Aniel - prévia

I

Os ponteiros de um velho relógio marcam três horas da tarde, ela ainda estava sentada na cama olhando para a tevê desligada, seus pensamentos vagavam por lembranças antigas, mas um ruído a fez voltar a realidade, a mulher olha em volta, o quarto estava mal iluminado, somente a luz do sol entrava pelas finas frestas da janela logo a frente. Cansada sua visão vai para o chão, fica um tempo olhando sues pés descalços e suas unhas bem feitas. Novamente o ruído, mas dessa vez, quando volta a tentar achar a fonte do som observa algo que não estava ali antes. Em um dos cantos do pequeno quarto há uma linda mulher parada a olhando fixamente.

Lentamente a outra começa a caminhar em direção a cama, seus cabelos longos e ruivos balançam suavemente a cada passada. A bela ruiva se coloca em frente à tevê desligada, as duas se olham nos olhos, nunca haviam se visto antes, mas sabiam exatamente o que ia acontecer. “Lucia” fala a mulher da cama para a outra enquanto passa a mão suavemente no lençol para a ruiva se sentar. Lentamente Lucia se coloca ao lado da mulher em sua cama, novamente se olham e a outra volta a falar.

- Você sabe quem sou, não sabe?

- Sei sim... – Uma lágrima solitária desce pelo seu rosto, com muita delicadeza a outra mulher a limpa com sua mão.

- Ótimo, então podemos começar?

- Sim, podemos... – As palavras mal saem de sua boca. Lucia sabia o que ia acontecer, sabia desde que a viu ali sentada em sua cama, sua hora havia chegado.

- Lucia, abra a gaveta do criado-mudo e pegue o que há dentro. – Obedecendo a ruiva pega com sua mão tremula um revolver. Quando fecha a gaveta percebe que seu despertador está quebrado, mas não da importância, ele não será mais útil.

Lucia senta novamente ao lado da mulher na cama e a olha nos olhos, estranhamente não se sente triste ou algo do gênero e sim eufórica como se esse breve momento fosse o ponto máximo de sua vida.

- Pronto querida, agora o coloque em sua boca. O gosto do metal é ruim, mas logo passa... – E novamente obedece. – Pode apertar o gatilho.

A arma dispara, sangue e pólvora sujam os lençóis, o revólver cai sobre as pernas ainda quentes de Lucia. Vagarosamente o corpo pende para o lado até finalmente ir totalmente morto ao chão.

A mulher se levanta, olha o corpo sem vida sobre o carpete, pobre Lucia tão nova e tão cheia de sonhos, o que as drogas não fazem... Olha o relógio na cabeceira da cama, três e dez, já está na hora de voltar. Vai ao banheiro, seus cabelos estavam embaraçados, não podia sair assim, mas também não podia se demorar, com certeza o tiro havia sido ouvido ao redor. Seus cabelos loiros são devidamente penteados e amarrados com um elástico que sempre deixa em seu pulso esquerdo, coloca seus tênis, sai.

A porta é aberta revelando um dia ensolarado, a luz quente bate com força na pele branca da mulher, porém ela não se incomoda, o calor do Sol a faz se sentir um pouco mais viva. Seus passos são ritmados e alegres, quase como “pulinhos” de crianças. Seu carro estava perto, não precisava dirigir, mas adorava isso, as chaves são retiradas do bolso, porem quando ia abrir a porta do veiculo a mulher sentiu uma forte cólica, chegando inclusive a tirar seu equilíbrio a fazendo ir ao chão. Uma crise de tosse a ataca e um pouco de sangue sai de sua garganta como se a rasgasse sujando o asfalto a frente. Ainda debilitada tenta se levantar, o carro ao seu lado ajuda a se manter de pé. Não entende o porquê, isso não deveria acontecer, não com ela.

Uma viatura da policia passa pela rua e para em frente ao pequeno condomínio em que havia estado há apenas alguns minutos. A chave é colocada em seu devido lugar, gira a ignição, o ronco de seu V8 a faz se sentir um pouco melhor, engata a primeira e logo aquela simpática vizinhança some de vista.

II

O centro da cidade estava movimentado de mais para uma terça à tarde. Estaciona em frente a um grande hotel, sai do carro, a chave é entregue ao manobrista, entra e segue em direção a recepção.

- Boa tarde Senhorita Aniel. – Fala a recepcionista com grande entusiasmo.

- Boa tarde Roberta, alguma mensagem pra mim hoje?

- Sim, há uma. O Senhor Luis pediu para você entrar em contato com ele assim que possível.

- Hmm... Obrigado Roberta, você poderia me dar à chave do meu quarto?

- Claro Senhorita.

Diferente do aposento em que havia estado a menos de uma hora, seu quarto está muito bem iluminado. A luz alaranjada da tarde entra sem pedir licença pelas grandes janelas. Sem se importar com a organização começa a se despir, cada peça de roupa e jogada em ponto diferente do cômodo, quando finalmente chega ao banheiro já esta nua com uma trilha a suas costas. O chuveiro é aberto e a água gelada cai em seu corpo quente, nada podia ser melhor nesse dia de calor que um banho frio. Alguns minutos depois quando já se sente bem relaxada o chuveiro é desligado, uma toalha limpa é pega e seu corpo esbelto é delicadamente seco.

Ainda era cedo, apenas dezessete e vinte, mas a loira já estava de camisola deitada em sua cama, não planejava sair mais pelo resto do dia, a dor em seu estomago retornava fraca algumas vezes, então era melhor ficar e descansar.

Dezoito horas... Toca o telefone, ela acorda, havia relaxado tanto em frente à tevê que acabara adormecendo. Um pouco sonolenta atende.

- Sim? – Segura um bocejo com sua mão livre.

- Senhorita Aniel. – Fala levemente constrangida a recepcionista do hotel. – Desculpe acorda-la, mas o Senhor Luis está na linha, posso passá-lo para a senhorita?

- Ah, claro, pode passar.

- Só um momento. – E após poucos instantes a voz de um homem sai do outro lado da linha.

- Alô Ani?

- Sim querido, o que foi? Você estava me procurando, não estava?

- Estava, quero que você se arrume, sei que é difícil, mas quero que você fique ainda mais linda hoje. – Sua bela voz parecia um tanto eufórica, como se ocultasse uma felicidade de algo há muito tempo esperado.

- Ãhm?

- Daqui a pouco alguns vestidos que eu comprei para você devem chegar ai, quero que você escolha um e use.

- O que você ta planejando heim? – Somente agora que se sentia totalmente desperta.

- Isso é surpresa, eu te pego ai as nove, certo?

- Claro querido.

- Beijos.

- Beijos tchau. – Desliga o telefone. Fica por alguns instantes olhando para o aparelho desligado, seus planos de uma longa noite de sono iam ter que esperar.

Sai da cama, começa a se preparar para mais um banho, mas assim que coloca seus pés dentro do banheiro alguém bate na porta. “Sim?” fala enquanto põe um roupão e segue para atender.

- Boa tarde. – Diz a pessoa do outro lado da porta. – Eu sou representante da Dior e vim a pedido do Senhor Luis Álvares para ajudá-la a escolher seu traje para a noite de hoje. – Aniel fica um pouco espantada com aquilo, em três anos de namoro isso nunca havia acontecido. Abre a porta, mas não vê somente uma pessoa do outro lado e sim cinco, mais a frente à mulher que havia falado e as pessoas atrás pareciam ajudantes, todos eles carregam caixas da grife Dior.

Um a um entram no quarto, as caixas são postas em cima da mesa central do aposento e começam cuidadosamente a retirar as peças delas.

- Bem Senhorita Aniel, Eu me chamo Joana, nós viemos aqui a pedido do Senhor Luis para prepará-la para essa noite especial.

- Oi Joana, mas tanta gente? Ele havia me dito que tinha comprado apenas alguns vestidos, mas só isso...

- Homens, eles gostam de simplificar tudo, mas um vestido não é tudo para você ficar ainda mais perfeita, não é verdade?

- É...

- Bem, primeiro nós vamos escolher o vestido e os acessórios, depois nós temos a maquiagem, que vai ser feita por uma ótima profissional, a Marry d’Lacre e depois o cabelo, que vai ser feito por um grande amigo meu, ele faz coisas incríveis e por ultimo as jóias, tudo bem para a senhorita nessa ordem?

- Ãhm, claro. – Fala sem graça.

- Bem, posso chamar as modelos? – Continua Joana sem se importar com o estado de surpresa de sua cliente.

