Cuidado!

"Maldizei todos os demônios covardes dentro de vós, que gostariam de gemer e juntar as mãos e rezar" (Nietzsche).

"A estrada ao inferno é pavimentada com boas intenções" (Karl Marx).

Dizia-se a encarnação de Zaratrusta. Trazia cabelos brancos que compunham bem a cabeça mediana, pele enrugada no rosto e nariz grandalhão. A boca seca e impiedosa articulava mestriamente o amontoado de pensamentos incomuns.

Em dado momento, requentou a história para os que faziam um círculo curioso ao redor dele:

– Os pescadores à beira do rio acenderam a fogueira para os peixes que consumiriam enquanto permanecessem por ali. A raiz da grande árvore formava uma espécie de guarda-chuva sobre o barranco, como que a cobrir aquele fogão improvisado. Os pescadores acudiam as labaredas para que elas não tornassem imprestável cada peixe ali preparado. De repente, “A” percebeu o animal peçonhento descendo pela raiz. Se o animal continuasse aquela trajetória acabaria consumido pelas brasas hostis. “A” pressentiu o perigo. Tentou diversas vezes salvar o aracnídeo, uma viúva-negra assassina. A cada tentativa de salvamento realizada, “A” recebia um assustador ataque do animal. Se fosse certeiro, seguramente o lavaria à morte. “B” assistia a tudo e advertiu o amigo: “Cara, isso aí é o demônio. Não brinque com ela. Conheço bem porque estudei na escola. A picada mata, cara. Pare com isso! É da natureza dela atacar e matar. Deixe que se ferre...” Ao que “A” retrucou, olhando bem nos olhos de “B”: “Se é da natureza dela picar e matar, é da minha natureza tentar evitar que a morte destrua o que encontra pela frente.”

E aquele senhor meio esquisito continuou:

– Entenderam? Dentro de cada um dos que aqui se encontram moram um “A” e um “B”, como duas pessoas em uma só natureza. Contudo, pior mesmo é o aracnídeo, a viúva-negra que têm dentro de vocês. É animal peçonhento que se multiplica a cada dia. São os seus demônios assassinos, impiedosos, letais... Os seus diabos que, visando ao exercício da morte, simulam o gesto de se ajoelhar e rezar. Eles demonstram falsas boas intenções –essas de que o inferno dentro de si próprios está cheio, repleto, transbordando... Portanto, cuidado com os demônios que trazem dentro de vocês e que desejam se prostrar e orar.

Nisso aquele círculo se desfez. Outros passantes chegavam, iam se aproximando e abriam os ouvidos para o velho exótico replicar a história:

– Cuidado com os demônios que trazem dentro de vocês e que desejam se prostrar e orar. Cuidado... Muito cuidado!