O AMIGO QUE NÃO CONSEGUI SALVAR - I e II PARTES

O AMIGO QUE NÃO CONSEGUI SALVAR - I PARTE

Há dias eu observava um homem diferente. Cabelos grisalhos sob um boné bem incrementado, cara de meia idade, embora com um ar de garotão. Sempre vestindo camiseta sob a jaqueta jeans azul, calça jeans da mesma cor e tênis branco. Andar tranqüilo, às vezes observando meu trabalho com discrição ou fazendo algum comentário sobre qualquer acontecimento entre os freqüentadores do bar.

Passado das nove, um pouco mais cedo ou mais tarde, ele aparecia com seu andar lento. Ficava por ali sentado a uma mesa, primeiro tomando um café, depois saboreando demoradamente uma cerveja. Algumas vezes não aparecia. Outras vezes, aparecia e desaparecia sem aviso, passando daí boa parte do dia sumido. Geralmente uma mulher loura aparecia perto do meio-dia a indagar por ele, chamando-o para almoçar. Nos dias em que ele ficava mais tempo fora ela vinha em outras horas também, sempre perguntando sobre o “Vandeco”. No começo não associava esse nome a ele. Parecia-me um apelido infantil, ou um tanto homossexual, que não combinava com sua aparência séria e quieta. Tempos mais tarde ele me disse que seu nome era Vanderlei e que a mulher loura que eu pensava que fosse sua esposa, se tratava de sua irmã, que, assim como a mãe e o sobrinho, filho dela, o chamava carinhosamente de “Vandeco”.

Algumas vezes via um velho careca com poucos fios de cabelos brancos a circundar-lhe a nuca. Observei depois de algum tempo que quando esse velho estava o cara do boné não aparecia. Apesar de que já conversara bastante com os dois, não percebera a semelhança. Entretanto, vi um dia o velho puxar um boné azul do bolso da calça, transformando-se no homem do boné ao vesti-lo. Estupefato, aproximei-me e pedi-lhe que tirasse o boné. Ele o fez, transformando-se novamente no velho careca. Pedi-lhe novamente que pusesse o boné. Ele vestiu-o, voltando a ser o cara de meia idade bem na minha frente. Sem o boné, era o velho careca, com o boné, transformava-se imediatamente num garotão de trinta anos. Desde então o chamava de “Véio”, como sempre chamei mentalmente o velho careca, e nossa amizade começou à partir desse dia.

Nos dias em que desaparecia, nem sempre passava o dia sumido. Mais tarde ele aparecia e ficava por ali. Assim passava o dia entre as mesas do bar que eu decorava por ordem da empresa em que trabalhava, puxando assunto a qualquer instante, até que resolvi convidá-lo para trabalhar comigo, para dar fundo de tinta nas paredes em que eu pintaria as marcas dos produtos da empresa.

Minha vida estava desmoronando. Meu esôfago abrigava um grande caroço, que eu tentava deglutir apesar de rasgar meu peito. Três dias depois que comecei o serviço naquele bar minha esposa falou-me de sua decisão de deixar-me. Sem mais nem menos; sem um conflito que tivesse progredido ou algo assim, o relacionamento que ia tão bem, como ela há pouco tinha dito que dissera a seu analista, terminava. E o que eu poderia fazer?

Após preparar a janta para aguardá-la, com muito sono, percebi que mal passara das vinte e uma horas, sedo demais para ir buscá-la na universidade. Por isto deitei-me para tirar um cochilo, tendo o cuidado que pôr o rádio relógio a despertar dali uma hora e meia. E, para garantir que não passaria da hora, deitei como rádio de fones a todo volume. Acordei mais tarde ouvindo potentes batidas na porta. Levantei assustado com a voz da minha esposa a me chamar. Logo percebi que tinha dormido demais e ela tivera que retornar da aula de ônibus, sendo que era difícil e perigoso. Como teria eu, que a amava tanto, cometido tão imperdoável falha?! Conferi o despertador, mas ele tinha cumprido seu dever. Eu é que não poderia tê-lo ouvido impedido pelo som alto do walkman ao qual meus ouvidos tinham acostumado. Quando abri a porta, ela entrou furiosíssima, muito além do que alguma vez estivera. Chateado por tê-la feito passar por tal situação, pedi-lhe desculpa. Todavia, ela seguiu desferindo palavras de indignação, dizendo que não podia contar comigo.

