À GUISA DE MANIFESTO ANTI-CHORAQUELOGONÃOBEBENSES

Rapidamente, talvez por hábito, mas sobretudo por força do convívio, comecei a gostar muito de mim, mas hoje, neste preciso instante em que alinhavo estas palavras, pela natureza das coisas, gostava de ser o Almada, o Almada Negreiros.

Pena não possuir poderes mediúnicos.

Mas uma coisas eu sei, tenho a convicção que, querendo algo, vou à luta, não fico sentado nesta minha confortável cadeira à espera que me a venham trazer. Se nem o raio do gato se anicha a meu lado, tendo de o convocar para o efeito e ele, ao que parece, bem aprecia que lhe passe a mão pelo pêlo, quanto mais o resto.

Assim, quero, e vou, bem ou mal, deixar para a posteridade o meu próprio manifesto anti, anti-qualquercoisa. Já se verá anti-quê.

Tudo ocorre na terra que fica exactamente nos antípodas daqueloutra descrita pelo José Gomes Ferreira no seu João Sem Medo. Esta é conhecida por ser aquela em que os seus habitantes, por preguiça, não aproveitam as lágrimas, autênticas pérolas, para a sua sede matar, embora persistam em as chorar.

Também esta localidade, como não poderia deixar de o ser, o que seria catastrófico para carteiros e cartógrafos, geógrafos e demais necessitados dessas preciosas tabuletas. Chama-se, ou baptizaram-na como tal, Choraquelogonãobebes, sendo os seus autóctones, por força da construção em uso e hábito das palavras, intitulados de choraquelogonãobebenses.

Eis pois o título, tão preciso nestas coisas da prosápia. Manifesto Anti-choraquelogonãobebenses, ou algo à guisa de.

Comecemos pois.

Plim.

Toca a sineta em casa da família mais importante, porque única, em Choraquelogonãobebes, a família Antesquietoqueparado.

“Então, mulher, há almoço ou não”, questiona vociferando Patriarca Antesquietoqueparado.

À palavra almoço respondem todos: Primogénito, Finigénito e demais familiares ascendentes, descendentes, colaterais e seus respectivos emplastros que entraram, ou estão em vias de entrar, para a família por via matrimonial.

É vê-los em lenta correria que o cansaço congénito para mais não dá, para se abuzeirarem à mesa para o propalado repasto. E tudo porque é domingo. E domingo é dia de almoço alargado, avantajado em casa do titular do supra-cargo de cabeça de família.

Após as travessas se distribuírem harmoniosa e estrategicamente sobre a mesa, eis que se atiram aos manjares. Alarvemente, claro, mas à velocidade, melhor dizendo, à celeridade a que estavam condicionados.

“Porra, rapaz, limpa o ranho do nariz”, diz Patriarca Antesquietoqueparado.

Petizdomeiogénito Antesquietoqueparado ficou quase paralizado.

Logo, logo Matriarca Antesquietoqueparado tratou de dar ao rapazito um lencinho bordado às quadrinhas cor-de-rosa com cada linha à sua medida, que os de redondilha maior é algo que só se bordam noutros locais, sem falar na menor, que em desuso está e assim deve ficar.

Ranhoca em puro alexandrino limpa, garfada pronta a caminho da boca.

Era por estas e por outras que Primogénitadespromovidapormotivodesermenina Antesquietoqueparado se revoltava, ela que tecia em perfeito metro toalhinhas para a arca do enxoval, onde se acumulavam metáforas, alegorias, para referenciar somente os mais conhecidos motivos de colchas e cortinados.

“Um dia destes”, pensava com seus botões, “alguém me libertará do jugo dos berros do meu pai e conselhos da minha mãe”.

Desta última, não herdara a filha o apelido de solteira: Submissaporqueprendada.

Posto isto, afirmo, convicto, abaixo os Choraquelogonãobebenses e, em particular, embora exclusivos, os Antesquietosqueparados.

Que a ranhoca corra e a arca se abra.

Esqueçam os berros, os murros na mesa de Patriarca Antesquietoqueparado.

Ignorem as ponderadas e prestimosos palavras e gestos de Matriarca Submissaporqueprendada Antesquietoqueparado.

O final, moral da história, dos arrazoados de Naftalinavô Expatriarca Antesquietoqueparado, que tira solenemente a dentadura arritmicamente versilibrista antes de falar, neguem, comentem.

Acreditem que há mais mundo para além das fronteiras de Choraquelogonãobebes.

Abaixo, repito, os que tendo sede rejeitam as lágrimas que choram.

Afirmem, em alto e bom som, o não à convenção imposta pela hierarquia Antesquietoqueparado.

Não à seborreia servilista a que vos querem submeter.

Não ao aplauso fácil porque há receio de dizer que essa não é a via e que há outra.

Não ao muro que limita o horizonte choraquelogonãobebense.

Antes um cálice de lágrimas que esta sede em deserto de opinião expressa.

Há que dizer não ao comodismo gerador de versos equivocados.

Há que dizer não à palavra presa, castrada de asas, oculta na gaiola enformada pelos cumprimentos de circunstância.

Plim.

Toca a sineta em casa de Patriarca Antesquietoqueparado. Este exige rigoroso silêncio. Que existam outras formas de ver as cousas, ainda admitia, mas pronunciá-las é que não, jamais e em tempo algum.

Deu voz de comando para que as palavras, todas as palavras, sem excepção, se desnudassem para que fossem, de imediato, purificadas. E as que resistiam, que teimavam em ter sentido, que recebessem mordaças e que fossem conduzidas às masmorras.

“Se não comeste a sopa, não comes a sobremesa”, disse, solenemente, Patriarca Antesquietoqueparado.

Plim

Não cedamos à chantagem corporativa do poema escorraçado por ser prosa, nem acumulemos a descrença nas gavetas bafientas da resignação.

Elevemos bem as vozes e digamos não às sevícias sobre as palavras.

Não deixemos as nossas carcaças para os abutres das letras esclerosadas.

Pum.

Abaixo, enfim, os galináceos, todos, cacarejadores monocórdicos de falsas, forjadas simpatias.

Digo, para o tacho com eles.

Choraquelogonãobebes será, enfim, liberta do jugo dinástico da prole Antesquietoqueparado.

Disse.

Xavier Zarco
Enviado por Xavier Zarco em 18/09/2006
Código do texto: T243445