- Modelos, como assim? – Agora se encontrava mais perdida do que nunca.

- As meninas com os vestidos, para você escolher. Acredite, é muito melhor escolher as peças vendo como elas caem no corpo e o movimento ao andar, afinal, você não vai ficar parada numa vitrine. – Sorri.

- Ah, claro. Você tem razão, pode chamar. – As duas se sentam na sala esperando a entrada das modelos. A cada garota que surge as peças vão ficando mais e mais glamurosas, por fim Aniel escolhe um vestido de seda preta, o top decorado com bordados prateadas, simples, elegante e de ótimo caimento.

- Ótima escolha. – Joana em tom de aprovação.

- Todos são tão lindos, assim fica difícil...

- É verdade, todos eles são maravilhosos, mas você fez uma excelente escolha. Posso sugerir os acessórios para o vestido?

- Ah, claro. Eu mesma não ia saber escolher direito. – Aniel ainda esta confusa no meio de tudo aquilo.

- O que você acha dessa pequena bolsa de couro branco? Veja a costura e os detalhes em prata, acho que combinam perfeitamente com você e o vestido. – Sorri.

- Acho que vai ficar ótima mesmo com o vestido. – Poucas vezes havia se produzido tanto, sair para se divertir não fazia parte de seu cotidiano, suas obrigações tomavam grande parte de seus tempo. Luis sempre reclamava que eles mal se viam, mas o que poderia fazer? Mesmo que realmente tivesse uma solução ela não mudaria nada.

- As duas peças têm uma harmonia incrível, o tom da sua pele vai dar um toque especial. Seus olhos são incríveis, acho que nada a deixaria menos que perfeita.

E os preparativos para noite continuaram, o cabelo que era liso ganhou lindos cachos que caiam pelos cantos do rosto acentuando ainda mais suas feições, uma maquiagem no tom azul suave realçava seus olhos de safiras, no pescoço apenas uma gargantilha e brincos no formato de rosas cobertas por pequenos diamantes, e como prometido no inicio da noite Aniel estava mais linda do que jamais esteve.

Nove badaladas. Já esta na hora de descer, quando se dirigia para a porta seu celular toca, era Luis. Por um estranho motivo não atende, volta a tocar na maçaneta e sai do quarto em direção ao Hall de entrada, seu telefone fica se movendo em cima da mesa com suas vibrações até cair no chão acarpetado.

Sai do elevador, o lugar estava movimentado, pessoas saiam e entravam, enfim, elas não importavam. Assim que seu primeiro passo ecoou pelo Hall todos a olharam, não tinham como não notar algo tão radiante. Aniel fica parada um instante procurando Luis, logo o encontra, ele um homem jovem, realmente bonito estava perto da saída com o seu celular junto ao rosto.

- Oi querido, ligando pra quem? – Brinca ao se aproximar ainda com todos os olhares sobre si.

- Pra você, quem mais. – A olha por inteiro. Você está linda, mais do que linda, perfeita.

- Assim você me deixa sem graça... – Fala encabulada mesmo sabendo ser a mais pura verdade.

- Impossível isso, mas a gente já esta um pouco atrasado. – Ficam de braços dados. – Vamos?

- Sim vamos. – E juntos entram no carro de Luis, um Porsche Boxster prata.

III

À noite no centro é sempre movimentada, o que já se tornou normal nas grandes metrópoles. Por volta das vinte uma e vinte Aniel e Luis entram na 8a. Avenida, o carro começa desacelerar a medida que se aproximam do restaurante, o Tavern on the Green. Enquanto os dois esperavam o manobrista a loira nota que o lugar esta fechado para uma festa privada.

- Querido, hoje eles estão fechados para uma festa particular, você tem certeza que é aqui? – Pergunta um pouco preocupada.

- Eu sei disso meu bem, eu fiz a reserva. – Fala com um sorriso no rosto.

- Você fez isso? E quem são todas essas pessoas que estão chegando? – Questiona ao sair do carro.

- Eles? – Olha em volta. – Minha família, alguns amigos íntimos, e os outros eu não sei, mas isso já é coisa da minha mãe. – Vendo a cara de espanto de sua namorada continua a falar. – Eu tentei localizar sua família minha linda, queria que eles estivessem aqui hoje, mas não achei ninguém...

- Mas... – Ainda não havia se dado conta do que estava acontecendo quando a porta se abriu e gentilmente é pega pela mão e levada para dentro.

- Nada de “mas”, eles estão ansiosos, eu tentei te apresentar varias e varias vezes, mas você sempre dava um jeito de fugir, usando esse seu trabalho como desculpa, hoje não tem jeito. – Fala com um sorriso carinhoso em seu rosto.

Juntos entram no restaurante, que já está quase todo cheio. A decoração era simplesmente esplendida, orquídeas enfeitavam grande parte do lugar, tudo combinava, não havia nada fora de harmonia. Em cada mesa que os dois passam Luis faz uma breve pausa para finalmente apresentar sua preciosa namorada. Após vários minutos o casal chega na mesa onde irão jantar. Reservada para a família mais intima. Ali esperando por eles estavam Luis Álvares Pai, Valeria Álvares e sua filha mais nova Letícia.

- Mãe, Pai, Lê. – Fala Luis para os da mesa. – Quero finalmente apresentar a vocês minha preciosa Aniel.

- Enfim nos conhecemos. – Diz Valeria, a loira só consegue responder com um sorriso tímido.

- Vamos sentando, não fiquem ai parados de pé. – Começa Luis Pai. Por um breve momento Aniel achou que no momento em que estivesse sentada a mesa a situação ia ser mais tranqüila, porem não podia estar mais enganada, todos só olhavam para ela, por fim percebeu quem ia ser o centro das atenções essa noite. – Então Aniel... – Volta a falar quando os dois já estavam devidamente acomodados. – O Luis aqui sempre falou muito bem de você, mas nunca contou muita coisa a seu respeito.

- É. – Intromete-se Letícia. – Você é um verdadeiro mistério para nós.

- Então, fale um pouco de você, onde você está morando, onde trabalha essas coisas. – Continua o pai. – Afinal eu quero saber bem com quem meu filho está namorando, três anos em um dia não é nada fácil. – Ri um pouco.

- Bem eu... – Não sabia o que dizer, nada surgia em sua mente. – Bem, eu estou morando no Palace atualmente.

- O hotel? – Pergunta Valeria.

- É mãe, ela mora lá desde que nos conhecemos, acho que já tinha comentado isso com vocês. – Comenta Luis.

- É, acho que já tinha dito algo, mas por que você mora em um hotel? – Pergunta a mais nova curiosa.

- Morando lá não preciso me preocupar muito, todo dia alguém atrás meu café, sempre quando volto está tudo arrumado, eu gosto...

- É com certeza tem suas vantagens. – Diz o pai de Luis pensando no assunto e se recordando de suas ótimas férias que havia passado em Veneza no mês anterior.

- O Luizinho já me conto várias vezes como vocês dois se conheceram, mas eu queria ouvir de você Ani. – Letícia sempre fora uma menina romântica, assim como seu irmão, e toda vez que ele contava como havia conhecido Aniel, a garota adorava.

- Bem... – Fica um pouco corada, normalmente não falava sobre esse tipo de coisa. – Foi um pouco estranho, eu havia parado para tomar um café, e quando voltei pro meu carro eu vi o Luis ali parado, olhando pra ele.

- Vocês deviam ver o carro dela. – Fala Luis empolgado.

- Sim, e que carro que é? – Não podia ser um carro qualquer pensa Luis Pai, afinal seu filho sempre teve os melhores automóveis, e o fato de o veículo dela ter chamado tanto a atenção dele o deixou curioso.

- É um Ford Shelby, Mustang 1965 GT 350, V8, a pintura é exclusiva, um preto aperolado com uns leves detalhes em fosco, só da pra ver quando o Sol bate de jeito e também com duas listras brancas no capô. – Gesticula um pouco na tentativa de tornar a explicação mais visível. – Quase tudo nele é único. – Seu carro, seu orgulho. – Ele achou engraçado eu ser a dona do carro, então a gente começou a conversar e mais tarde nós fomos jantar. Foi assim não foi? Luis concorda com a cabeça.

- E quando vocês começaram a namorar, foi quanto tempo depois disso? – Agora era Valeria que fazia a pergunta.

- Foi um pouco menos de sete meses...

