TRIBUTO A MEU PAI

( Homenagem a meu pai que completa hoje 70 anos)

A imagem de um pai ainda que homem comum nos infere automaticamente uma figura quase sempre severa. Mas o tempo passa e a expressão que tão lhe marcara esse ar de esteio da família dá lugar a um semblante cansado de homem que carrega um fardo pesado. Ser pai não é fácil... E não é fácil falar desse ser enclausurado no título de pai. Então minha tarefa não é fácil. Há muitas palavras impulsionando minhas mãos. Palavras que não conheço, mas que minhas responsabilidades as exigem diante desse nome. Meus sentimentos vigiam as palavras, mas me sinto um pouco mecânica à procura delas.

E vou adiando o momento de render o tributo a meu pai na esperança desse vocabulário precioso que descreverá esta pessoa tão importante em minha vida e de presença tão forte e essencial na vida de todos seus filhos. Não poderia ser quaisquer palavras. Teriam que ser bem escolhidas, de forma que definissem realmente o meu sentimento. De repente, me vejo modelando esta escrita especial. Uma admiração... O amor... O reconhecimento. Mas percebo que letras não podem desenhar o sentimento na sua essência. Contudo, já houve, e sempre haverá quem os consiga descrever tão bem, em prosa e poesia. Não é o meu caso. Pois não tenho dons literários. Nem tenho a pretensão de tê-los. Entretanto, defendo a idéia de que devemos falar de nossos sentimentos. Talvez escrevê-los... O importante é mostrar a quem ama nossos sentimentos e a sua importância em nossa vida e no mundo.

Assim do meu jeito simples, sem pretensões literárias, vou tentar render um tributo a essa pessoa tão importante em minha vida. Não vai ser fácil. Considero-me bem pequena diante de sua grandeza. Ainda mais quando olho para o passado e vejo em minhas lembranças todas as suas atitudes, que agora, depois de tanto tempo, posso enfim, compreender. Foi preciso muito tempo. Os filhos são assim mesmo. Demoram muito para compreender. Feliz aquele filho que compreende a tempo. Outros compreendem tarde demais, quando já não podem se justificar ou se redimirem. Como eu já disse alguma vez - ainda bem que o tempo se encarrega de mostrar nossos erros e enganos.

Hoje eu sei, embora não diga em linguagem oral - sou tímida demais para tanto - que meu pai é especial. Tenho dito e repetido isto sempre para mim mesmo. Agora quero dizer para ele nesta forma escrita o que meus lábios jamais disseram. É preciso que saiba que hoje eu sei o quanto soube cuidar de mim e de meus irmãos. Deu-nos o que estava ao seu alcance. Nem sempre é possível dar tudo o que um filho quer ou precisa. Mas nos deu o essencial. Além do sustento e o amor, à sua maneira, nos deu a noção dos princípios necessários para sermos pessoas de bem e aprendermos a enfrentar o mundo. Então, tenho todos os motivos para dizer que dentro de suas possibilidades, meu pai foi e sempre será o melhor pai.

Infelizmente, quando se é jovem, sem experiência, a gente vê o pai apenas como o provedor da casa. Aquele que tem a obrigação de sair de manhã à caça do sustento e só chega à tarde com ou sem a caça nos braços. Seu objetivo e sua obrigação é alimentar sua prole. É assim que o vemos, infelizmente. Porque a própria sociedade cultural nos ensinou isso desde a Antigüidade e penso que será assim até o final dos tempos. Mesmo que o mundo modernize a cada dia, ninguém vai mudar essa cultura arcaica. Ela tem raízes profundas que foram capazes de atravessar eras e tradições.

Hoje, ao mesmo tempo em que tentam mudar essa posição milenar da figura do pai, a sociedade ainda o vê como a figura autoritária que abastece. Exemplos não faltam. Vemos pais serem privados de sua liberdade, impiedosamente, por não poderem sustentar os filhos. Tiram-lhes a dignidade como se só eles fossem culpados pelo nascimento dos filhos. Confesso que não sou a favor de tal lei. Penso que é desumano um pai ser preso por não ter condições de alimentar um filho. Mesmo que lá na Bíblia esteja escrito - não nessas palavras, é claro, mas em outras bem mais sábias (que o pai é aquele que tem que proteger incondicionalmente a família).

Penso que cada caso deveria ser analisado com cuidado. Além de primar o bem-estar daquele que não teve culpa de vir ao mundo, deveriam também valorizar o lado sentimental de um pai. Infelizmente, a própria sociedade cria leis e normas que em confronto com a realidade são incapazes de serem seguidas ou cumpridas. Tudo isso é real. No entanto, precisamos amenizar a figura de pai. Precisamos dar a ele o sentimento e o valor devidos. Os filhos e a sociedade precisam cobrar menos e compreender mais.

