Escorpiando

Fico tempo me olhando, me espiando... Quem é essa que me contempla? De onde veio? Que faz aqui?

Nem me reconheço. Pálida, albina, lábios azuis, olhar cansado, cara de tacho, sujo de geléia queimada...

Claro, queimada... Pisei no deserto. Adentrei terras quentes...

A areia dourada do deserto queima... e os horizontes não tem fim, mas nada posso ver para além da minha mão...

A língua pesa, falta água... falta tudo nesta estrada. Nem consigo caminhar... não mais...

Paro quieta, quieta. Nem me mexo. Fico igual aos animais que preparam o bote para agarrar a vítima... em completo silêncio... bem quietinha... Inerte...

Quero escorpiar... Me enterrar na areia quente e ficar ali, séculos, milênios e mais milênios... bem quieta... escorpiando... esperando a presa...

- Só na espia! Só na butuca! como dizem meus cisnes (se eles ainda fossem meus - fugiram todos de meus cestos).

Mas a quem vou agarrar nesta imensidão de areias que se move ao sabor de um vento que nem sei de onde vem?

Se eu pudesse, tomava a mim. Como se fosse uma bastilha.

Armaria emboscadas, barricadas, valos e fossos repletos de tudo o que tenho de mais precioso em termos de poderio bélico e tomava a mim...

Até já fiz levantamento de minhas armas: Dois ou três espinhos cicutados, uma bússola que perdi, a primeira página de um livro que sumiu, um gato fugido enrolado num fio dourado, uma montanha abraçada pela névoa, um pão dormido, uma pena e um pensamento...

O pensamento era um sonho, mas, fiquei tanto tempo parada na beira da estrada, com ele nas mãos, olhando a carruagem da vida passar... que, não sei... nem sei mais se é sonho, se é verdade, se é... se de fato existiu...

O que existe ou existiu tem registros históricos...

Antigamente todos corriam e anotavam num pergaminho as notícias do tempo, as histórias, as vivências...

Cada um contava do seu lado, depois juntavam tudo e tinha-se o sonho... ops, a história...

O grande problema é que contei sozinha uma história. Criei sozinha, dei vida, soprei luz e fiz ser... caminhou, caminhou, caminhou... e agora está aqui... no deserto...

E este deserto que atravesso... tem tanta, tanta areia... que sei... logo, logo, o vento sopra... move as dunas... e elas cobrirão a estátua que estava surgindo...

E ficará assim, milênios e milênios escondida nas areias do deserto... onde o sono fecha as pálpebras, assim, bem devagarinho... até que nem um som mais se ouve... nem mesmo o ressoar doce de um caos, uma confusão de vida que não sabe mais para onde ir...

E fico quieta. Nem me mexo... Estou escorpiando...

Não consegui a imobilidade completa... mas estou chegando lá... sei que estou... logo estenderei a mão de minha barricada, logo abrirei a pesada porta e adentrarei a bastilha que ainda ouso pensar que poderia ser...

Estou escorpiando... debaixo da imensidão de areia que se move ao sabor do vento que não sei de onde vem...

Maria
Enviado por Maria em 05/03/2011
Reeditado em 05/03/2011
Código do texto: T2830013