Durante o resto da conversa Aniel continuou na defensiva, suas respostas sempre vagas e todos notavam que a bela loira estava se sentindo desconfortável em ser o centro das atenções. Mesmo quando o jantar foi servido a conversa não parou, nela havia uma aura de mistério que fascinava a todos. A família de Luis entendeu logo o porquê da paixão do filho, a garota além de sua beleza quase indescritível possuía uma atração enorme, quase sobrenatural, e mesmo não estando gostando de tudo aquilo, seus gestos eram meigos e suas palavras delicadas fazendo todos a sua volta se sentirem extremamente bem.

- Mas Aniel. – Começa o pai. Nós tentamos localizar sua família, no entanto não conseguimos, não conseguimos nada...

- Faz muito tempo que não tenho noticias deles. – Limpa delicadamente sua boca com um guardanapo.

- Mas que triste, porque disso? – Valeria sempre foi muito ligada a sua família, sempre os mantinha por perto, a felicidades de suas crianças era como dela própria, dedicava todo seu tempo para que o deles fosse perfeito e não conseguia imaginar a vida solitária que essa menina levava.

- Não sei, algumas coisas simplesmente acontecem...

- E você é de onde? – Pergunta novamente Luis Pai.

- Suíça.

- Suíça, que legal! Lá e muito lindo. – Letícia já havia ido de férias a Zurique há dois anos.

Aniel sentia-se como em um interrogatório, perguntas e mais perguntas feitas sem descanso, uma hora não agüenta mais, tinha que ter um tempo de tudo aquilo.

- Desculpem-me, mas já retorno. – Se levanta e segue em direção ao toalete.

- Só um pouco Ani, preciso ir também. – A jovem Letícia se põe de pé e a segue. As duas entram juntas no banheiro, que naquele momento se encontrava vazio. Letícia vai direto ao espelho retocar a maquiagem, Aniel simplesmente se apóia no mármore e abaixa a cabeça. – Você está bem Ani? Você não parecia estar muito bem durante o jantar. – A garota parecia preocupada com a namorada de seu irmão, mesmo tendo a encontrado pela primeira vez há apenas 2 horas, sentia como se já a conhecesse há vários anos, graças ao que seu irmão lhe contava incansavelmente. Mas tinha plena consciência do fato de não saber realmente quase nada sobre a loira.

- Eu estou bem, só não gosto desse jantar todo... Preciso descansar um pouco.

- Sabe, o Luis te ama mesmo, você é muito especial pra ele, e é importante que nossos pais gostem de você. Hoje é um dia muito especial. – A toca no ombro.

- Bem... – Respira fundo. – Acho que posso voltar, vamos?

- Claro Ani. – E as duas voltam para a mesa.

Luis parece muito contente junto aos pais, talvez até mais contente de qualquer outra vez que se lembre. Quando Aniel sentou-se sentiu um frio na barriga, algo estava errado. Ele a fitava estranhamente, seus olhos brilhavam. Aproximou-se e com muita delicadeza acariciou a mão da loira que segurava com cuidado um copo de água, depois se dirigindo a todos no restaurante começa a falar.

- Hoje é um dia muito especial para mim, por isso todos vocês estão aqui. Hoje faz quatro anos que conheci a minha alma gêmea, a mulher que me fez ser feliz a cada segundo que passei ao seu lado. – Nesse momento Luis se vira para sua namorada. – A mulher que eu quero passar toda minha vida junto a ela. – Se ajoelha em frente à perplexa Aniel e retira do bolso uma pequena caixa com um lindo anel de diamantes dentro. – Aniel... – Fala pegando na mão da garota e a olhando nos olhos. – Você quer se casar comigo? – Ela não responde, fica em silencio, seu rosto pálido... Após alguns poucos segundos lentamente sua boca se abre e todos ouvem sua resposta.

- Não... – Responde de cabeça baixa sem olhá-lo nos olhos. Todos no lugar ficam estarrecidos, isso não era possível, e no meio do silencio criado por sua escolha Aniel se levanta e sai do restaurante, chama um táxi e rapidamente some de vista.

IV

Seu corpo estava todo dolorido, essa ultima semana havia sido com toda certeza a pior de sua vida, e ele sabia que ainda não tinha acabado, não agüentava mais. Para sua BMW pela ultima vez em frente ao seu prédio, nunca mais poderá andar nela de novo, é do banco agora, também não sabia quanto tempo ia poder ficar com seu apartamento, a certeza do despejo o assustava e era somente uma questão de tempo, maldita bolsa!

Seus passos mórbidos não são notados pelo sonolento porteiro, talvez por causa do sono, talvez por causa da pequena tevê a sua frente, no entanto isso realmente não importava, era até melhor. Entra no elevador, vigésimo segundo andar, espera. A porta mecânica se abre à frente, sai, a luz do corredor se acende com o som de seus passos, segue para o apartamento. De tão tumultuada que se encontrava sua mente o homem acaba por não perceber que a porta estava destrancada, entra e a fecha a porta as suas costas. Todo o lugar havia sido preenchido pelo breu da noite, exceto por um canto da sala onde um pequeno abajur emanava uma fraca luz, não lembrava de tê-lo deixado ligado, com tudo que estava acontecendo isso não o surpreendia.

Ainda com as luzes desligadas o homem pega uma garrafa de conhaque no armário e um copo na cozinha, queria comer algo, desde que sua esposa o havia deixado não tinha se alimentado com nada que realmente prestasse. Senta em uma poltrona, a garrafa em uma mão e o copo na outra. Uma, doas, três doses bebidas, quando despejava a quarta percebe alguém sentado no sofá próximo ao abajur. Acaba de encher seu copo e começa a falar.

- Enfim... Chegou a hora não é? – Toma todo o conhaque em um único gole e volta a encher o copo.

- É, chegou. Você está pronto? – Ele não sabia dizer se a pessoa era homem ou mulher até a ouvir falar, e claramente era uma mulher.

- Sim, quero me ver livre disso tudo. Não tenho mais razão pra continuar, perdi tudo o que tinha, minha mulher me... – É interrompido pela outra.

- Certo. – Coloca-se de pé, caminha até o homem e estende sua mão. – Vamos.

- Vamos. – O Homem pega na mão dela, agora podia ver como era linda, não imaginava que seria assim.

Os dois seguem em direção a sacada do apartamento, à noite esta realmente bonita, sem nuvens, toda a cidade noturna podia ser vista com suas belas luzes coloridas, ainda era possível também ver algumas estrelas, mas a metrópoles ofuscava as menos brilhantes. A mulher o ajuda a subir no pequeno peitoril da sacada, não havia vento e se podia ficar em pé ali perfeitamente.

- Quando quiser. – Diz a moça sentada em uma das cadeiras que havia por perto, seus belos cabelos loiros dançavam conforme a suave brisa os tocava.

- Certo... – Fica parado por alguns segundos até dar o fatídico passo para a morte. O homem cai em silencio, o chão se aproxima rapidamente, fechas os olhos. Do apartamento a mulher observava a queda, ele diminui aos seus olhos até virar com muito barulho uma mancha vermelha em cima de algum carro parado no acostamento em frente ao prédio.

O som da batida pôde ser facilmente ouvido pelas pessoas em volta, o alarme do carro disparou em reação ao impacto. Tinha que sair rápido dali. Deixa o apartamento, entra no elevador e segue para o térreo. O porteiro estava totalmente desperto, havia saído de sua pequena guarita para ver o que ocorrera, e se espantara com o que havia visto. “Com licença senhorita” fala enquanto passa correndo pela mulher para chamar a policia. Sai do prédio, logo a sua esquerda estava o corpo do homem, caído em cima de uma BMW E60 5 Series, “Azar do dono” pensa. O teto do automóvel estava totalmente destruído, assim como os vidros. O impacto com o carro fora tão forte que chegou a arrancar um dos braços do morto, toda a calçada em volta estava suja de sangue e algumas outras coisas. A mulher volta a caminhar o mais rápido possível, mas a bela noite não é desperdiçada, resolve voltar para casa a pé, assim aproveitando mais a paisagem.

V

Três dias depois.

Tudo acaba com um leve som, sua pequena bolsa se fecha com o estalo do feixe, ali dentro leva-vá tudo que precisava. Com calma coloca o acessório de couro sobre a mesa e caminha até a sacada de seu quarto, há três anos morava ali, a idéia de deixá-lo a magoava um pouco, sempre soube que nunca devia se apegar a nada, mas com o tempo essa “tarefa” ia ficando mais difícil. Seus olhos percorrem a cidade sem pressa, estava linda. Nesses últimos dias, o Sol parecia sempre presente, realçando as belezas da grande metrópole. Olha para trás por um instante, para sua pequena bolsa sobre a mesa, iria partir ainda hoje, era preciso. Seus pensamentos lhe pareciam turvos desde o almoço há três dias, Aniel algumas vezes não se reconhecia mais.