Hoje compreendo muita coisa. Não posso compreender tudo. O ser humano, embora racional, tem suas deficiências. Mas posso dizer que amadureci levemente ao longo de minha vida em quantidade suficiente para enxergar e compreender coisas que antes não me era possível. Por ser jovem e inexperiente, quem sabe. Por exemplo: hoje eu entendo o esforço que meu pai fazia para nos sustentar. Não é fácil sustentar seis filhos e educá-los dentro dos princípios corretos. É uma tarefa árdua. Em dias de hoje duvido que alguém consiga tamanha empreitada sem perder a paciência e a dignidade.

Meu pai foi um guerreiro. Lutou incansavelmente, dia após dia. Casou-se ainda bem jovem. Na idade em que hoje, os jovens pensam em apenas badalar. Pois nessa idade ele se casou, e assumiu prematuramente a tarefa pesada de guiar uma família. Sua vida resumiu-se na rotina árdua de levantar todas as manhãs. Antes mesmo que o sol nascesse, fizesse chuva ou sol. Durante todo o dia buscava os meios de nos dar uma sobrevivência digna. Voltava à tarde, trazendo estampado nas faces queimadas de sol, o cansaço evidente.

Depois de um dia cansativo, ainda encontrava tempo para se divertir com a gente. Lembro-me das vezes que em volta da mesa da cozinha, à luz de uma lamparina a querosene, jogava cartas ou fazia brincadeiras. Contava-nos histórias de tempos antigos ou tiradas de livros. Vindas dos lábios de meu pai, elas se tornavam quase reais. Cochilávamos a seus pés, ouvindo-as. Arrisco-me a lembrar de algumas que marcaram muito: “Éramos Seis”; “Meu Pé de Laranja Lima”; “A Ilha Perdida”. E ainda outras tantas tiradas da Bíblia como “José do Egito”.

Cada dia ele lia um capítulo e na melhor parte fechava o livro. Categórico, dizia que só continuaria no dia seguinte. Insatisfeitos por ter ele parado a leitura, mas obedientes, carregávamos o suspense durante todo o dia seguinte. Contávamos as horas até à noite, quando religiosamente ele pegava o livro e com sua voz autoritária e sábia, recitava calmamente as palavras que nos transportariam para o mundo da imaginação. Eu adorava tudo aquilo. Na minha mente, suas histórias ganhavam asas e eu ficava imaginado as cenas. Sempre quando leio, fico formando as imagens. Penso que o prazer da leitura é a imaginação, que nos levam a viajar em lugares nunca antes visitados ou conhecidos, ou encontrar pessoas e coisas jamais vistas. Quando lia para nós, meu pai tinha o poder de trazer imagem às palavras.

Não teve merecidamente aplausos por tudo isso. Férias? Não conheceu o significado e o sabor dessa palavra tão almejada durante o ano inteiro por todos os trabalhadores. Como prêmio, a vida o presenteou com as marcas irreversíveis em suas mãos curvadas e calejadas. Tingiu-lhe alvamente os cabelos, antes tão negros. E ainda ousa sem nenhuma consideração querer curvar seu corpo destemido e forte. Agora fico a remexer minhas memórias tão vagas, mas latentes, como se isso justificasse todas as minhas falhas. Meu coração dói partido em pedacinhos minúsculos ao reconhecer tudo isso e fico a pensar que nunca retribui tudo que me fez.

Dizem que tudo que é bom dura pouco. Pois é verdade. Esse tempo de minha infância passou muito rápido. Um dia, buscando sonhos, eu e meus irmãos deixamos tudo isso para trás. Não porque quiséssemos. Mas porque era necessário. Todos os filhos, um dia tornam-se adultos. Querem concretizar os sonhos e partem em busca deles.

Nessa época em que buscávamos nossos sonhos, sei que meu pai passou muita dificuldade. Não era fácil. Já que na cidade tudo tem peso financeiro. Ele não dizia. Nem nós compreendíamos. Só fui compreender isso muito tempo depois, quando tinha minha própria vida e sentia na pele as dificuldades de ter que prover meu próprio sustento. Não me lembro de lhe ter falado sobre isso. Sobre essas descobertas que consegui em meu amadurecimento. Receio não ter dito tudo que deveria ou agradecido. Se um dia vier a ler estas palavras vai saber.

Como disse antes, não deveríamos deixar passar tanto tempo para compreender. Falamos tantas coisas desnecessárias e deixamos de falar coisas tão importantes. Assim, quero dizer a meu pai que eu o amo. Outrora, posso não ter compreendido ou reconhecido como deveria. Mas eu o amo. Hoje digo com toda a convicção que me é possível, que reconheço tudo que fez por mim e por meus irmãos. Quando vejo meu marido chorar a falta de seu pai e a dor de tê-lo perdido, eu tento compreender a falta que faz um pai no seio de uma família. Não uma falta em termos materiais. Isso não tem a mínima importância. Mas quero dizer aquela falta da presença, do amor, do companheirismo de um pai, a âncora maior que uma família pode ter. Felizmente eu ainda o tenho, meu pai... E agradeço a Deus por isso.

Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 12/08/2009
Reeditado em 12/08/2009
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