DAS AFINIDADES

Há uns meses estou morando na casa que foi da minha mãe. Eu e ela não chegamos a conviver, nos encontramos algumas vezes furtivamente, nos esbarramos coincidentemente. Morar aqui, a princípio, foi muito estranho, sentia que em algum momento ela apareceria e me perguntaria o que fazia eu por aqui, como alguém instalado sem autorização prévia. Demorei a processar que a casa não mais pertencia a ela. Tive escrúpulos e medo de mudar coisas de lugar, pelo motivo muito simples que foi através dos objetos, organização e decoração que passei a conhecê-la.

Foi uma surpresa, um susto, quiçá um choque, perceber afinidades infindas, imensas, incontestáveis. Diferenças imensas, incomensuráveis. Passei a vida inteira imaginando-me herdeira de um DNA paterno - marcador de tantas características - talvez o motivo de eu nunca ter buscado pelo meu pai tão amiúde, quanto por minha mãe. Ela era uma pessoa adorável, solícita, solidária, prestativa, chegada a um trabalho manual, criativa, apreciadora de música e, tudo isso só descobri quando vi pela primeira vez sua última casa, onde ela não mais estava. No mais, em tantos encontros, muita alegria, boas conversas, nada de afeto, Como mãe e filha fomos ótimas conhecidas sociais.

Lembro da minha infância deslocada, incompreendida, onde talvez meus pais biológicos mantivessem a expectativa que eu revelasse nos atos minha origem. Lembro de quando ela aparecia em alguma data comemorativa, trazendo sempre um presente que sempre me agradava, pelo sacrifício que imaginava ela fazia para me trazer. Era sempre uma alegria vê-la chegar e apenas imaginava porque eu sorria sem querer. Ela era diferente de tudo que havia no mundo que eu vivia, como eu também era e não via.

Na adolescência tivemos um convivência muito curta num feriado de carnaval, nossos encontros eram sempre com tanta gente que a emoção se diluía e a conversa se esgarçava sem acontecer. Um dia descobri que ela não tinha a mesma afinidade, não foi fácil, mas o tempo ensinou-me que uma mãe pode não nos querer, o mesmo sangue no coração não define afeto. Talvez não tivesse descoberto o quanto éramos parecidas, na cor preferida, na admiração por Michael Jackson, no gosto pela culinária, no prazer de ter uma casa arrumadinha. Afeto não se cobra, não se exige, no máximo se chora pela não correspondência, mas que seja por um tempo suficiente para que se escoe o visgo que se solidifica em mágoa e ela, a mágoa, não se cristalize. Assim, deixei-a onde era o seu lugar, no passado, à vontade para exercer seu amor por aqueles que ela amava de verdade de fato, direito e afinidades. Sim, mães não são obrigadas a amar um filho e talvez ela tenha tido a sorte de me ter distante e quem sabe, eu também? Embora não acredite nisso

Quando decidi mais uma vez procurá-la como conhecida, muito mais por minha irmã sentir saudades dela, conseguimos nos falar, tínhamos pouco tempo mas não sabíamos. Aquele telefonema seria o início de uma vida próxima onde poderíamos, já prontas e crescidas, dar uma volta nos ponteiros do tempo e descobrirmos juntas o que eu acabei por descobrir sozinha numa casa vazia, habitada por uma presença que me parecia palpável. Porque a vida é inexorável. Por que a vida é inexorável? Porque é.

Durante um tempo, fui através do relato dos seus amigos e alguns vizinhos montando um retrato, como a polícia investigativa monta os rostos dos suspeitos. Não há muita fidelidade nos rudimentos dos traços básicos, mas o rosto que surge ao final é reconhecível. É duro perder pela segunda vez o que nunca se teve. É difícil ter em mãos a certeza do que não será jamais. Dói segurar os cacos de um sonho que não se dormiu o suficiente para que existisse. É dor de aborto envolto na culpa, o medo de um crime inexistente e a saudade da criança que tão nossa que jamais existiu. Não é uma dor que se inventa, é uma dor real sobre quem jamais existiu. Como só se dar conta de um membro pela dor fantasma depois que ele é amputado.

Passava dias ouvindo sua voz à moda de um enamorado abandonado, num tempo sem fotos, sem registros, onde tudo encontra-se num banco de dados que reúne fragmentos do pouco que se viveu. Algumas expressões características do modo de falar e um embasbacamento ao ouvir narrativas de quem com ela conviveu muito mais tempo que eu, às vezes uma inveja ou ciúme. Contavam alguns vizinhos que ela era generosa, dividia seus dons culinários, fazia de tudo para agradar amigos, talvez tenha sido bom eu estar tão distante, longe o suficiente para não perceber que ela em sua alegria era uma festa para qual jamais fui convidada. Prefiro finalizar aqui, na parte em que nos encontraríamos para começarmos a viver, mas era tarde, em algum lugar tem um anjo doido, distraído que controla mal o tempo, só não perde a hora de nos levar embora. Foi assim brincamos no recreio com turmas diferentes e quando essas turmas se convidaram a brincar soou o sinal, fim do recreio.