Uma ultima apreciação da vista ao seu redor antes de ir, quando a alça de sua bolsa se entrelaçava com seus delicados dedos alguém bate a porta, ela para, fita a entrada por um momento antes de começar a caminhar até lá, após dois passos uma voz familiar invade o quarto, era Letícia.

- Ani! Abre, a gente precisa conversar! – A porta é aberta e a garota entra no quarto sem pedir licença. Sua voz ainda de tom levemente infantil estava carregada de frustração, decepção e raiva. – Aniel! Como você pode ter feito aquilo com meu irmãozinho na frente de toda aquela gente. – Enquanto fala começa a lagrimejar, porem segurava o soluço.

- Calma Letícia... – Inicia calmamente após fechar a porta. – Eu tive meus motivos... Você tem que entender... Devagar caminha até o sofá da sala.

- Tu não tinhas o direito! – Começa a chorar.

- Vêm, senta aqui do meu lado pra gente conversar. – Aniel estende a mão para a garota, mas seu gesto é ignorado. Letícia fica em pé observando a loira com seus olhos úmidos até que por fim se coloca do outro lado do sofá.

- Como você pode ter feito aquilo, ele ficou arrasado! Todos ficaram! Por que Ani? Por quê?

- Shhh... Calma... – Aniel coloca a cabeça de Letícia sobre seu colo e começa a acariciar-la ma tentativa de deixá-la mais tranqüila antes de começarem a conversar realmente, assim ficam por alguns minutos.

- Ani... Eu já estava adorando ter você como cunhada... Você é tão bonita, legal...Tão especial... – Nesse momento já havia parado de chorar, no entanto seus soluços continuavam. – Até meus pais tinham amado você... Por que Ani? Por que você fez isso?

A loira fecha seus olhos e pensa; pensa no que dizer, no que fazer, não poria contar seus verdadeiros motivos, nunca pôde, sempre solitária entre eles. Novamente vê a cidade pacífica lá fora, sua atenção se perde ali por um curto período até se voltar para a garota sobre suas pernas e começa a falar.

- Lê, eu gosto muito do seu irmão, mas nós nunca tínhamos falado nada sobre casamento, nunca mesmo, eu não estou pronta para um compromisso desses, tenho meu trabalho e minha vida...

- Mas você não pensou em como meu irmão ai ficar não? Ele não queria que eu falasse com você, mas eu tinha que vir!

- Não Letícia... Na hora não pensei em como o Luis ia ficar, só queria sair de lá o quanto antes... – A outra se levanta e a olha nos olhos.

- Como você pode ser tão egoísta! – Novamente lágrimas escorrem por seu jovem rosto, suas pernas tremem, fica difícil se manter de pé, Aniel também se levanta e a abraça.

- Na hora eu estava tão confusa que não consegui fazer outra coisa... Mas agora não tem volta Lê... – Ainda chorando em seus braços Letícia continua.

- Eu te odeio! Eu te odeio...!

- Calma Lê, calma... – As duas ficam abraçadas ali por minutos. A garota para de chorar e se acalma, então Aniel volta a falar. – Letícia eu já estou de saída, vamos indo.

- Você vai embora daqui? – Pergunta ainda aos tropeços devido à insistência dos soluços.

- Sim, vou trocar de hotel... – Novamente pega sua bolsa. Vêm, eu te do uma carona. – Estende sua mão para a outra, ainda chateada Letícia aceita o convite e as duas saem de mãos dadas do quarto.

Letícia ainda segurava a mão da misteriosa Aniel enquanto o manobrista buscava o carro da loira. Só agora percebia como as respostas dela haviam sido tão vagas no jantar, evasivas do um jeito tal como se ocultasse algo, talvez ela fosse uma farsa, no entanto isso devia ser apenas uma peça de seus pensamentos bobos criados pela raiva. Sem muita demora ele aparece, o precioso Mustang 65, agora entendia porque o irmão havia se impressionado, o carro parecia original de fabrica, mas um olho astuto notava as pequenas mudanças feitas, todo preto com duas listras brancas sobre o capô, nas laterais podia ser visto alguns desenhos tribais em preto fosco. Os acentos em couro branco com detalhes em preto e painel exclusivo, apenas algumas das coisas que tornam o carro especial, Letícia conhecia um pouco sobre esse mustang, seu irmão já o havia descrito algumas vezes, mas vê-lo era diferente, mesmo para ela que nunca havia se interessado muito pelo assunto. Aniel vai para o volante, Letícia entra logo atrás.

- Lê, para onde quer que eu a leve? – Fala ao entrar na movimentada avenida.

- Pode me deixar em casa mesmo... Você sabe onde é, não sabe? – Não tinha coragem de olhar diretamente para a outra, ainda estava confusa e magoada por seu irmão, sua cabeça encostada na janela, os olhos fitavam a imagem refletida de Aniel, mas fingia observar as pessoas que andavam na calçada a poucos metros.

- Sim, sei onde é... – Nada mais é dito por um longo tempo até que Letícia percebe que não estavam indo no caminho correto.

- Ani, onde estamos indo, posso saber? – Desconfiada.

- Ah! Não te avisei não é? A gente vai tomar um café antes de eu te deixar em casa. – Fala com um grande sorriso.

- Uhm... Tudo bem. Acho que um café vai me fazer bem mesmo.

- Que bom, porque estamos chegando. – O carro aos poucos vai parando em frente ao aconchegante café La Fortuna. – É aqui! Sai do carro. Não é adorável? Foi aqui que seu irmão me conheceu, sabia?

- Não... – Aniel novamente a pega pela mão e a guia para dentro do lugar.

As duas ficam em uma mesa próxima a uma janela para poderem sentir a agradável brisa da tarde, muito constante nesses últimos dias. Para beber dois caputinos são pedidos, rapidamente chegam. Letícia pega com cuidado a quente xícara com as duas mãos e assopra levemente para esfriá-la um pouco.

- Você não vai queimar a língua, pode tomar.

- Certo... – A xícara vai a boca, toma um gole, como Aniel havia dito ela não se queima, o caputino estava delicioso e na temperatura certa. – Que gostoso Ani. – Sorrindo.

- Aham. – Também toma um pouco. – Letícia, você esta estudando não esta?

- To sim, faço arquitetura aqui mesmo.

- Que legal. Você esta seguindo os passos de sua mãe, ela é arquiteta também, não é?

- É sim, mas não faz mais projetos como antes, você sabe, com o papai e Luis trabalhando ela não tem com que se preocupar.

- Verdade...

- Mas eu tava em duvida se fazia mesmo arquitetura, sabe como é, antes não sabia se ia fazer porque eu queria ou porque minha mãe queria.

- Entendo... Mas agora você não tem mais essa duvida, certo?

- Eu to adorando o curso, é bem legal. – Letícia abre um grande sorriso de satisfação, o primeiro que vê desde que a garota entrou em seu antigo quarto de hotel.

- Que bom, é sempre bom gostar do que se faz.

- E você gosta do que você faz? – Pergunta curiosa, durante todas as conversas que teve com seu irmão, Luis falava que o trabalho de Aniel só os atrapalhava, mas nunca havia dito que trabalho era esse, talvez porque ele mesmo não soubesse.

- Adoro o que eu faço. – Toma mais um pouco do caputino. – Letícia, você não vai acabar de beber?

- Ah! Vou sim, acabei esquecendo. – Fala sem graça.

As xícaras ficam vazias e a tarde chega ao fim, as duas deixam o La Fortuna, Letícia já não estava mais com raiva, não entendia bem, mas sabia que a outra tinha seus motivos para ter feito o que fez e que lamentava magoar Luis, infelizmente agora não havia volta. Olha para o horizonte, por traz de algumas nuvens a alaranjadas o Sol percorre iluminando o grande corredor de prédios a sua frente fazendo o entardecer ficar mais bonito que o resto do dia.

Aniel agora levava sua acompanhante para casa, gostaria de passear um pouco mais, no entanto não era possível, sabia que a família de Letícia devia estar um pouco preocupada com a garota. Já era noite quando o mustang 65 parou em frente a um luxuoso prédio no centro.

- Obrigada pela carona Ani. – Sai do carro e se apóia na janela. – Onde você vai ficar agora?

