O MENINO E A LENDA

No século passado existia um menino que sentia muito frio e tinha seu corpo desnudo aquecido por um livro de história, que folheava cuidadosamente para contemplar todas as figuras.

Ainda não sabia ler, mas sua mãe traduzia cada desenho desbotado pelo tempo, inventando rimas que pudessem adormecer seus sonhos.Ela dizia, com a voz emocionada:

“Quando escurecer feito um breu e o céu explodir como uma profecia, tudo de mais lindo cairá do infinito e todos as crianças serão eternamente felizes. Com o início do ano 2001 a história será diferente”:

Saúde, paz, prosperidade e comida para toda a gente!

Assim contava a lenda e aquele menino acreditou.

Seria o começo da confraternização universal e a nova era do poder.O Apocalipse conquistado por todos os povos, reunidos num momento único de prazer.Então ele esperou que todos dormissem e dobrou as páginas do livro de histórias.Despediu-se da sua família, em silêncio, e foi embora dali prometendo consigo mesmo que voltaria com os bons tempos, trazendo muita felicidade para todos.

A alma daquele menino estava em festa, refletindo o brilho cintilante dos seus olhos como um cartão colorido, pintado com as cores da Vida.

Era um olhar que projetava o futuro; ofegante, inesperado, acelerando o coração numa explosão de ansiedade.

Ele havia lido no livro e as páginas nunca mentem.

Desejava aqueles “dias melhores”, para que pudesse ter um pouco mais de felicidade também:

Queria o carrinho de madeira para puxar por um barbante, os rios, praias e amendoeiras.Queria ser Rei por um instante! Mas enquanto era apenas um moleque de rua, ainda era dono de todas as vitrines da cidade, procurava em seus enfeites um motivo justo para recomeçar.

Caminhou por esquinas desconhecidas e sentia que não estava só porque levava dentro de si a esperança de um mundo melhor.

E finalmente quando chegou o primeiro instante deste dia, o céu se transformou e tudo parecia um cenário para a “história prometida”; a fábula da tecnologia e o desejo de conhecer o desconhecido .

Sentia a alma fria, fome de caridade e saudade de casa.

Ele fechou os olhos, ainda abraçado com as velhas páginas, já um pouco rasgadas e chorou decepcionado, pois o novo ano acabava de estourar no céu e ele estava diante do glorioso ano de 2001.

As pessoas comemoravam intensamente, mas ele ainda não tinha motivos para isto.E ali no canto da rua, numa sarjeta qualquer, adormeceu abandonado (como antes), porque para aquele menino a “história encantada” que a sua mãe lia todas as noites para que pudesse dormir, não passou de uma Lenda.

Silmara Retti