– Como não pode contar comigo?! Protestei. – Quando foi que deixei de te buscar, ficando inclusive a esperar na frente da universidade?

– Não dá pra contar contigo! Recalcitrou. – Me deixaste esperando de propósito!

– Jamais faria isto! Sabes muito bem que não faria! Quantas vezes estive na rua a te esperar?

– Não dá mesmo para contar contigo! Reiterou. Quase uma hora da madrugada e eu estou chegando em casa. Tu podia ter ido me buscar de carro, mas te custava muito!

– Como me custava muito?! Sempre tenho feito isto! Hoje é que falhei e não foi de propósito. Por favor! Não dá para perdoar?

– Não dá para contar contigo! Prosseguiu. Quando eu preciso de ti, tu me falha!

– Não é assim. Jamais foi e sabes muito bem.

– É sim! Retorquiu irracional.

– Já que é assim, nunca mais vou te buscar! Se não pode ter um pouco de gratidão para perdoar agora que eu falhei, também não te busco mais. Sentenciei.

Bastante magoado, apesar de que desejava ter tido a chance de pedir desculpas à minha amada, deitei para o lado oposto da cama e dormi com o coração duplamente dolorido. No dia seguinte despertei com uma ferida no peito por ter falhado e ao mesmo tempo ter sido tão duro com ela. No caminho para o trabalho sequer falamos. Ela, por raiva, talvez, e eu, envergonhado. Apenas a deixei no trabalho e conduzi-me para o bar, certo de que mais tarde ligaria para ela e tudo estaria certo. Pediria-lhe desculpas por tudo, esclarecendo, o que ela já sabia, que o que dissera sobre não mais buscá-la era da boca pra fora. Mais tarde liguei e me disseram que ela tinha saído do departamento e não podia atender. Muitas outras vezes liguei naquele mesmo dia, recebendo sempre a mesma resposta estranha. Decidi que se estava muito magoada não tinha problema, pois, embora não pudesse dizer-lhe que não era a sério a decisão de não buscá-la, iria até a universidade na hora da largada e a traria para casa.

Na verdade minha vida já tinha desmoronado. No estacionamento da universidade aguardei que milhares de alunos saíssem, mas ela não apareceu. Vi-a apenas em frente de casa quando retornei. Após guardar o carro, indaguei se não tinha me visto na universidade a esperá-la.

– Sim, vi, respondeu, mas preferi vir sozinha. – Não precisa mais me buscar, acrescentou, de agora em diante voltarei de ônibus.

– Para quê isto?! Qual é o propósito de fazer conflito justamente no dia do aniversário de nossa união.

– Quê aniversário?! Retorquiu. – Só pra ti esta data é importante. Tu mesmo a inventou. Para mim ela não é nada.

– Não fale assim! Seria um absurdo terminar nossa relação porque uma vez não fui te buscar.

– Não é por isto que nossa relação vai terminar, esclareceu.

– Nossa relação não vai terminar, afirmei tranqüilizado.

– È justamente sobre isto que quero te falar hoje, ela observou. – Não desejo mais continuar nosso relacionamento.

Meu mundo desabou sobre mim. Ela era a terra onde eu plantara meus sonhos, regava, adubava e aguardava germinar. Uma angústia extrema tomou conta do meu ser. Senti minhas pernas bambas, o peito explodir e o coração dissolver-se. Não era verdade. Na próxima frase ela diria que era brincadeira.

– Mas por quê?! Indaguei amargurado. – Só por causa de eu não ter te buscado uma vez?

– Não é por causa disso.

– Então é por causa da Virgínia!

– Também não é por causa disso?

– Então por que é?! Perguntei com voz embargada.

– Não é por culpa tua. O problema é comigo.

– Grande consolo! Ironizei. – Estou perdendo a quem eu amo e me conforta saber que não é minha culpa! Grande coisa que não é minha culpa! Preferia mil vezes que fosse minha culpa. Só não queria te perder!

Sua decisão era firme. A resposta evasiva de que não era minha culpa deixou bem claro que não havia retorno. Todavia, eu não a aceitaria tão facilmente. Achava que aquela decisão não tinha sido bem amadurecida. Poderia mudar quando a animosidade diminuísse. Enquanto pudesse estar em casa, lutaria para ser ainda melhor, tentando tornar-me o homem que, imaginava, ela idealizara, revertendo o desmoronamento da minha vida.