- Ah Lê... Não posso dizer, quero um tempo de tudo isso. Não quero que seu irmão me procure ou algo assim.

- Ani, você vai falar com ele alguma hora não vai? Foram três anos de namoro, vocês têm que conversar.

- Talvez daqui a umas semanas, mas agora não, to sem condições disso.

- Mas Ani... – Não consegue completar a frase.

- Tchau Letícia. – Não espera resposta, o V8 ronca com a aceleração, a garota se afasta do carro que sai pela rua e desaparece logo em frente ao virar uma esquina.

VI

Aniel estaciona seu precioso mustang novamente em frente a um prédio altamente luxuoso, apenas a algumas quadras de onde havia deixado Letícia. Sai do carro, pega sua bolsa no porta-malas, entra no edifício, o porteiro a cumprimenta com um amigável sorriso que a loira retribui com a mesma simpatia, já fazia algum tempo que não vinha aqui. Espera um pouco pelo elevador, algumas pessoas saem dele, pareciam ir a alguma festa, entra, aperta o botão da cobertura e aguarda ao som de alguma musica antiga, não sabia dizer o título, talvez Respect de Aretha Franklin, mas enfim, não sabia dizer. A porta a sua frente se abre revelando outra porta, porém não de metal, e sim de carvalho muito bem trabalhado, se aproxima e toca a campainha que ecoa dentro do apartamento. Alguns segundo depois a porta é destrancada e aberta, do outro lado uma mulher nos seus trintas anos, muito bonita de cabelos longos e castanhos a atende com um grande sorriso aberto.

- Aniel! Que bom que você realmente veio. – Fala a abraçando.

- Obrigada por me acolher por esses dias Clarisse. – Diz um pouco encabulada. – Eu não sabia pra onde ir assim em cima da hora.

- Que isso! É um prazer ajudar depois de tudo que você fez por mim. Vamos entrando, deixa que eu pego essa bolsa. – E antes que pudesse dizer “não” Clarisse já esta com a pequena bolsa em suas mãos a levando para dentro. – E então Ani, como você ta? Faz um tempo que não nos víamos, como vai aquele namoro?

- É, faz tempo mesmo que a gente não se fala. – Entra no apartamento, lugar realmente grande e muito bonito, porém de poucas cores, quase tudo era branco e imaculadamente limpo.

- Mas então menina, que bom que você vai ficar aqui! Eu já pedi uns dias de folga pra gente se divertir! – Muito animada vai até o bar e pega duas taças e uma garrafa de Bollinger, o Vieilles Vignes Françaises, champanhe muito famoso feito com métodos tradicionais.

- Ótimo, to precisando sair mesmo. – A garrafa e aberta, a rolha salta para longe. – Esses últimos dias foram um pouco difíceis pra mim. – Pega a taça que a amiga lhe oferece.

- Aconteceu algo? – Pergunta preocupada.

- Bem, acho que a maioria das garotas iria pular de felicidade, mas você sabe que comigo as coisas são diferentes. – Toma um pouco do champanhe e fica por alguns instantes apreciando o sabor.

- Fala logo!

- O Luis, ele tinha me pedido em casamento... – Mais alguns goles e abaixa a cabeça.

- Não acredito... Uma hora isso ia acontecer, você sabia. – Segurando o inicio de uma risada.

- Não sei, eu achava que ele ia me dar um fora antes disso, sei lá. – Clarisse começa a rir.

- Você não muda mesmo Aniel querida, que homem ia ser louco de dar um fora em você.

- Eu achei que ele ia... – Abaixa a cabeça de vergonha.

- Bem, mas não tinha outro jeito não é, você não podia aceitar... Mas e ele, como ficou? – Já estava super curiosa e se segurava para não perguntar tudo de uma única vez.

- Não sei bem, falei com a irmã dele hoje, e parece que não ta muito bem não.

- Imagina, como ele ia ta bem, do jeito que você é deve ter dito “não” na cara dele e ter saído andando como se nada tivesse acontecido. – Então que Aniel desaba no sofá. – Não acredito... Foi assim mesmo?

- Pior...

- Pior!? – Fala incrédula. – Como podia ser pior que isso? – Tentava imaginar, mas nada parecia ser mais cruel.

- Um pouco mais de champanhe, acho que vou precisar...

As taças são cheias e rapidamente esvaziadas, então, depois de respirar fundo por alguns instantes Aniel começa a contar cada detalhe do que ouve três dias atrás, desde quando as modelos começaram a mostrar os vestidos em seu antigo quarto de hotel. Quanto mais avançava na narrativa mais espantada ficava sua amiga.

- Aniel meu bem... – Balança um pouco a cabeça, estava sem palavras. – Puxa você destruiu o cara, imagina, na frente dos pais dele e depois de tudo que o coitadinho fez...

- Eu sei, agora não faz eu ficar pior do que já to. – A amiga segura mais um riso.

- Sei, sei. Admiti, pra você foi até melhor isso acontecer, não sei como você agüentou três anos.

- Não vou dizer que não queria, mas eu devia ter previsto e não ter deixado acontecer. – Estende a taça para amiga encher novamente.

- Lenta como você é não ia prever nada. – Ri mais um pouco enquanto despeja o champanhe na taça. – Mas enfim, melhor assim.

- É, melhor assim. – Toma mais um pouco. – E você Clarisse, como você ta indo?

- Menina, graças a você não podia estar melhor! To faturando alto, saiu sempre que surge uma folguinha, ta tudo mais que perfeito. E pensar que quase joguei tudo isso fora... – Faz uma curta pausa. – Bem Ani, vamos deixar essa bolsa lá no seu quarto, e tu já aproveita e se trocar porque hoje tem uma festinha pra nós irmos.

- Festinha é? – Aniel não gostava de festas, mas pelo menos com a amiga junto sabia que podia se divertir um pouco, Clarissa sempre a deixa mais à vontade.

- É, um representante nosso ta promovendo um livro, então eu tenho que ir, mas não se preocupa que a gente só vai pra se divertir!

- Combinado então!

Nove e quarenta, as duas deixam a cobertura, Clarisse usava um vestido preto, comprido, com um decote sutil e levemente formal, Aniel também não havia escolhido nada ousado para a ocasião, usava um vestido azul-marinho de frente única muito elegante em sua simplicidade. Em frente ao prédio um táxi já estava à espera delas. Seguem para o carro amarelo, o motorista já havia sido informado para onde deveria ir, então sem demora entram no congestionado transito noturno da metrópole.

VII

A lua cheia brilhava esplendorosa no ponto mais alto do céu noturno, sua pálida luz revelava algumas rachaduras nas paredes de um antigo hospital. Um solitário poste perto da esquina piscava incansavelmente enquanto uma brisa tímida surgia, aparecia às vezes, mas logo se esvaia. Tudo parecia estar calmo e silencioso essa noite, porem pura impressão. Rasgando o breu com o som agudo de sua sirene uma ambulância chega velozmente à frente do prédio. Tudo acontece muito rápido, em sinal de extrema competência, dois para-médicos deixam o veiculo com uma maca onde um homem totalmente imobilizado agonizava de dor.

A ambulância fica como que esquecida em frente ao hospital, mas quando ela parecia não conter mais nada de interessante uma garota sai furtivamente de dentro. Sem ser vista por ninguém a jovem entra sorrateira no prédio sem receio.

O elevador se abre a sua frente, sai apressada, correndo pelo corredor desvia das varias pessoas que passam com uma agilidade um tanto duvidosa para alguém de aparência tão delicada. Essa noite o hospital estava demasiadamente movimentado, o que contrastava muito com a tranqüilidade do lado de fora. Sem ser percebida entra em um dos quartos, nele havia somente uma senhora nos seus setenta anos deitada em uma das camas. Os sons vindos do outro lado da porta começam a sumir aos poucos, até o ponto de só ser possível ouvir a respiração delas.

A mulher na cama começa lentamente a acordar, estava muito cansada e sua aparência confirmava isso, vinha sofrendo de câncer há alguns anos, o diagnostico chegara muito tarde, não havia muitas chances. Ainda sonolenta percebe a presença da garota a sua frente, uma menina nova, menos de vinte anos, de cabelos castanhos, compridos e encaracolados, “Oi” diz a jovem com um sorriso carinhoso no rosto, sorri em resposta.

- Que bondade a sua vir me visitar. – Já estava muito fraca, mas tentava parecer o melhor possível.

- A senhora merece. – Ainda com o sorriso no rosto a garota se aproxima e pega em sua mão. – Beatriz. – Fala agora um pouco mais séria.

