Trilhas da sabedoria

Trilhas da relação orientador-orientando

Wilson Correia

Leo Huberman usa um dado curioso para finalizar seu livro “História da Riqueza do Homem”, que li há muito tempo. Ele conta como os indianos caçam macacos. Os indianos pegam o côco. Fazem um buraquinho de pequeno diâmetro no côco (o suficiente para passar a mão magrinha do primata). Amarram o côco a uma árvore. Jogam torrões duros de açúcar dentro do coco. Os macacos, guiados pelo faro apurado, descobrem os torrões e metem a mão buraquinho a dentro, inchando soberbamente as próprias mãozinhas, de modo que a trilha para a sua retirada se torne impossibilitada. Gulosos pelo açúcar e agóica e narcisicamente aferrados, não soltam os torrões de modo algum, grudando-se, literalmente, aos trilhos que levam a uma forma estranha de algemas. Ficam presos ali. Nisso, os indianos chegam, pegam os animais e vão fazer uso deles da melhor maneira possível -já mortos, evidentemente... Os primatas preferem a idiotice (no sentido originário) e optam pela morte ao manterem a mão fechada, em lugar de escolherem a vida e a liberdade.

Parece que a vida é assim: podemos optar pelas trilhas da liberdade ou pelos trilhos da morte. Por isso, pelo menos neste texto, nossa opção é pelas trilhas, pela vida e pela liberdade.

Aliás, é em nome das trilhas da vida livre que podemos pensar em como orientador e orientando podem conduzir a relação que travam na condução da produção científica ou filosófica.

Partimos do entendimento de que essa relação não está aí para ser guiada pelo “argumento de autoridade”, mas, sim, pelo “argumento da razoabilidade cognitiva”. Ela também não valoriza o docentrismo (professor portador de toda a verdade no centro do processo), nem o discentrismo (o aluno como aquele que tem a primazia da verdade). Antes, e sobretudo, as trilhas do trabalho comportilhado por orientador e orientando valorizam a relação. Nesse sentido, podemos afirmar que o conhecimento é relacionalmente produzido.

Uma relação é construída diuturnamente, sendo a flexibilidade o seu maior bem, sua maior virtude, seu mais destacado valor. Faltando a flexibilidade, passam a faltar a autoridade, o afeto antropológico básico, a razoabilidade elementar. No lugar desses valores emergem a intransigência, o totalitarismo e o autoritarismo antieducativo que tanto nos intoxicam.

Por isso, quando se trata da relação entre orientador-orientando, entendemos que essa relação:

1 alimenta-se da generosidade, que é a capacidade de entender que o conhecimento só faz sentido se for meu para os outros;

2 articula “poder” e “saber” de modo a que a verdade não se revista de insolência e tirania;

3 baliza-se pelo respeito, esse que impede o tratamento do outro como irrelevante ou não digno das benesses e vicissitudes da interação;

4 cultiva a cordialidade, o cumprimento de prazos, a realização do que é combinado e a observância de acordos;

5 evita o fanatismo, que é a postura de se achar dono da verdade, considerando o resto do mundo errático e sem o menor valor;

6 fixa a abertura, a democracia e a capacidade de pensar em si mesmo incluindo o outro no próprio pensar;

7 fortalece-se com o fortalecimento da vontade, da disciplina, do apego à verdade dos fatos, informações e dados à disposição;

8 funda-se na justiça, que sopesa os limites reais e as possibilidades factíveis do saber, do saber fazer e do saber ser;

9 guia-se pela sinceridade, longe dos agradabilismos fáceis ou dos verdadeirismos cegos;

10 instaura uma atitude dialógica, essa que contribui para consensos que resultam da afirmação e da negação;

11 lastreia-se na honestidade, que é a capacidade de dizer “sim” quando o “sim” for o mais razoável, e de afirmar o “não” quando o “não” for o melhor conselheiro do desenvolvimento compartilhado;

12 mantém a honestidade intelectual, não distorcendo informações, dados e saberes;

13 não faz com que a história de vida, o nome, a honra e a dignidade alheias sejam instrumentalizados em nome da afirmação da própria história, do próprio nome, honra e dignidade;

14 não impõe as próprias vontades, mas negocia vontades comuns;

15 observa a discrição, sem exposições comuns indevidas;

16 ocorre no contexto dos rituais acadêmicos, cujas regras são acidentais, não essenciais;

17 pauta-se pela liberdade, equidistante do servilismo ou da simples libertinagem;

18 pressupõe o companheirismo acadêmico, que é esse poder de estabelecer e buscar objetivos comuns;

19 protege o nome do outro, sabendo que disso depende a proteção do próprio nome;

20 requer responsabilidade, que é a capacidade pessoal de responder pelas próprias escolhas;

21 resguarda a forma e o conteúdo, não atropelando aquilo que contribui para o melhor modo de organização da produção e da sistematização do saber;

22 ressalta a proposição, e não se aferra à imposição;

23 valoriza a gratidão, reverencia o nome alheio e o trata com o devido reconhecimento.

Essas 23 trilhas não bastam? Talvez outras tenham que ser registradas. No momento, porém, elas nos apontem rumos, sobretudo aqueles que nos ensinem a abrir as mãos, sob o entendimento de que uma obediência situacional que pode resultar em autorização para comandar.