Desse dia em diante meus dias eram sombrios, sem qualquer sentido. Trabalhava meramente por uma questão de honra e por saber que um dia a escuridão teria fim. Enquanto trabalhava, minha mente era povoada de diálogos e frases que eu ensaiava sem querer para dizer no dia em que minha vida fosse devolvida, quando ela me dissesse que tudo não tinha passado de um sonho. Por dentro, um bicho pequeno roia sem parar, causando dores muito agudas a cada pedacinho que arrancava. Sobre minha cabeça, um vento impetuoso fazia muito ruído, não me permitindo ouvir o som do mundo e dificultando-me a visão e a concentração. Via-me agarrado a um pedaço de tábua num mar encapelado, submergindo e emergindo numa seqüência interminável de ondas gigantescas que surgiam da escuridão.

A quem contar o meu martírio? Quem se interessaria por minha dor e quereria socorre-me? Quem poderia, ao menos, compreender o quanto eu estava sofrendo, quão insuportável era a dor que me consumia obstruindo minha vida? Quem poderia ter tanta pena de mim para poder tira-me da dor e devolver-me a amada?

Olhava para os lados e não via sequer uma boa alma samaritana. Então seguia amordaçado e confinado naquele turbilhão tempestuoso, sem conseguir distinguir os pensamentos, sem quem me ouvisse os rogos amordaçados. Trabalhava qual zumbi, absorto em minha tortura e meu pensamento discursava de cansar, falava mal, exaltava-se, defendia meu direito, me acusava, absolvia meus erros, me consolava, torturando-me a cada pulso.

Meu amigo “Véio” me ouvia alguma vez. Sentado à alguma mesa, em intervalos do trabalho, dizia-lhe que minha esposa terminara nosso relacionamento. Sem poder compreender que lhe pedia socorro, ele ficava a me olhar em silencio, apenas deixando escapar dos lábios um indiferente “pois é!” e não fazia qualquer menção de me socorrer ou escabelar-se desatinado por causa da minha tragédia. Somente seguiu me ouvindo e deixando que eu falasse quanto quisesse.

Ele não a conhecia. Só então é que passei a falar nela. Desde o dia vinte e três de agosto até o dia vinte e cinco de setembro estivemos ainda na mesma casa. Nesse intervalo fui marido e amigo muito melhor do que eu tinha me esforçado para ser desde 1991, quando nos conhecemos numa pensão em Caxias do Sul. Marido somente na expressão, pois logo ela me correu da cama, fazendo-me dormir na sala. Todavia, durante esse mês muitas vezes sua decisão sobre a separação oscilou. Fez-me diversas propostas estranhas para ficarmos juntos. Eu aceitava a todas, mas antes que desse a resposta ela já tinha mudado de idéia e decidido que nem assim queria ficar comigo.

Naquele ínterim fizemos compras pela última vez. Quando voltávamos do hipermercado dei uma passada no bar para apresentá-la ao “Véio”. Sempre tivera orgulho de apresentá-la como esposa. Orgulhava-me dela, o que já não a interessava. Portanto, queria salvar a lembrança do meu casamento, mostrando para as pessoas daquele bar que eu não era um mero decorador de paredes de bares, mas que tinha uma família muito requintada.

SEGUE

O AMIGO QUE NÃO CONSEGUI SALVAR - II PARTE

Minha vida estava desmoronando. Minha esposa, que era a base do meu projeto de vida, estava me extirpando de sua vida como se eu fosse um câncer. Justamente eu, que sempre quisera ser um bom marido, o melhor amigo e fora assim sem o menor esforço, pois a gentileza e a concórdia com minha amada sempre fora meu projeto. Todavia, aquela que até então fora meu lado direito queria desvencilhar-se de mim agora, como se eu fosse um estorvo.

Eu agonizava. Minha vida era sombria, o ar me sufocava e a atmosfera ao meu redor pesava mais que um ônibus sobre as minhas costas.