- Pode falar. – Vendo a expressão de desconfiança no rosto da mais nova ela continua. – Eu estou pronta.

- Tem certeza que não há mais nada?

- Tenho sim... Não tenho do que reclamar. Meus filhos cresceram bem, estão felizes, meus netos são fortes e tem um ótimo futuro pela frente, acho não tem como eu ficar mais feliz que isso. – Fala com dificuldade, mas com amor.

- Com certeza você criou muito bem todos eles, há alguma coisa que você gostaria que eu fizesse por você antes de partir? – Pergunta enquanto arrumava o travesseiro de Beatriz.

- Bem, há uma coisa...

- Pode falar.

- Uma de minhas filhas... – Cada vez se torna mais difícil continuar a falar. – A Luiza... Ela não tem mais contato com seus irmãos. – Respira fundo, quando ia voltar a falar a outra interrompe.

- Não se preocupe, vou fazer o possível para que seus filhos se dêem bem entre si novamente.

- Não tenho palavras para agradecer... – Diz com suas ultimas forças.

- Pronto Beatriz, agora feche os olhos e descanse. – E como a garota pediu Beatriz fecha seus olhos, tudo agora parecia melhor, a sensação de cansaço e a dor aos poucos vão desaparecendo até que por fim seu coração para e ela morre pacificamente.

A garota se afasta um pouco, agora voltava a ouvir os sons vindos de fora do quarto, alguns aparelhos ligados a recém falecida começam a apitar e logo uma enfermeira entra correndo no aposento, sua preocupação era tanta que não nota a jovem, que agora já saia do lugar, mais algumas pessoas entram indo ao socorro de Beatriz, mas nada mais podia ser feito.

Assim como entrou a garota deixa o hospital sem ser notada para noite lá fora. Com as preocupações agora esquecidas no mais profundo poço de sua mente a garota senta na calçada para espairecer um pouco, essas ultimas horas haviam sido movimentadas, mas descansar não passava por sua cabeça, o que queria agora era dançar, pular ou fazer qualquer outra coisa que parecesse divertido. No momento em que levantava observa alguém vindo em sua direção do outro lado da rua, não era nenhum desconhecido, então num pulo fica de pé e acena vibrantemente para a pessoa a sua frente.

VIII

Seus olhos começam a abrir vagarosamente, a luz do sol matinal atingia diretamente seu rosto dificultando ainda mais sua visão. Sem sair de baixo dos lençóis se espreguiça, havia dormindo como um anjo, mas não se lembrava de como havia ido parar nessa cama, nem onde estava exatamente, sua memória se encontrava muito confusa, Aniel lembrava de muito pouco, só sabia que se divertira como nunca.

À vontade de sair da cama não aparece, pelo visto ainda era cedo e não lembrava de nenhum compromisso para hoje, então continuou deitada. Seus olhos ainda pesados começam a se fechar, tudo volta a ficar escuro, mas algo acontece a despertando, Aniel sente uma mão tocar delicadamente toda a extensão de sua coxa. Calmamente a loira se vira, do outro lado da grande cama encontrava-se ainda dormindo uma garota um pouco mais nova do que ela própria, seu cabelo era curto e preto, de rosto fino e meigo com belos traços asiáticos, parecia dormir como uma criança de apenas seis anos, com uma respiração suave e hipnótica. Fica pasma, não sabia direito o que pensar, isso não podia estar acontecendo, desesperada vasculha sua memória em busca de algo, não adianta, não lembrava absolutamente nada. Aniel sentia se estranha nos últimos dias, mas não esperava que algo assim pudesse acontecer. Aos poucos começa a se levantar tentando ser o mais discreta possível, no intuito de não acordar à outra, quando finalmente deixa os lençóis para trás sua coxa é tocada novamente, deitada com o rosto afundado no travesseiro a morena balbucia ainda sonolenta “não...”, se afasta com cuidado, a outra na cama continua a dormir. Uma camisola é pega no chão, não podia sair andando por este lugar desconhecido usando apenas suas roupas de baixo.

Silenciosamente sai do quarto, a porta entreaberta leva a um corredor com duas portas e em seu fim parecia haver uma sala que lhe era um pouco familiar, a passos leves segue em frente, quando enfim chega no cômodo ouve uma voz a chamar e toma um susto. Com a mão sobre o coração acelerado a loira se vira para ver Clarisse tomando café sozinha em uma mesa próxima, só agora que via sua amiga aos risos quase se sujando toda de café é que percebe onde se encontrava, na mesma sala branca e imaculadamente limpa que estava ontem.

- Clarisse você me deu um susto sabia!? – Fala irritada, a amiga só conseguia rir, em momentos como esse a loira sempre a comparava a uma hiena.

- Aniel, você não sabe como eu me divirto contigo. – Sua barriga já começava a doer um pouco de tantas risadas.

- Clarisse... – Se junta a mesa. – O que ouve ontem na festa, eu não fiz nada que não devia não é? – Pergunta preocupada, só de imaginar tudo que poderia ter acontecido antes de se deitar com uma garota a apavorava.

- Não, você não fez nada de mais não. – Ao contrario dela Clarisse estava muito tranqüila.

- Mas... – Não sabia como dizer, então faz uma pausa, depois de pensar um pouco finalmente conta. – É que tem uma garota dormindo na minha cama. – Seu rosto que era branco como leite fica levemente corado, sua anfitriã simplesmente ri do seu constrangimento.

- Não esquenta Ani, vocês só dormiram na mesma cama. Nada alem disso. – Segura o riso para tomar mais um gole de café e volta a falar. – Não me admira que tu não lembra o aconteceu ontem, bebesse mais do que devia.

- Mas como eu fui parar na cama com ela? – Ainda estava confusa, não sabia dizer se era o sono que ainda fazia suas pálpebras pesarem tanto ou se havia algo realmente errado.

- Hmm... – Pensa por alguns instantes e então volta a falar. – Quando nós estávamos voltando você caiu no sono, do nada, então eu te coloquei na cama.

- Mas e ela? – Indaga Aniel.

- Calma, se você deixar eu falar fica mais fácil. – Morde com calma uma grande fatia de bolo, Clarissa aprecia ver a leve mistura de angustia e curiosidade da amiga.

- Desculpa...

- Como ia dizendo, eu te coloquei na cama, mas não tinha outra cama arrumada, e como eu tava cansada da festa disse pra Roji dormir lá com você.

- Mas quem é ela? – Agora já despreocupada começa a tomar seu café e experimentar uma pequena fatia do bolo que sua amiga saboreava.

- Você vai gostar muito dela, minha sobrinha. – Diz com um largo sorriso no rosto.

- Sua sobrinha? Não sabia que você já era titia, ainda mais de uma adolescente. – Debocha um pouco com a outra, mas essa parece não ligar.

- Só quinze anos... Já é quase uma mulher.

- Mas quando que ela chegou? – Pergunta curiosa.

- Você já estava dormindo quando ela ligou, chegou do Japão ontem lá pelas três e meia, primeira vez aqui em Nova York.

- Hmm...

IX

Aniel... Aniel... Você ta me ouvindo? Aniel! Deixa de ser boba e fala comigo!

Ainda estava sentada na mesa tomando café, sabia disso, no entanto não conseguia ver nem ouvir nada. Sua visão havia se tornado branca como a neve de dezembro. Uma lembrança incomum surge em sua mente a deixando atordoada por um momento. Começa a se recordar de uma conversa aparentemente recente com uma amiga de longa data, tudo ainda aparecia meio embaralhado e confuso, mas um nome se mostrava nítido em sua mente, Luiza Santrine.

Começa a escutar seu nome, Clarisse a chamava. Ouvia muito baixo, como um leve sussurro, aos poucos sua visão vai clareando e o chamado ficando mais audível, até que por fim Aniel volta ao normal. Agora já enxergando vê a frente à amiga olhando como se algo grave estivesse ocorrendo. Seu corpo esta dormente, se mexer ou mesmo falar parecia algo impossível, com muito esforço balbucia algo que parece acalmar a outra, não sabia o que tinha dito, mas isso era o de menos.

- Ani, o que foi isso? Você me assustou... – Clarisse parece levemente chocada. Com um pouco de dificuldades Aniel se recupera dessa experiência e começa a falar.

- Não sei o que foi, mas não se preocupa, já to melhor. – Suava frio, sabia que não estava bem, desde terça algo estava errado, isso não devia estar acontecendo.

- Você tem certeza? – Pergunta preocupada, sua mão vai a testa da outra, está gelada.

