O amor é senhor de si

Wilson Correia*

O amor é um acontecimento. Chamo de acontecimento àquela ocorrência verificada quando você não está nem aí. É meio parecido com o nascer e o morrer, com a seguinte diferença: quando o amor acontece, é você mesmo que se conduziu até o lugar imaterial onde ele o espreitou, armou a cilada e fê-lo enlaçado quenem aquele peixe que engoliu o anzol até às vísceras.

Não há coisa mais inútil nesse mundo do que planejar amar alguém, traçar o perfil, registrar as qualidades sem as quais não se amará. Se amor fosse objeto de planejamentos, ninguém entre nós viveria a se queixar da ausência do ser amado. Nesse assunto, parece que a não causa, o inesperado e o fortuito ordenam com cristalina primazia. Dê uma olhada nos relatos sobre como as pessoas conhecem aqueles que amam e verá que, bem na hora h, o plano dele estava guardadinho na gaveta.

Atributos, qualidades, defeitos, características e estilos parecem não possuir o condão de ditarem quem deve amar quem. A verdade é que a sutileza do encontro, detonadora de um encanto que não se sabe nomear, essa é a grande deusa do amor. Enganam-se, porém, os que pensam que essa sutileza é inodora, insossa e incolor: ela é capaz de virar vidas do avesso, transmutar o mundo, unir pessoas cuja única garantia é a de estarem lado a lado, e nada mais. Quer milagre maior?

Por isso mesmo o amor não é negócio, mesmo que negue o ócio. Não se casa porque se quer emprego ou o acesso a bens materiais, sociais e culturais. É de dar pena ver gente querendo o amor feito um contrato como o que comerciantes firmam entre si. O amor é das raras coisas que não se deixam comprar, vender ou emprestar. Ou acontece ou não existirá. Vá atrás do meio-termo e dará com a cara na parede.

Ainda que o amor seja acontecimento, destino é o que ele não pode ser. Aí o intrigante paradoxo: o amor acontece, mas permanece escravo da liberdade. Basta a deusa liberdade pedir que ele feneça e todo amor estará em pó. Ele é regido pela lei do sim e do não. O desencontro dessas palavrinhas faz o amor recolher-se em sua sensata insignificância. Então, se a galinha ou a cafajeste não foi suficientemente ajuizada para se enlevar no amor que se fez, melhor é acionar a campanhia do não e deixar essa pessoa à mercê de outro acontecimento que venha a fazê-la digna do amar.

Estar fora dos domínios desse amor não é um crime, não é nenhum pecado e, definitivamente, nem chega a engordar. É que o acontecimento aqui referido, sutil e espontâneo, requer a naturalidade de se estar aberto a que o acontecimento aconteça. E nem sempre estamos nessa onda de deixar o acontecimento acontecer. Nosso ciclo de vida está em outra sintonia, coisa que o amor não violenta, nem estiola. A paciência conosco mesmos nesses interstícios é de fundamental importância para que nossos rios se tornem limpos e possam cevar peixes fisgáveis. Forçar a barra é outra estratégia fadada ao fracasso nesse assunto de amor, de amar e se deixar amar.

Por tudo isso, o amor não é algo que se peça, que se exija. Amor é algo que se reconhece: sim, aconteceu! E como o amor é um ser deveras caprichoso, melhor é seguir-lhe a melodia, e dançar conforme ele rotaciona a canção da vida e do existir. Tudo o mais não passa de ilusão, quimera, vã fantasia, louca imaginação. Pobre de quem pensa que pode controlar o amor. O amor é senhor de si.

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*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009. Endereço eletrônico: wilfc2002@yahoo.com.br.