Carta de um Ancestral a um jovem Umbandista.

Enfim, naquele dia acabou.

Pelo menos pude dar um suspiro de alívio por conta da ocasião.

Ô, eu que passei poucas e boas na mão daquele Sinhô, meu fio.

Eu te conto que, há muitos e muitos anos, fio, tempo que, esse velho aqui, vê de longe, os avós de meus avós já vinham trazidos pra “trabaiá” nessa terra. E no futuro dessa geração qual te disse, eu nasci, mas minha mãe, meu pai e vários de meus irmãos, não viram essa dia chegar.

Graças a Deus, eu vi.

É um dia importante viu, fio? Por mais sofrimento, dor e outras provações que se puseram a vir, essa é a data que todos nós, filhos de Deus, donos dessa pele preta que fizeram produtivas todas essas terras que nem dá pra ver de tão longe, pudemos respirar e nos sentir livres das correntes, do tronco e da chibata, livres pra seguir caminho para onde quisermos ir, e experimentar a vida com outros olhos, fio.

Muito nos era proibido. Não podíamos rezar pros nossos Orixás, não podíamos “colocar pra fora” nossas heranças da África. Tínhamos que fazer oração do jeito deles. E eu mesmo digo que rezei, porque já rondava dentro da minha cabeça que Deus manifesta suas verdades de diversas maneiras e crenças, e estávamos longe de casa. Mas, num canto daquela senzala, não deixei passar uma noite sem pedir benção pra Oxalá e sem pedir conforto para Mamãe Oxum, fio.

Quando aquele dia chegou, 13 de maio de 1888 de nosso Senhor, ficamos muito felizes. Finalmente fomos libertos. Gritávamos: “Que alma boa a desses governantes que finalmente acabaram com nosso sofrimento!” Logo vi que não era tão simples assim.

Onde eu iria trabalhar? Onde eu iria conseguir o pão de cada dia? Onde eu iria morar? E foi um grande choque. A dor voltou, a fome assolou, a angústia se fez presente. Mas preste bem atenção, fio! Uma coisa que aprendi nesses momentos de dor, é que nunca devemos perder a fé! A fé nos move e nosso anjo de guarda não desampara.

Eu pude, fio, obter meus descansos e matar minha fome nas matas de nosso pai, Oxóssi. Foi me permitido matar a sede com água fresca nas cachoeiras cristalinas de Mamãe Oxum, e sempre tive saúde para seguir meus caminhos com as bênçãos de Obaluaê. Por mais que eu sofresse nessa matéria, eu jamais deixei de crer que eu era iluminado por nosso pai Oxalá, e com o sustento da fé, e te digo que até mesmo sem perceber, sobrevivi por um bom tempo. Te falo que almas caridosas não deixaram de aparecer nessa jornada, viu? Em meio a dor, ainda há espaços breves para que possamos ao menos sorrir, fio.

Vês bem como a fé nos move? Pois é, nas dificuldades, tendo fé que as coisas vão se ajeitar, elas se ajeitam.

Um belo dia, depois de perambular bastante pelas ruas, e já nessa rotina a uns anos, eu vi um homem branco, com uma barba bem bonita, roupas de cortes finos, sabe fio? Parecia bem rico e dono de fábrica, já que surgiam várias na região. Numa simplicidade que só, resolvi perguntar se ele sabia de algum trabalho. Lhe disse que sabia fazer muita coisa, e poderia trabalhar até mesmo em troca de um teto e comida. Ele sorriu o olhou pra mim de uma forma bem acolhedora, sabe? Tocado, e com um olhar profundo de quem parecia me conhecer fazia um tempo, ele me disse pra ir com ele que teria algo para mim.

Durante o percurso ele perguntou meu nome e lhe respondi, me perguntou se eu sabia bem trabalhar no campo e se conhecia de plantas medicinais e novamente lhe respondi, todas afirmando o que eu bem sabia fazer.

Depois de um longo percurso chegamos numa fazenda bonita, grande que só! E lá tinham muitos outros libertos trabalhando, e uma área que via ao longe, cheio de casinhas brancas, donas de uma beleza que encantava os olhos e trazia um aperto no peito de emoção.

Olhando em volta, fio, eu via que eu era o mais velho dentre todos os outros, e soube que muitos de nossos irmãos, tanto jovens quanto velhos, haviam sido presos ou seguiram caminho aos antigos quilombos para viver em comunidade. A nossa liberdade não foi tão bem planejada, havia muito sofrimento, porém, ao ver todos os presentes ali, senti como um local abençoado, e era momento de fazer nossa parte.

