Vazio Fraternal

Entrar na farmácia do meu bairro naquela noite fria de 2019 aqueceu minha alma e meu coração. Naquele local já trabalharam pessoas altas, baixas, morenas, loiras e negras, cada uma com sua personalidade, seu jeito de atender, de rir ou de falar, mas nenhuma como a que vou contar. Até aquele momento, eu só entrava na farmácia para o óbvio: comprar remédios. Remédios estes que uso até hoje para acalmar meus demônios internos, ou, pelo menos, tentar me manter vivo de alguma forma, mesmo que essa forma seja totalmente artificial, onde eu sou um simples robô que precisa continuar pagando impostos, ou porque você não tem coragem de deixar pra trás pessoas que ama. Foram nessas condições psicológicas que entrei na loja nesse dia.

Agora, falando de minhas vestes, eu estava com o corpo (quase) todo coberto de preto, desde o sobretudo, até calças jeans e tênis, porém havia um detalhe em mim que chamou a atenção de uma das atendentes. Uma atendente com uma voz convidativa, vibrante, viva e espontânea. Senti um calorzinho no meu sistema nervoso central. Era uma desconhecida interagindo comigo por livre e espontânea vontade só pelo fato de eu estar usando uma touquinha de pompom bege do Mickey Mouse. A minha sensibilidade fez despertar nela a sua sensibilidade, afinal, quantos homens usam touca de pompom do Mickey? Esse calorzinho que senti era a dopamina que havia ameaçado acender dentro de mim. Meu pescoço cabisbaixo se ergueu, eu sorri e contei à ela o porquê de eu ter comprado aquela touca. No momento que fiz conexão da voz com sua dona, um redemoinho de sentimentos rondaram em mim. Seu olhar e sua energia me entregavam alguém que eu poderia conhecer de outrora, mas que nunca havia visto antes. Alguém que iria cuidar de mim ou vice-versa. Pensei que pudesse ser uma pessoa que, assim como eu, precisava de ajuda para se manter forte a cada dia que passa. Em vez disso, sonhei algumas semanas depois que essa mocinha tão singela, ambiciosa, dona de sua própria vida era uma irmã que havia perdido. Claro, são só sonhos, mas... A energia que ela me passava toda vez que me via e falava comigo era sempre a mesma. Não dá pra explicar como ela preenchia o espaço vazio em mim. Ela tão pra cima e eu tão pra baixo. Em alguns meses, minha dopamina estava acesa totalmente num setor do meu cérebro chamado "Mocinha da farmácia", pois eu sabia que ela sempre estaria lá. Claro que muitas vezes eu "roubava" e ia até a farmácia mesmo sem precisar, apenas para ver essa mocinha e sentir minha dopamina se manifestando dentro de mim. O rosto e seus olhos sorrindo eram mais eficazes que os tarjas pretas que me obrigam a tomar todos os dias.

Em maio de 2021, eu entraria na farmácia que me trouxe tanta felicidade pela última vez.

A forma com que eu recebi a notícia somando com o fato de terem outros clientes e funcionários no local me inibiram de reagir da forma necessária. Ao invés disso, me protegi e me recolhi fazendo piada. Por dentro, eu estava sangrando. Eu estava sob efeito de inibidor naquelas semanas, portanto não podia chorar, não podia externar, apenas aceitar o que estava ouvindo. Eu estava preso dentro de mim com aquela sensação de impotência sentimental. Naquele mês, o vazio fraternal me abraçou com todas as forças e cuspiu na minha cara que a irmã que nunca tive iria embora. O setor "Mocinha da farmácia" se desmoronou.

Sem ela aqui, eu estou piorando meu quadro, triplicando minha dosagem e adicionando um remédio atrás do outro. O pior de tudo é que dessa vez não será ela quem irá me vender. Não será com ela que farei piadinhas da minha condição. Não será mais o nome dela que estará na nota fiscal das compras. Cabe a mim agora ressignificar. Por mais que seja doloroso, que escolha temos?

Eu não sei lidar com perdas. Não sei dizer "adeus". Desculpa, irmãzinha. Eu não estava preparado.

Thi Cardeal
Enviado por Thi Cardeal em 14/06/2021
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