É duro dizer

Eh, doutor,

Você pensa que a vida é assim, seu doutor,

Fica se enchendo de leis e papéis

E achando que se protege.

Só que o contrato, seu moço,

Tem que ver os dois lados;

Esse negócio não ‘tá bem escrito,

E se o jogo virar, o senhor

Vai ver onde meteu a colher.

E também, meu senhor,

Outro doutor ‘tá dizendo

Que nesse papel tem erro à beça,

Que não tem como o senhor se guardar;

O doutor quis fazer armadilha,

Cuidado pra não cair nela,

Vai ser um enrosco danado.

Isso aqui não é ditadura

E o clarim militar já passou.

E depois, a gente ama esse espaço,

O que não dá pra engolir

É esse seu discurso sem pé nem cabeça,

Sem olho e pescoço, sem fim nem começo,

É curto e grosso, é osso duro de roer.

E o senhor ainda fica se achando

E dizendo que nossa causa sempre vai defender.

Pode voltar, que o samba

Hoje vai tomar novo rumo;

Leve no bolso o alfinete,

Deixe na mesa o apito,

A gente não quer mais tanto grito,

Não suporta mais seu maltrato

E merece respeito.

Devolva a nossa viola e o tostão

Que a escola juntou pra pagar

Água, luz e a limpeza do barracão.

Você veio de branco, mas a poeira sujou.

Você deixou que o seu nome relasse na fossa,

Agora não tem o que tire esse cheiro

E o seu tempo passou.

Eu tenho que entrar, é duro dizer,

Mas hoje quem ‘tá na roda

Também veio de branco, é daqui mesmo e já se formou;

Vem pra pegar o que o senhor nunca soube assumir.

Era simples, doutor,

Era só nos representar, ser honesto e escrever no papel

O que de boca era trato e gosto nosso

E deixar que o povo cantasse;

Mas esse seu comando desafinado

Acabou atrapalhando o compasso e o gingado,

Atravessando o salão.

Neusa Storti Guerra Jacintho
Enviado por Neusa Storti Guerra Jacintho em 04/12/2009
Código do texto: T1959503
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