A ética do pão

Wilson Correia*

Abrir a mão para compartilhar é de uma utilidade fenomenal: ensina-a a abrir-se para receber. Por isso Honoré de Balzac dizia que, “Seja no que for, só se recebe na medida do que se dá”. E é aqui que o egoísmo depara com o valor ético da generosidade, entendida, não como a caridade feita sob holofotes, mas com o companheirar (fazer-se companheiro, do latim “cum pane” = o que come do mesmo pão) por senso de coerência para com aquilo que a vida é. Mas esse entendimento sobre a generosidade exige que sejamos justos antes de sermos generosos, e justo é aquele que encontrou a medida entre o excesso por falta ou por abundanciamento. É a justeza àquilo que é a própria dinâmica da vida.

E a vida é deveras caprichosa: se, para nascer, precisei de, no mínimo, dois seres humanos, para levar a vida a termo (literalmente falando: o fim no espaço e no tempo - costumo dizer que, quando eu morrer, terei de contar com, pelo menos, quatro mãos agarradas às alças do caixão), precisarei de milhares deles. Aceitemos, ou não, um “chega prá lá” na covardia nos fará entender essa dimensão de nossa existência. Assim, minha individuação (aliás, até para eu ser "eu" é necessário haver um "tu"), compreendida como a vivência da minha singularidade no mundo, só se faz saudável e nutritiva em meio a seres humanos, em um companheiramento que se inicia antes do nosso nascimento e só terminará com a nossa ida para o cemitério.

Temos dificuldade de entender isso? Preciso que o líder religioso, entre outros, diga-me como proceder? Qual nada! Tomemos o pão em nossa mesa pela manhã e ele configurará para nós o melhor de todos os discursos éticos que possamos fazer sobre o assunto: o pão era semente, essa semente foi lançada à terra, terra que foi cultivada por outrem para receber o grão destinado a se tornar pão, pão que antes foi broto, espiga, farinha, farinha que foi tratada, tornada massa e levada ao forno, onde se fez pão, o qual me foi entregue por duas mãos... Duas? Não, dezenas, centenas, milhares de mãos. Uma multidão de mãos que já não vemos esteve por detrás desse circulo virtuoso que, no fim, alimenta-me, robustece a vida. Essa vida que só faz sentido se também entrar nesse movimento infindo de manutenção coletiva da existência, aqui e agora, no tempo e no espaço que nos couberam como pessoas humanas que somos. É bem isso o que pode ser entendido na síntese de Waren Buffett: “Hoje a pessoa está sentada na sombra porque, há muito tempo, alguém plantou uma árvore naquele lugar”. Há alguma objeção? Há alguma negativa para esse fato e para esse argumento?

Desse modo, se “O pior cego é o que não quer enxergar”, como nos afiança o ditado, o pior egoísta é o que não quer cooperar, compartilhar, doar-se, solidarizar-se ou tomar parte nesse inelutável processo de companheiramento. Um tipo de ignorância esse não querer. Uma modalidade de não saber esse tal de “fechar a mão”. A falta de entendimento de que, no fundo, autonomia, autodeterminação e independência humana absolutas e totais não passam de meras ilusões.

Pensando nesse assunto, em uma das defesas de trabalhos acadêmicos porque passei, relatei que me entreguei, em boa parte da minha vida, a adquirir algo que não faz o menor sentido se ficar trancafiado em mim: o conhecimento. De fato, o professor não é o que “tem” conhecimentos, mas o que se faz veículo por onde os conhecimentos podem passar, com destino a todos os outros do entorno físico, humano, cultural de quem ensina. É por essa razão que fico feliz sempre que uma aula minha é bem trabalhada e bem compreendida, quando me esforço para cumprir a contento o meu papel de professor. De igual modo, fico muito contente quando um texto de minha autoria roda por aí – texto que, a rigor, não é meu, porque toda autoria é mais uma organização do conhecimento que foi social e companheiramente produzido, posto que não produzo do nada (ex nihlo) nenhum saber. Quando escrevo um texto, não sou eu quem escreve, mas, sim, meus pais, minha família, todos os professores que passaram por mim, os autores que li e inúmeros anônimos que, de uma forma ou de outra, estenderam-me materiais compreensivos. Por isso, fico satisfeito quando um texto de minha autoria é solicitado e vai parar em outros locais da internet, em salas de espera, em consultórios de toda sorte, em jornais, livros, revistas e num sem-número de meios que fazem o conhecimento circular.

E eu faço isso porque sou bonzinho, certo? Não é bem verdade! Faço isso apenas porque esse companheiramento é a condição de possibilidade da minha própria vida – essa que, se tiver de ser só para mim, não terá o menor sentido, o menor significado e o menor valor. É nisso que consiste aquilo que entendo por “ética do pão”. Será que é custoso prestarmos atenção nela? Ela é só um jeito de aprender e ensinar a abrir a mão!

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*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009. Endereço eletrônico: wilfc2002@yahoo.com.br