O moço que me acolheu, apontou-me uma casinha branquinha, que ficava no alto de um morro, não tão longe das outras moradas. Ele me disse: “Seu Antônio, ali é onde o Senhor poderá ficar. Aqui não lhe faltará água, não lhe faltará alimento, não lhe faltará trabalho muito menos seu pagamento. Deixo-lhe incumbido de uma coisa apenas, Antônio. Que use dos conhecimentos que me falou que possuía para cuidar de todos os que nessas terras moram, e eventualmente até mesmo os que não moram. Cada um aqui tem seu papel, e juntos vamos dar vida ao que vejo como o ideal e ajudar nossos semelhantes. Fui privilegiado por Deus a deter tais possibilidades, me vejo no dever de fazer o que é mais correto. Compreende? Então vamos, meu senhor, pois há muito a ser feito!”

Fio, o que esse que senta a vossa frente chorou não foi pouco. Caí de joelhos e lágrimas escorriam sem parar! Eu me perguntava se realmente era merecedor daquilo, e numa emoção que esquentava o peito desse velho, me vinha o questionamento de como, num dia qualquer, e tão rápido, algo assim poderia ter me acontecido. Era muita coincidência, na simplicidade cheguei e clamei por trabalho e logo fui trazido para cá? Em um instante, fio, eu tomei consciência e fiquei com aquele olhar preso mas cheio de brilho. Me veio à cabeça: É Deus! E ali ele me mostrou que nem todo homem branco era ruim conosco. Me mostrou que com fé, nenhum sofrimento é eterno e que se ele nos dá provações, é que o próprio Deus tem fé em nós fios, na intenção de que somos capazes de superá-las.

Num estalo me virei para o nome homem e perguntei-lhe que dia era aquele. Ele me respondeu: “Hoje são 13 de maio de 1896, Antônio, perdeste a noção do tempo, meu caro?” Me respondeu com um sorriso no rosto.

Um bom tempo depois eu desencarnei. Trabalhei feliz naquele lugar até minhas forças se esgotarem pela idade, fio. Mas Deus foi tão bom comigo, que não me deixou faltar incumbências até mesmo no além matéria, lá fui tão bem recebido, e tive acesso a tanto conhecimento que é coisa de perder de vista. E todos serão trazidos pra cá na hora certa.

E passando por esse caminho todo, hoje eu volto aqui sempre, fio. Sentado nesse toco bem parecido com que eu tinha, numa casa repleta de força e fé, muito parecida com a que fui presenteado, cuido dos fios da mesma maneira em que já pude cuidar. Eu lhe conto minha história, não pra te mostrar o sofrimento, mas pra te ensinar a ter fé. A dor de hoje é trazida de meios diferentes, e esse velho, vem pra te ensinar a ter fé e persistência, pois tudo há de se resolver.

Vejo mais um 13 de maio se aproximar, fio. Essa data trouxe muitas questões e muita dor, colocou nossos irmãos em situações de sofrimento quais viveram e vivem ainda. Mas esse 13, fio, tá escrito na história e traz muitos ensinamentos, lições e provações. Por isso sempre peço próximo a essa data: reze sempre fio, pra que esse dia simbolize a possibilidade de as coisas darem certo. De que nossos irmãos, acordem cada vez mais e parem de segregar quem os é semelhante. E para que os fios na Terra enxerguem que em Deus, sempre há caminho para mudar.

Em 13 de maio fomos libertos, fio, e isso essa data simboliza. Mas eu desejo que vá além! Que simbolize sempre a possibilidade de libertar todas as almas dos grilhões do preconceito, da ignorância, da falta de amor ao próximo e das desigualdades. Que todos vejam em seu caminho, forças e capacidades de mudança.

Hoje olho e oro lá de cima, fio, e como faço sempre, peço que Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora da Guia, os cubra com seu manto sagrado e de amor, e vos mostrem sempre os melhores caminhos, pois como diz uma alma amiga, hoje grande conhecido: “A união faz a força e a força trás o progresso!”.

Que nosso querido pai vos abençoe hoje e sempre, fio. Vá com Deus e te espero sempre para prosear mais vezes!

Silva Daniel
Enviado por Silva Daniel em 03/04/2020
Reeditado em 03/04/2020
Código do texto: T6905369
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