Na localidade onde morávamos, em Porto Alegre, eu não tinha nenhum parente e amigo, a não ser os familiares dela. Não queria procurar meus familiares em São Leopoldo para não ter que admitir que meu casamento tão louvado por tanta gente estava desmoronando. Não queria decepcioná-los, já que minha amizade com minha esposa era um modelo para muitos deles e para tantos conhecidos. Todavia, eu fracassara e o grande temor que jamais tivera desabava então sobre meus ombros. Não conseguira ser bom como pensava que seria e manteria minha amada sempre admirada de mim.

No local onde trabalhava no momento por ordem de minha empresa, um bar, fizera um amigo de apelido “Vandeco”, mas que eu chamava mesmo de “Véio”. Pouco tempo depois recebi permissão da empresa para contratar um ajudante que pintasse o fundo nas paredes para que eu desenhasse as marcas dos produtos da mesma. Então contratei o novo amigo “Véio”, que ficou muito agradecido por isso. Após sua primeira semana de trabalho, na sexta-feira, um dia que eu passara em reunião na empresa, fui ao bar procurá-lo para levá-lo ao escritório para que recebesse sua semana. Não o achando no bar, procurei-o no apartamento da irmã, onde achei-o muito bêbado. A minha indagação do que tinha bebido para ficar tão alcoolizado, ele respondeu que tomara uma garrafa de “Fogo Paulista”.

Não sei por que cargas d’água nesse dia eu estava a pé, motivo pelo qual tomamos um ônibus para viajar uns trinta minutos até o ponto de onde seguíramos a pé ao escritório. Entretanto, no coletivo meu amigo bêbado ia provocando os homens e mexendo com cada mulher que via. Até sentou-se ao lado de uma que logo ele começou a incomodar muito. Sendo que nunca gostei de bêbados, muito menos dos tipos “xaropes” e prevalecidos, me arrependi de tê-lo convidado para ir ao escritório, sendo que para receber somente ele assinando o recibo lá. E jurei para mim mesmo que nunca mais cairia em tal fria.

Diante dessa situação, comecei a imaginar um meio de desfazer o equívoco e tirá-lo do ônibus antes que arrumasse confusão bem séria. Então lembrei que nas imediações havia uma agência do banco Bradesco, onde eu era correntista. Peguei-o pelo braço e fui puxando -o rapidamente por entre as pessoas para descer na próxima parada. Sem entender nada, ele me seguiu balbuciando asneias. Então, ao descer dei-lhe uma tremenda carraspana mostrando que estava mesmo muito decepcionado. Surpreso, ele calou-se. Fiz então o saque e dei-lhe sua semana, pensando que em outra ocasião o levaria ao escritório para ele assinar um recibo e eu ser reembolsado.

Até o dia 25 de setembro de 1996, quando saí de casa cumprindo o ultimato que minha esposa me dera na noite anterior (mesmo dia do aniversário do meu irmão que morrera havia menos de dois anos), o “Véio” viu-a comigo ainda algumas vezes e, apesar das peripécias que ele fizera no ônibus dias antes, ele pareceu-me muito respeitador, haja vista que a tratava de dona Deise.

Durante o mês que se passou entre o dia 23 de agosto, quando recebi anúncio do fim do casamento, e o dia 25 de setembro, quando de fato saí de casa, amarguei a dor das muitas noites que ela não posou em casa, especialmente nos finais de semana. Numa sexta-feira a noite, vendo que ela não retornaria, minha estrutura emocional desabou, então fui para o bar excepcionalmente para tomar cervejas e encontrar o “Véio” para desabafar. Ouvindo então minhas queixas e vendo que eu não mais me sustentava, acho que ele tomou-se de compaixão, pelo que convidou-me para irmos a Alvorada tomar umas cervejas no bar de uns amigos dele lá, onde então veríamos algumas mulheres. Conhecedor, porém, da fama dessa cidade, disse-lhe não era um bom lugar para se ir. Entretanto, ele garantiu que seria

Seguro, pois todos o conheciam muito bem na localidade. Decidido então a ir com ele, dirigiu-me para o carro enquanto ele convidou dois de seus amigos para nos acompanhar.

Sentado junto ao volante e contemplando o tipo de programa para o qual agora eu rumava, sendo que sempre preferira estar em casa com minha amada e agora isso tornava-se cada vez mais distante, minha amargura tornou-se então insustentável e fui tomado de súbito choro que o “Véio” e os amigos assistiram estupefatos, não crendo que se dava simplesmente por uma mulher, que para eles, decerto, poderia descartável.

