalhar. A Rainha dos Dragões estava vencida, afinal.

Tóro correu para próximo do rapaz.

– O coração... como vamos tirá-lo? – perguntou o bruxo.

– Pode deixar que eu resolvo isso... – o bárbaro dirigiu-se para o que sobrara da fera.

Valmiro arrastou-se até o pai e procurou o amuleto que carregava. Quando o encontrou, levou-o imediatamente para o xetriquênio, que estava rompendo a couraça do animal com uma lasca de pedra. Depois, abriu o rasgão com as próprias mãos.

Volano balbuciava alguma coisa. O bruxo correu ao seu encontro e esforçou-se para ouvir o que dizia. Depois, voltou rapidamente para próximo de Tóro.

– Rápido! Meu pai disse que só temos um minuto depois que a Criatura Mística morre para que guardemos o coração no amuleto!

– Calma... Pode ficar sossegado... Está acompanhado de um xetriquênio, a melhor raça de bárbaros que Fesgra poderia ter.

Com essas últimas palavras, Tóro retirou sua mão do interior da fera. Estava completamente ensangüentada, com alguns pedaços de tripas. Na palma, o coração de Dragonesa. Ambos ficaram impressionados com o seu tamanho. Como era possível que uma Criatura daquela grandiosidade tivesse um coração tão diminuto o bastante para caber não só na palma da mão, mas também dentro do amuleto? Perceberam, ainda, que tal coração ia, gradativamente, diminuindo de tamanho, como se estivesse murchando. Resolveram deixar as perguntas para mais adiante, quando Volano estivesse recuperado.

Valmiro rapidamente colocou o valioso objeto dentro do amuleto, o qual irradiou um pequeno brilho róseo. O rapaz sorriu e Tóro o acompanhou.

Voltaram-se para o mago, que estava bastante ferido.

– Precisamos levá-lo para o Templo de Kira para que possa restaurar a energia vital. – informou o rapaz.

– Thapas... – balbuciava seu pai. – Mais... próximo...

– Ele tem razão. Thapas está recuperando Síva e com certeza poderá fazer o mesmo com ele. Temos de levá-lo para lá o mais rápido possível! – gritava o bruxo.

– Não sei o caminho aqui pela superfície, mas posso levá-lo em meus ombros sem nenhum problema se acharmos o túnel cavado por Dinfa!

– Ótimo. – concordou Valmiro, pegando o grimoire do chão e guardando por dentro de suas vestes.

– Aproxi... aproximem-se... – falava o Mestre, visivelmente forçando as palavras a saírem.

Valmiro ficou ao lado do pai. Tóro pegou o ovo e juntou-se ao grupo. O rapaz pareceu não gostar daquilo. Uma luz amarelada contornou o trio. Os olhos de Volano tinham a mesma tonalidade. Em instantes, os humanos desapareceram.

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Peter Ângelo