Resposta à pergunta da Elicia

Wilson Correia*

Sobre o meu texto “Livro didático: para além da ideologia”, em que argumento que é necessário escavar na ideologia o conjunto de valores que a sustenta, recebi, entre outras, a seguinte manifestação:

“Olá Wilson.

Li o artigo que vc postou \"Livro didático:para além da ideologia\" e gostei muito, porque gosto de escrever textos para crianças e jovens, onde sempre que possível, falo (escrevo) de alguns valores que considero importantes na convivência social, valores morais que vem se perdendo com o passar do tempo. Será que o homem é como o universo? Expandiu até o limite e agora está voltando a posição inicial? Se for isso, rs, temo que nenhuma didática seja eficiente nesse aspecto.

Sou mãe apenas. E até aqui, tenho me saído bem...rs.

Escrevo, como se estivesse ensinando meus filhos. A diferença é que com eles, além das historinhas, tinham os exemplos...

Tenho tido um retorno bacana das crianças que lêem os meus textos. Elas gostam e estão sempre perguntando se já fiz outros. Estive numa tarde de poesia em uma escola, com crianças de 1 a 4 série e a aprovação foi de 100%!

O que quero saber é:

*Textos desse tipo realmente acrescentam algo a vida das crianças? Será que elas entendem e assimilam essas \"mensagens\" e futuramente poderão influenciar no comportamento delas ou os valores morais só podem ser adquiridos, desenvolvidos mediante a exemplos e convivência?

Como disse, não sou educadora por formação. Eu apenas gostaria muito de poder dar a outras crianças o mesmo carinho e ensinamentos que dei a meus filhos através dos meus textos. Não tenho a intenção de salvar o mundo. Eu faria, se pudesse. Só queria levar um pouco de imaginação, fantasia, diversão e junto com isso, ideais de paz.

Abraços.

Agradeço se puder responder.

Elicia Dock Holtz.”

Prezada Elicia, de início, e no limite de tempo e espaço de que disponho para lhe responder, penso o seguinte:

1 Os humanos adultos colocam seus filhos no mundo e, de um modo ou de outro, trabalham para acolher e inserir seus rebentos no mundo da cultura (produzida pelo humano no tempo e no espaço), razão pela qual a ação ética requerida dos adultos é mesmo essa que visa a responsabilizarem-se pelos novatos mediante a gradual inserção dos mesmos no mundo adulto (uma indicação de leitura nesse sentido é ARENDT, H. ‘A crise na educação’. In: ‘Entre o passado e o futuro’. Trad. M. B. de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 2001).

2 Nesse processo, pelo qual os adultos se responsabilizam por gerar nos novatos humanos o sentimento e o entendimento de pertença ao mundo adulto, o qual podemos chamar de educabilidade, não se faz sem a transmissão de valores. E isso o adulto faz conforme sua história de vida familiar, escolar, profissional, religiosa, social, enfim (ver: SAVATER, F. ‘O valor de educar’. Trad. M. Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 1998).

3 A luta sobre que tipo de material escrito disponibilizar às crianças, por se relacionar a questões de saber, poder e regimes de verdade (conferir as obras de Foucault), sempre foram motivos de debates, embates e disputas as mais variadas ao longo da história humana. Já na Grécia Antiga, Platão expulsou os poetas da cidade ideal, a qual descreveu na obra ‘A república’ (Trad. de A. L. de A. Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006), por entender que a imaginação poética e a poesia dela resultante poderia transmitir valores que seriam contrários aos interesses da “cidade perfeita” e por avaliar que se obras poéticas fossem usadas na educação das crianças, os homens e as mulheres idealizados por Platão poderiam não se enquadrar naquilo que ele propôs como sofocracia, o governo dos sábios.

4 Educar o humano num sentido ou em outro (para o ser, para o ter, para a cidadania, para o trabalho, para....) sempre foi, como eu disse, motivo de disputas. Isso evidencia que, ao contrário do que pugnam algumas pedagogias, há a transmissão de valores amalgamados com a transmissão de informações, conhecimentos e saberes escolares. Logo, não há material didático, paradidático, ou que o valha, que não tenha em seu núcleo um conjunto de valores que é “passado” subjacentemente aos materiais científicos, filosóficos e artísticos. A neutralidade não seria nem científica, nem pedagógica, nem didática (ver, por exemplo, JAPIASSU, H. ‘O mito da neutralidade científica’. Rio de Janeiro: Imago, 1975).

5 Por esse motivo, vários são os modos de se defender a formação ética dos novatos humanos. Referencio, aqui, dois deles: O de Clareamento de Valores e o de Formação do Caráter. O primeiro centra-se no aspecto cognitivo: pensar bem, raciocinar bem, em si, formam competentemente para o julgamento, para a decisão e para a ação moral. O segundo entende que apenas o exercício racional e lógico de compreensão cognitiva dos valores não basta, exigindo que a vivência seja potencializada como fonte de formação ética, razão pela qual defende, entre outras coisas, o espelhamento em modelos, em exemplos, e a ação humana e social com vista à prática dos valores (ver MARQUES, R. ‘Valores éticos e cidadania na escola’. Lisboa: Presença, 2002).

6 De minha parte, que sou crítico em relação a posicionamentos extremistas em educação (só o modelo Clareamento de Valores; só o modelo de formação ética Formação do Caráter), entendo que os valores estão presentes onde os humanos estão presentes e tais valores são aprendidos de todas as maneiras, razão pela qual entendo esses modelos de formação como complementares, e não como antagônicos ou irreconciliáveis.

7 Por fim, penso que os adultos alimentam uma concepção ingênua sobre a formação ética e ela consiste no seguinte: “Se estou ensinando a solidariedade, terei homens e mulheres solidários agindo posteriormente na sociedade”. Isso não tem sido assim. É que a liberdade humana interfere quando da escolha do conjunto de valores que homens e mulheres farão para formar sua ética pessoal e grupal. O que penso é que, como em tudo na vida, cada pessoa (ou grupo humano) aprende como quer e pratica os valores que escolhe como quer. Isso, porém, não nos deve eximir da responsabilidade de apresentar os valores que julgamos válidos e benéficos às crianças. É aí que o seu trabalho de escritora ganha sentido e relevância.

Bom, Elicia, por agora, é isso. Espero ter contribuído de algum modo.

Obrigado pela leitura e pela interação. Seja sempre bem vinda!!!!

_________

*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009. Endereço eletrônico: wilfc2002@yahoo.com.br