"DIVIDIR A BENÇÃO"

- Já almoçou tio véio?

Assim dirigiu-se o homem do outro lado da avenida ao senhor que vendia balas de goma no canteiro central quase ao meu lado, por detrás do retrovisor esquerdo.

- Já almoçou, tio véio? Tornou a Indagar o homem desde o outro lado da rua, pouco mais à esquerda do retrovisor. Ao perguntar pela terceira vez, o senhor balbuciou algo.

Ao parar no sinal, na saindo da rua principal da Vila Brás para avenida Mauá, depois de ter deixado um casal de passageiros numa das ruas um mais no interior da vila neste feriado de Corpus Crist, observei um senhor bem judiado trazendo nas mãos uma caixa de balas de goma. Magro e alto, caminhava vacilante e lento. A barba amarelada, recortada pela máscara sobre a boca. O rosto sofrido, parecendo judiado por alcoolismo e cansaço.

Ao vê-lo, pensei tratar-se de mais um das dezenas que ocupam os semáforos de São Leopoldo, pedindo dinheiro para usar drogas, tomar bebida alcoólica ou realmente comer algo.

Comumente dou algumas moedas para alguns desses no correr do dia e até teria comprado umas balinhas de goma desse senhor se ele chegasse até mim antes de abrir o sinal.

Absorvi-me, porém, lembrando o que tinha visto nas imediações de onde larguei o casal de passageiros e quando me dei por conta ouvia a voz de um homem que indagava a este:

- Já almoçou tio véio?

Por três vezes ele perguntou enquanto eu tentava entender quem ele era.

Tive a impressão de que havia um comércio de comida pronta por ali e ele estava oferecendo um pouco das sobras pra esse senhor das balas. Até pensei que jesto lindo esse de dar as sobras do restaurante para quem não tem o que comer.

A segunda vez ele perguntou:

- Já almoçou tio véio?

Pareceu-me que esse tio véio, fazia parte da família desse dono do negócio de comida que lhe falava.

Ele perguntou pela terceira vez:

- Já almoçou tio véio?

Observei então que este homem barbudo, bem calvo, estava junto a um carrinho de supermercado cheio de badulaques, tipo dessas pessoas que vagam juntando coisas da rua. Ele estava do outro lado da avenida, à frente de algum comércio que não prestei atenção o que era. Calçava o que julguei ser uma sandália ortopédica no pé direito e caminhava com certa dificuldade. Esse calçado parecia ter a parte mais alta da palmilha no meio do pé do homem. No outro pé, ele calçava uma havaianas desgastada. O rosto dele, circundado da barba grande e espevitada, parecia o sol dos desenhos das crianças. Um sol bem calvo. Pareceu até ter um certo brilho.

O senhor das balas de goma virou-se e balbuciou algo. O outro perguntou-lhe então:

- Quer um almoço? Tenho um aqui, acrescentou.

O senhor das balas de goma desceu o meio fio do canteiro central e começou a cruzar a rua em direção a carrinho de supermercado do homem barbudo. Enquanto isso, do outro lado da rua, o homem barbudo pegou de dentro do carrinho de supermercado uma marmita de isopor e encontrou o senhor das balas de goma antes que ele chegasse ao meio da pista.

Retornando agora para o canteiro central, vi-o por cima do retrovisor alcançar a marmita para o outro e segurar a caixinha de balas de goma enquanto o senhor abria a marmita. Imaginei então que fossem parceiros no negócio de balas de goma e que o homem com cara de sol ia agora assumir as vendas enquanto o outro comia. Seu olhar, porém, encontrou o meu e, em resposta, ele enclinou sorrindo a cabeça sobre o ombro esquerdo, num balanço de quem diz: "Fazer o quê? Tem que ajudar o próximo".

Rapidamente desviei o olhar para não constrangê-lo. Mas, como que se justificando, ele falou-me de lá ainda sorrindo:

- Dividir a bênção."

Wilson do Amaral