Decálogo do Homem Moderno

Wilson Correia*

1 Eu, a Razão Plenipotente Universal, sou tua única Divindade Absoluta e tu não terás outro Ser Supremo além de mim. Evita, pois, que venhas a cair nesse tipo de tentação.

2 Eu, a Razão Plenipotente Universal, faço-me tua essência humana de indivíduo não partível, não divisível e não sociável, cultuador do “Eu’ e do “Meu”, alheio ao “Nós” e ao “Nosso”. Esta é a substância de teu ser autônomo, autodeterminado, emancipado, liberto, amante da paz perpétua e da felicidade universal.

3 Voltar-te-ás para a realidade natural e para suas imanências, sobretudo para as relações de causa-e-efeito autogestadas, e não para o real idealizado preternatual. A Era Teocêntrica acaba de ceder lugar ao esplendoroso Antropocentrismo Solipsista Puramente Racional.

4 Eu, Razão Universal, individualizada em ti, basto-te a ti mesmo. Intuição, afeto, sentimento, emoção e apercepção compõem o novo conceito de mal, o qual tu deves combater com a bondade lógica e raciocinante de tua faculdade racional.

5 Eu, Razão naturalmente incrustada em teu âmago, em tua essência, dar-te-ei, “homus sapiens”, o poder de conhecer por meio do autodidatismo; e Eu, Razão Universal, dar-te-ei a forma do que vieres a saber e a tua experiência no mundo dar-te-ás o conteúdo de tudo o que vieres a conhecer. Lembra-te de que já passamos pelo "Estado Teológico-Fictício" e pelo "Estado Metafísico-Abstrato" e lembra-te de que encontramo-nos em pleno "Estado Científico-Positivo".

6 Tu, “homus sapiens”, conhecerás para dominar, explorar, intervir e transformar a ordem natural de todas as coisas e a progressiva evolução de todo o existente rumo ao melhor com que Eu, Racionalidade Universal, qualifiquei tudo o que há. Não te esqueças de que entramos na Era Tecnocienticista, o máximo a que podíamos chegar. Teu neutralismo epistêmico é a carta branca para que o totalitarismo tecnocienticista possa prosperar.

7 Eu, a Razão Universal, individualizada em ti, faço-te o “homus aeconomicus” livre, igual, empreendedor, proprietário, lucrador, acumulador, consumista e açambarcador de todas as graças que podem emanar do materialismo, mas isso à medida que mais e mais riquezas materiais deres conta de juntar.

8 A política, dimensão da vida em que atuarás como “zoo politikon”, tu a praticarás como a um jogo em que deve prevalecer o interesse particular, motivo pelo qual tu associarás o público e o privado como se fossem um só e mesmo pertence individual.

9 Farás da cultura, já que também és “homus simbolicus”, uma mercadoria entre as mercadorias e, dado que és ativo, e não contemplativo, empregarás os bens simbólicos, assim como os bens materiais e sociais, em nome daquela salvação no aqui e agora da vida, essa que só é se qualificada pelo fazer, pelo conquistar e pelo ter.

10 Tu, “homus faber” por excelência, gastarás teus dias no trabalho suado e de conquista de ti próprio e naquele que te trará o domínio do mundo, processo durante o qual, tu, já repleto de coisas, terá de viver de si por si, uma vez que coisas não podem olhar e abraçar seres humanos, as quais, ainda que amadas pelo homem e pela mulher, jamais poderão experimentar o que é a reciprocidade humanizante da afetividade. Assim sendo, “Fiat homus solitarius, ic et nunc!”, quer dizer: “E que o humano solitário seja feito, aqui e agora!”.

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*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009. Endereço eletrônico: wilfc2002@yahoo.com.br