A Garça.

Existem coisas que, se eu fosse um gato, me eriçariam os pêlos. Por sorte não sou um gato, os pêlos ficam eriçados e ninguém percebe. Só que, o fato de ninguém perceber, me exclui da humanidade porque só eu percebo. Eu percebo o fato em si e também percebo que estou só no perceber. Sou o patinho feio no lago dos cisnes. Sou gato e sou pato. Sou qualquer coisa a ser catalogada, menos um pontinho a mais no meio da multidão.

Por causa disso veio a procura. E por causa da procura, o dia seguinte. Sempre esperei que o dia seguinte me trouxesse de volta o sentimento de pertencer. Antes, eu pertencia ao mundo e o mundo me pertencia. Mas fui resgatada do mundo. Fui comprada como o escravo é comprado por um dono bom. Então, passei a pertencer a um povo considerado pelo mundo um apêndice. E fui feliz até aquele dia trágico, em que o apêndice passou a dar sinais visíveis de infecção. É essa infecção que me impede a alegria súbita.

No passo do tangedor, a manada segue, doente. Sigo também, com certa relutância, como segue a boiada, o feitor. Sou gato, sou pato, ou sou boi? Sou qualquer coisa a ser catalogada, menos um pontinho a mais no meio da multidão.

Sinto o termômetro subindo, enquanto, só, eu desço. Falta-me, a mim, a temperatura que, nos outros, excede. Não sei aonde me aquecer, eu que, como a garça, posso até pisar na lama sem me sujar, mas não encontro um lugar aconchegante para habitar.

Eu só queria pertencer adequadamente, mas, dependendo do momento, sou gato, sou pato, sou boi e sou garça. Qual desses quatro seres eu sou? Sou qualquer coisa a ser catalogada, menos um pontinho a mais no meio da multidão.