Os Últimos Dias - Ato IV - O Templo de Othen

À noite, novamente em seu turno, Hector observava Anul, a lua, subindo lentamente pelo horizonte, pintando o negror pós-crepúsculo com a alvura branca de sua luz. Refletindo sobre os acontecimentos do dia a imagem da moça colocando algo na bebida do soldado e sorrindo voltou a sua mente. Agora sabia que tinha visto com certeza, mas o que aquilo queria ou poderia significar ainda não lhe ocorrera por completo.

A lei de Narun era clara, assassinos eram julgados em praça pública, e os condenados lançados no Fosso dos Criminosos, para que os orcs e outras criaturas que lá estavam aprisionadas fizessem cumprir a lei de Yius. O julgamento seria dali a dois dias e a única prova da inocência do taverneiro seria a confissão da tal moça. Por toda aquela noite, Hector passou e repassou a seqüência de eventos em sua mente, como se fosse um teatros de bonecos que às vezes apareciam no Forte. Cada um dos envolvidos no crime estavam enfiados nas mãos de um icatiano meio sujo e com poucos dentes, como pequeninos bonecos de pano, andando de lá para cá e se movendo de maneira frenética, como só aqueles bonecos conseguem fazer.

Após rir um pouco da cena em que Ivan “boneco de pano” caia de costas no chão e tinha alguns parcos espasmos, Hector teve certeza à sua maneira de que Durio não poderia ter feito aquilo. Afinal, Ivan ainda não havia pago a conta do que consumira e não faria sentido eliminar o cliente antes disso. E além do mais, aquela bela mulher de vermelho havia jogado algo na bebida. Tinha certeza de que havia visto.

Por isso, após o turno de trabalho daquele dia, o soldado resolveu conversar com seu responsável e lhe explicar suas suposições. Encontrou Daion sentado em seu escritório, aparentemente não fazendo nada. Era um homem extremamente gordo, com cabelos ralos e oleosos e um rosto redondo que transparecia uma estranha sensação de que as bochechas haviam engolido seus olhos. Estava sempre enfiado em uma enorme armadura prateada feita para ele sob medida, mas que também já estava se mostrando um pouco pequena com o passar dos anos e o ganho de quilos.

Hector iniciou sua narrativa de forma bastante fiel ao que ocorrera, voltando a contar algumas partes duas ou três vezes por achar que não havia sido realmente preciso, ou por puro esquecimento de que já havia relatado aquele fato. Por fim, apoiou suas mãos na mesa onde repousavam os restos de um jantar já frio e pontuou: - Eu tenho quase certeza, senhor. Não pode ter sido o taverneiro.

- Quase não é certeza absoluta soldado - respondeu o oficial sem olhar nos olhos de Taylor, revirando a esmo alguns papéis que deixava a mão para ocasiões como aquela.

- Mas aquele homem bebia lá todo dia. Era amigo de todos. Porque Durio o mataria?

-Como saber dos motivos de um criminoso? - tornou Daion com outra pergunta, finalmente fitando o soldado nos olhos. Pelo menos esta era a impressão que Hector teve quando o rosto redondo se ergueu um pouco por trás da bolsa gordurosa que era a cabeça, e as bochechas desproporcionalmente grandes desceram revelando o buraco onde repousavam quase que afogados os olhos do oficial. Continuou a explicar. - Este tipo de coisa é movido por um instinto assassino, algo que desconhecemos. Raiva, talvez. Ódio, ressentimento. Motivos não faltam.

- Mas e se não for ele o assassino, não estaríamos encobrindo o verdadeiro criminoso? Não nos custa verificar as provas mais uma vez antes do julgamento.

Daion observou longamente o rosto decidido de Hector antes de dar de ombros. Não lhe interessava tudo aquilo, mas também não podia impedir o garoto de fazer o que bem entendia, desde que dentro da lei. Consentiu então com um suspiro, entediado gerado por aquela conversa infrutífera, ou pelo jantar deglutido momentos antes - Se insiste tanto, vá fazer o que quer. Vá atrás da tal mulher. Mas fora do seu turno de trabalho, e que isso não impeça você de cumprir com suas obrigações.

- Obrigado senhor - agradeceu o soldado com um aperto de mãos efusivo- Sabia que iria compreender.

- E você sabe ao menos o nome dela ou onde irá começar a procurar?

- Não, na verdade, não.

- Isso dificulta um pouco as coisas, não acha?

- Não havia pensado nisso. – respondeu Taylor envergonhado.

- Isso não me surpreende.

- Como assim?

- Uma forma de localizar a menina é indo ao velório do tal que morreu. Ele não faz parte do regimento da guarda interna, estando então além de minhas capacidades informar-lhe melhor. Mas, se o crime foi ontem pela manhã, provavelmente ele vai ser cremado esta tarde.

- É uma boa idéia. Vou até a pira mortuária

- E soldado, bem, evite encabular ainda mais a viúva com perguntas.

- Não compreendi.

- Esqueça – murmurou Daion suspirando e enfiando o rosto volumoso entre um par de mãos grossas. Os pequenos dedos roliços despontavam, massageando-lhe os olhos - Esqueça.

Armageddon
Enviado por Armageddon em 22/02/2008
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