No bar na cidade vizinha, rodeado de muitos “caras” curiosos quais leões novos, sendo servido de cervejas por qualquer deles a qualquer tempo, não compreendia e ao mesmo tempo me assustava de tanta atenção e apreço. Compreendi, porém, quando meu amigo pô-se ao meu lado e anunciou para todos que eu era o maior traficante de drogas de Porto Alegre e que por baixo do sobretudo que eu vestia havia uma arma calibre doze de cano serrado.

Sorri por causa da brincadeira e corrigi-o esclarecendo que se tratava de uma graciosa lorota. Pretendia que todos soubessem que não era verdade e assim não me temessem. Ele, porém, me corrigiu e disse que eu deveria deixar por isso mesmo, pois assim todos me respeitariam no local e eu estaria seguro.

– Mas esse boato pode correr a boca solta e cair nos ouvidos da polícia!, reclamei.

Ele, porém, garantiu que não tinha perigo, pois era só uma brincadeira e eles tinham medo da polícia.

Pensei em pegar meu carro e convidá-lo para irmos embora, mas achei que seria muito antipático e poderia causar mal estar em alguém. Portanto, fiquei até que fomos para outro lugar, mas só me tranquilizei quando ele concordou em voltarmos para casa. Então o deixei no apartamento de sua irmã e fui-me para minha realidade sórdida.

Em conversa na segunda-feira ele me esclareceu que fora um grande chefe do tráfico na cidade vizinha, sendo que todos aqueles para os quais ele me apresentou como chefão eram seus seguidores. Explicou que por causa disso fora pego pela polícia e cumprira pena por sentença no presídio Central de Porto Alegre. Com certo sarcasmo duvidei do que ele me disse, mas ele pareceu muito sincero e ainda indicou-me que confirmasse com sua mãe e irmã. Então não mais duvidei, pois vira a influência que ele exercera sobre todos aqueles homens no bar na noite da sexta-feira anterior, sendo que somente faltou que me lavassem os pés.

Após me contar todas essas coisas periclitantes perguntou se ainda confiaria nele para ser meu amigo. Respondi que confiaria, se era certo que ele não mais queria viver como contraventor. Ele relembrou que já cumprira sua pena. Repliquei que isso não era o suficiente, mas que o arrependimento e o desejo de começar nova vida eram tudo para mim.

Mais uma vez então ele me agradeceu pela oportunidade de um trabalho honesto e garantiu que seria meu seguidor em tudo para o bem.

Quanto ao problema da minha separação, ao deixar nossa morada, esperançoso de que logo minha esposa quereria que eu voltasse para casa, aluguei uma quitinete num cortiço familiar há algumas quadras de nossa residência e algumas vezes o “Véio” para lá ia para comer e passar a noite. Todavia, sempre com a recomendação de não ir bêbado e nem beber lá, o que ele sempre obedecia.

Muito trabalhador e dedicado ao trabalho, ele sempre agradecia pela oportunidade que eu tinha lhe dado de trabalhar honestamente. Durante o dia, enquanto eu estava com ele no local de trabalho, ele não bebia, mas eu sabia que o fazia sempre após o expediente, motivo pelo qual, apesar de que toda semana recebia, sempre me pedia dinheiro para a passagem e, algumas vezes, até dinheiro para comprar um “barrigudinho” de cachaça.

Certo domingo, convidei-o para fazermos um bom almoço em minha casa. Sendo que eu sempre tinha na geladeira uma garrafa de caninha para qual empresa eu trabalhava, vendo-a, pois esqueci de escondê-la, ele me pediu que o permitisse fazer uma “caipirinha”.

– Olha, amigão. Tu só encontraste esta garrafa aí porque me esqueci de tirá-la, esclareci.

– Não é meu costume beber e um litro destes dura mais de dois meses na geladeira, pois de vez em quando faço uma “caipira”, expliquei. – Por isso, amigão, não queria que tu bebesses dele, até porque estás proibido de beber ou vir bêbado aqui. E é certo que tu vai beber até te embebedar, acrescentei.

Ele, porém, argumentou:

– Mas nem mesmo uma caipira?! Prometo que não vou tomar mais do que uma!

E, não querendo ser muito duro, permiti que fizesse ao menos uma:

– Mas olha bem, adverti. – Se tu começar a incomodar como daquela vez do ônibus vai direto para a cama e não vem mais aqui!