- Tenho sim. – Mente. Ao se levantar, fica tonta por alguns segundos, mas logo se sente um pouco melhor. – Já estou bem, verdade Clarisse, mas tem algo que devo fazer.

- Como assim? – Pergunta descrente. – Você tem é que descansar.

- Eu já estou melhor, sério. Mas tem uma coisa que eu tenho que ver. Luiza Santrine, você conhece? – O nome não sai de sua cabeça, algo muito importante estava ligado a ele.

- Hmm... – Pensa um pouco, a sonoridade dele lhe era familiar. – Não sei bem, tenho a impressão de já o ter ouvido em algum canto.

- Tem como você me ajudar a descobrir quem é?

- Mas é claro, isso vai ser fácil, daqui a pouco faço umas ligações lá pro escritório e rapidinho nós descobrimos quem é essa mulher.

- Obrigada mesmo. Fico te devendo uma. – Volta a sentar-se.

- Que isso, não tem nada que eu faça que possa compensar o que você fez por mim. – Nisso a lembrança do terrível dia em que conheceu Aniel vêem a sua mente, no entanto logo afasta essa triste memória.

As amigas voltam a tomar café, à noite as desgastaras de mais, e a fome era enorme. Quando deixavam à mesa Roji, a jovem sobrinha de Clarisse entra na sala enrolada no mesmo lençol que a cobrira durante a noite. Ainda sonolenta a garota olha para as duas na mesa e balbucia algo, vendo que nenhuma delas havia entendido o que tinha dito se vira e volta para o corredor, provavelmente para a cama.

Onze e trinta, Aniel conversava com Roji enquanto preparava o almoço, a jovem asiática agora já bem disposta depois de um banho contava como havia sido sua viajem, entre outras coisas. Clarisse estava presa ao telefone, mesmo em seus dias de folga o trabalho a perseguia deixando-a irritadíssima.

- Enfim livre! – Desliga o telefone e o joga em cima de um sofá. – Não agüentava mais! Eles parecem que não conseguem fazer nada sem eu estar por perto. – Vai até a cozinha onde as duas estão e senta ao lado de sua sobrinha, quando ia perguntar o que seria servido logo mais o telefone toca novamente. – Não acredito! Ah! Esse eu não atendo! – Diz irritada.

- Atende lá. – Interpõe Aniel. – Vai que algo sério.

- Deixa que eu atendo. – Fala Roji ao se levantar em direção ao telefone da cozinha que fica preso em uma das paredes. Clarisse não gosta muito, mas sabia que não podia deixar o telefone tocando, por isso não diz nada. Atende, fica em silencio apenas ouvindo o que o outro lado fala, algumas vezes confirma algo com um “uhum”, mas não diz nada. Alguns segundos depois pega uma caneta e um pequeno pedaço de papel e começa a anotar algo, em seguida desliga o telefone.

- Quem era? – Pergunta Clarisse curiosa.

- A sua secretária. – Seu sotaque ainda era carregado, mas podiam entender perfeitamente o que dizia.

- Sim e ela não queria falar comigo não?

- Não, não queria mais incomodar você tia, então só me pediu para passar esse endereço. – Entrega a folha em que havia escrito para Clarisse. – Ela disse que é da pessoa que você pediu para procurar, Luiza Santrine. Aniel se vira, não esperava localizar-la tão rápido.

- Ei Roji. – Continua sua tia. – Ela não falou quem é essa Luiza? – Olha para o endereço, não ficava muito longe dali.

- Sim, ela comentou algo. Disse que é uma pintora ou algo assim. – Volta a se sentar próxima a aniel, ia continuar a conversar com ela, mas a loira estava perdida em pensamentos, só retorna a prestar atenção nelas quando Clarisse a chama quase com um grito.

- Ani! Hoje você ta muito estranha.

- Não é nada... Eu só estou preocupada com isso, esse nome não me sai da cabeça, isso não é muito comum. – Desliga o fogão antes que a comida acabasse queimando. Suas preocupações quase estragaram todo o almoço.

- E você vai quando ver essa Luiza?

- Depois de comer, isso se você não se importar.

- Claro que não, pode ir tranqüila, eu ia mostrar a cidade pra Roji aqui, mas eu deixo as melhores partes pra quando você estiver junto! – Aniel não fala nada, simplesmente sorri.

X

O Mustang para em frente a um prédio próximo ao Central Park, era ali. Aniel sai do carro, olha o endereço escrito no papel entre seus dedos, décimo andar, entra. O lugar parecia um pouco antigo, talvez década de 50, não sabia dizer bem, vai até o elevador e espera. Fica parada mais do que estava acostumada até que enfim ele chega. A velha porta se abre com um pouco de ranger, duas pessoas saem, Aniel olha bem para uma delas, um garoto que parecia ter seus quinze anos, algo a dizia que o veria de novo. Aperta o botão de aparência antiga, décimo andar, após alguns instantes o elevador para com um leve solavanco e a porta se abre fazendo o mesmo som de metal enferrujado.

No pequeno corredor só havia uma porta, talvez isso explicasse o porquê não havia o numero do apartamento no papel entregue por Roji. Aproxima-se devagar, a sensação de estar ali há deixava um pouco enjoada. Bate três vezes, quando o som do último encontro de sua mão com a madeira morre no ar, o silencio toma conta do local por um longo tempo. Um minuto, talvez dois sem nenhuma resposta, porem não pensava em ir embora, algo a mantinha ali, então quando levanta sua mão mais uma vez ouve algo. Uma voz vem de dentro do apartamento, som abafado, mas podia se entender um “já vai”. A porta começa a ser destrancada, até que por fim é aberta revelando uma mulher realmente bela ao seu jeito. Usava óculos, de olhos pretos assim como seu cabelo, de pele levemente bronzeada, baixa, por volta de um metro e sessenta, mas isso só aumentava a sua graça. Vestia um macacão sujo de tinta, obviamente devia estar trabalhando. Olha Aniel por inteiro, não esperava ninguém como a loira, isso se mostrava claro em seu rosto.

- Sim, em que posso ajuda-la? – Pergunta timidamente enquanto arruma seus óculos.

- Luiza Santrine?

- Sim, sou eu.

Aniel a olha mais uma vez, curiosa, “Precisamos conversar” diz, mas antes de obter uma resposta sente-se estranha novamente. Nota sua boca se mexer, sabia que ainda estava falando, mas não consegue ouvir o que diz, seu corpo começa a se mexer sozinho, todo o seu ser começa a se mover como se sua consciência houvesse sido aprisionada no interior de sua mente e agora seu corpo tivesse vida própria. Entra no apartamento, a outra agora a olha de forma mais amigável, mas em seu olhar ainda havia um pouco de desconfiança.

Seus olhos começam a arder, sua visão fica turva e embaralhada, vê Luiza levando rapidamente sua mão à face em surpresa a algo que havia dito, após isso nada mais via ou ouvia. Então que algo toca seu corpo de modo gentil, não soube dizer no momento do que se tratava. Novamente o toque, e em seguida outro, até que por fim sente seu corpo começar a flutuar em um mar calmo, agora podia ouvir o som das águas.

O oceano, não era frio como o Pacífico, mas morno e aconchegante. Ia balançado conforme as leves ondas a guiassem, movimentos esses que surtiam um efeito inebriante nela. Uma euforia espontânea a atinge arrancando-lhe belas gargalhadas, risos que pareciam não ter fim, porem só pareciam, do mesmo jeito que haviam começado eles somem.

Uma, duas horas se passam no silencio do mar negro. Ainda boiando sua mente divagava sobre o que poderia estar acontecendo, o que era tudo isso? Sabia de alguns casos assim pelas as outras, todas diziam não ser um bom sinal. Lembrava agora de Aséalia, de seu sorriso meigo e seu jeito animado, mas logo que a lembrança começa a se aprofundar em sua mente é interrompida por uma luz distante vinda do horizonte, pálida e sem vida. Aniel não conseguia mais se concentrar em seus pensamentos, a única coisa em sua mente era o ponto brilhante ao longe. O que era? O que seria? O que era...

As ondas se intensificam despertando-a, havia dormido sobre os efeitos do mar e da escuridão, escuridão que não se encontrava tão intensa quanto antes, o breu agora havia sido substituído por um céu estrelado, sem nuvem, até a mais fraca das estrelas podia ser vista no céu. Passa vários minutos olhando os astros, mas curiosa, havia algo estranho nas constelações, seu entendimento de astronomia era praticamente zero, mas sabia perfeitamente que em nenhum lugar algum da terra era possível ver três via lácteas no céu.

