O rio e o sapato

O rio e o sapato

maria da graça almeida

Presto, seguia o riacho e preso na água levava

um velho e roto sapato, que indefeso indagava:

- Aonde me leva, ó amigo, nestes tão aquosos passos?

- Para o mar levo-o comigo e o entrego em seu regaço.

Ser-lhe-à gloriosa marca sepultar-se em águas fartas!

- Constranjo-me em declinar, mas não sigo em seu encalço,

posto que em algum lugar já deixei um pé descalço.

- Dê-me mais algum motivo, assim com você não brigo,

pois sempre o tive comigo, feito um dileto amigo!

O sapato, ao riacho, disposto, explicou com jeito e gosto:

- Já pisei as gramas verdes, calçadas frias, molhadas,

estradas empoeiradas;

andei entre animais, esmaguei flores e frutos,

em diferentes quintais;

freqüentei grandes escolas, joguei más e boas bolas,

esfolando bico e sola;

chutei com dó pedras, latas e, dançando em pés de valsa,

desfiz mil barras de calças...

Só me resta conquistar um repouso merecido,

estou velho, alquebrado, temo o desconhecido!

O riacho, pelo trajeto, repetia circunspecto:

- Ser-lhe-à gloriosa marca, sepultar-se em águas fartas...

E ao longo do caminho, rumo ao molhado destino,

iam os dois discutindo, tais quais pequenos meninos!

Quase findando a viagem, o rio afinal se irritou:

- Se não julga ser vantagem conhecer outras paragens,

então, fique, adeus... já vou...

E seguindo em água e mágoa, desistiu do velho amigo

que por acomodação dispôs-se à pior opção!

O sapato ao ver o mar tão sereno a descansar

pôs-se mudo a matutar o valor da negação

e, por fim, arrependeu-se da errônea decisão.

Jogado num solo quente, concluiu, incontinente,

que, temendo o desafio e não atendendo ao rio,

fora tolo e resistente!

E assim excluiu-se o sapato, da glória de se deitar,

pra sempre na realeza das profundezas do mar!

maria da graça almeida
Enviado por maria da graça almeida em 13/03/2005
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