Aniel ainda sentia o cheiro do mar, ainda sentia o seu movimento hipnótico sobre o corpo, mas logo que abriu seus olhos novamente não contemplou o místico céu noturno, não escutava mais as pacíficas ondas. Ouvia algo, um soluçar, como choro tímido de alguém que não quer revelar seus sentimentos. A sua frente sentada em uma poltrona esta Luiza segurando suas as lágrimas. Não entende bem o que havia ocorrido consigo ou com ela.

- Meu deus... – Diz Luiza limpando o rosto. – Não sabia como eu tinha magoado ela...

- Não fique assim. – Não sabia do que a outra falava, mas a resposta veio naturalmente, sentia que aquilo era o certo a ser dito. – Você sabe o que tem que fazer, não sabe? – Ajoelha-se em frente à Luiza.

- Sim, sei sim... Mas por quê? Por que você se preocupa comigo? – Agora não chorava mais.

- Não sei dizer, mas encare isso como um favor. – Nisso se levanta.

- Certo...

- Só mais uma coisa, não cumpra nosso acordo e eu volto, e acredite que não serei nada gentil. – A pintora congela, um pavor profundo a engole deixando-a sem reação. – É, você entendeu.

A garota fica parada, encolhida em sua poltrona enquanto Aniel sai do apartamento. A porta se fecha e aos poucos Luiza volta à realidade, não entende como aquelas palavras a afetaram daquele jeito. Estende sua mão tremula e pega o telefone, ainda um pouco chocada disca um numero para o qual não ligava havia vários anos. Espera, um homem atende do outro lado.

- Alô? – Por um instante Luiza não tem coragem de falar, porem agora não havia mais volta.

- Alô irmão...

- Iza é você mesmo?

XI

A lâmpada do quarto não parava de piscar, poucos eram os momentos em que sua luz se mantinha constante. No cômodo encontrava-se um homem deitado, pálido, de feições esquálidas, com olhos profundos e negros. Estava fraco demais, via-se isso à distância. Cobrindo-lhe o corpo seminu apenas um velho lençol amarelado e sujo, com algumas manchas de sangue seco. Alguém entra no aposento, com dificuldades ele se vira e esboça um sorriso ao ver uma garota se aproximar.

- Oi amor. – Fala ao sentar-se perto da cama. – Como você está? – O homem a olha com tristeza, ela já havia sido uma pessoa de extrema beleza, mas a preocupação aos poucos vinha lhe furtando a aparência juvenil.

- Já lhe disse. – Com dificuldades começa a falar. – Você não tem que vir aqui...

- Não fale bobagens. – Vira o rosto para esconder uma lágrima que escorre por sua face. – Você sabe que eu o amo...

- Eu sei que disso, e eu também te amo. – Recupera o fôlego. – Mas eu não quero ver você jogando sua vida fora por mim... – Com dificuldades passa a mão pelas bochechas da garota. – Você ainda tem tudo pela frente, enquanto eu só tenho poucos dias... – Nada responde, apenas chora.

- Eu trouxe algo pra passar a dor. – Ainda com os olhos molhados tira da bolsa alguns comprimidos, vai até uma pequena geladeira velha e enferrujada no canto do quarto, pega um copo d’água, entrega para o homem na cama. – Vamos, tome todos.

- Todos Joana? – Estranha um pouco.

- Sim, tome todos que vai mais rápido. – Leva os comprimidos à boca, em seguida a água, o medicamento tinha um gosto muito ruim, mas já estava acostumado, os engole. – Agora durma querido... Um sentimento amargo brota em Joana enquanto via o seu amor deitado na cama tomando os comprimidos dados por ela.

Mais algumas lágrimas escorrem por seu rosto após arrumar cuidadosamente os lençóis da cama. Ele já dormia, encontrava-se tão fraco que mesmo permanecer acordado era um grande esforço, mas logo isso passaria. Silenciosamente, para não desperta-lo, deixa o quarto, fecha a porta e a tranca por garantia. A sala estava escura, mesmo sendo apenas quatro horas da tarde. Todas as janelas estavam fechadas e lacradas com fita isolante, o local era iluminado apenas por uma fraca lâmpada suspensa no teto. No lugar há apenas duas poltronas empoeiradas, uma velha tevê e duas portas, acomoda-se em uma das poltronas com cuidado para não levantar a poeira. Olha as horas, dezesseis e vinte, “falta pouco agora” pensa. Quando retoma sua atenção para o cômodo a sua volta percebe que há mais alguém ali.

- Oi Joana. – A voz doce e calma fez a garota ficar toda arrepiada, o comprimento vinha de um dos cantos a suas costas, de vagar se vira.

- Como você entrou aqui? – Não acreditava no que via, logo atrás encostada na porta em que passara apenas alguns segundos havia uma mulher loira, extremamente bonita a olhando vilãmente com seus olhos de safira.

- Ah não se faça de desentendida, você sabe bem que eu não preciso de convites. – Seu sorriso aparentemente meigo escondia uma crueldade que somente alguém em seus últimos momentos poderia notar.

- Mas... – Não suporta sentir aqueles olhos azuis a encarando, uma sensação de pânico começa a surgir e a engolir por inteiro, como um Grande Branco ao abater uma foca, sentia seu corpo girar, seus pensamentos se misturam em meio ao pavor, lembranças antigas retornam em fleches, queria correr, gritar, fugir dali, mas não conseguia nem sequer se levantar.

- Querendo ir a algum lugar? Não, claro que não. – A mulher começa a se aproximar da poltrona, quanto mais perto chega mais rápido bate o coração de Joana.

- Chegou à hora então? – Sua fala é tremula e apavorada, ainda chora, mas agora de medo. A outra a toca no ombro como se a consolasse.

- Logo, mas quero que você o ouça gritar e suplicar antes de eu te levar. Quero que você sinta pelo que vai passar. Sorri com o canto da boca.

- Mas eu ia... – Com tremenda dificuldade pega em sua bolsa uma pistola 9mm e mostra timidamente para a outra.

- Não. Você não merece nada tão rápido. – Coloca a mão no bolso e pega algo. – Aqui. – Estende a mão e entrega para Joana alguns comprimidos. – Você vai tomar isso. – Nada fala, queria jogar aquilo longe e fugir, mas não consegue. Um barulho chega aos seus ouvidos vindo do quarto, havia começado, sua arma cai ao chão, está pasma. – É, começou...

Caminha até a porta sobre os olhares de suplica de Joana, a mão quente toca a maçaneta fria sem piedade, a porta é aberta. Novamente Joana ouve aquele som de agonia. Entra em choque... Palavras automáticas rastejam de sua boca, “o que eu fiz...” repete consigo. Dentro do quarto, o homem deitado aperta violentamente seu peito, tentava gritar, mas não produzia nada alem de fracos gemidos. O olha, não acredita que tinha feito algo assim, devia ser mentira, uma visão onírica criada pelo stress, porem no fundo sabia que era a causadora de tudo aquilo.

- Como eu pude... Daniel... – Palavras carregadas de lamurias, abaixa a cabeça e começar novamente a chorar.

- Olhe pra ele, vamos, seja corajosa. – Sem poder evitar obedece.

Daniel não apertava mais seu coração, sua mão levemente suja de sangue estava agora encostada no chão, seus olhos sem vida fitavam o teto igualmente morto. Joana se põe de pé, suas pernas bambas dão somente alguns passos tímidos antes de cair em prantos de joelhos sobre o sujo carpete.

- Como eu pude fazer algo assim...

- Vamos, tome todos. – A garota abre sua mão e olha fixamente os pequenos comprimidos.

- Todos? – Balbucia.

- Sim, tome todos que vai mais rápido. – Sem mais nenhuma palavra fecha seus olhos e engole tudo. Sua boca fica com um gosto extremamente amargo, ao ver o corpo a sua frente sua espinha gela só de lembrar o que estar por vir. Começa a suar frio e a ofegar, não sabe o que fazer, o pavor começa a lhe roubar toda sua sanidade. Olha em volta, a mulher havia sumido, em um momento de lucidez Joana chega a pensar que a bela loira nunca tinha estado realmente ali, porem um pensamento tão rápido quanto um piscar de olhos. Desesperada corre para a porta que da para o corredor do prédio, trancada, tenta arromba-la, sem sucesso. Enfim num ultimo ato de sobrevivência começa a gritar por socorro, seu desespero só aumenta a velocidade de seu metabolismo...