É certo, porém, que ele não cumpriria o prometido. Eu sabia disso, pois já tinha experiência bastante para saber que, mesmo que fosse verdade, após beber o alcoolista perde a capacidade de cumprir o que prometeu.

E de fato ele se embriagou e muito, pois tomou quase todo o litro de água ardente. Então logo começou a se exaltar e falar bobagens.

– Ah, amigão! Eu sabia que tu ias te “empedrar”!

Repreendi-o e tirei-lhe logo a garrafa que estava quase no fim.

Insatisfeito, porém, ele me pediu que devolvesse.

– Não devolvo, “chapa”, tu não tens controle!

E acrescentei:

– Logo vi que tu és um bêbado sem controle, por isto não vou te devolver a garrafa jamais.

– Então tu não és meu amigo, apelou quase grunhindo.

– Não sou teu amigo não, respondi com voz austera. – E vai dormir agora mesmo para curar esse porre!

E, com se tivesse ficado com medo de mim, sem mais um resmungo, ele se deitou no sofá e dormiu até o dia seguinte.

Nesse tempo já estávamos trabalhando em um mini-mercado numa região próxima, mas nem tão próxima. Na segunda-feira, quando eu ia saindo mais cedo para ir ao escritório da empresa ele me pediu cinquenta centavos para inteirar na passagem. Dei-lhe o dinheiro e me fui tranquilo. No dia seguinte se queixou da avareza do homem proprietário do mercadinho.

– Pedi cinquenta centavos para ele para tomar um gole e o unha de fome me negou. Então pedi que se não podia dar cinquenta centavos me desse um barrigudinho. O “desgranido” me negou também. Que cara bem unha de fome, acrescentou. – Tenho nojo de gente assim, esclareceu. – O que tu acha?, me questionou. É justo isso?

– Sim, é justo, respondi.

– Mas tu vai concordar com ele!, exclamou.

– Sim, vou. Se tu não tivesse pedido nada para ele jamais teria ouvido o não.

– Mas tu não achas que não custava nada ele me dar?

– Não acho não. Se tu trabalha e bebe tu mesmo deve pagar a tua bebida.

– Não acredito que está ficando contra mim, retrucou.

– Não estou contra ti, expliquei, apenas não concordo contigo. Inclusive, tu até deveria deixar de beber, acrescentei. – E eu mesmo também não te daria dinheiro nenhum para beber. E, inclusive vou dizer ao homem para não te dar.

Ele não falou mais nada e eu prossegui.

– Ninguém tem obrigação de dar dinheiro para alguém beber. Inclusive, tu te lembra da bagunça que fez domingo lá em casa?

– Não lembro de nada. Desculpe, não devia ter bebido!

– É. E não devia mesmo. Encheu a cara, começou a correr como um louco pelo cortiço desrespeitando as vizinhas. Os homens já estavam prontinhos pra te dar um laço. Eu é que não deixei e pedi para eles que tivessem pena.

– Não acredito que fiz tudo isso!, exclamou com as mãos na cabeça. – Me perdoa, por favor! Ai! Que vergonha!

– Pior não é isso. Muito pior é o escândalo que tu fez na frente da Deise.

– Não me conta! A dona Deise apareceu?!

– Pois é. Ela nunca aparece e quando resolveu aparecer tu me fez aquele papelão. Me deixou “queimadinho” da Silva. Agora sim que ela nunca mais vai me querer.

Muito envergonhado, ele se desculpou mais algumas vezes, pedindo que eu o desculpasse e pedisse a dona Deise que o desculpasse quando a visse. Respondi-lhe que iria pensar no caso.

Imaginando que tinha sido muito duro e um tanto injusto com ele me calei e seguimos o dia de trabalho. Ele, por sua vez, também se calou e passou assim quase todo o dia. No dia seguinte, logo que começamos a trabalhar ele me falou que passara a noite pensando no homem unha de fome dono do mercadinho e nas coisas horríveis que ele devia ter feito para a dona Deise ter se indignado com ele.

– No fim tu e o homem estão certos, esclareceu. – Não têm porque sustentar o meu vício.

Não falei nada. Apenas fiquei escutando para ver onde terminaria.

– Me senti muito humilhado por causa de uns míseros cinquenta centavos.

Eu ia dizer que ele não precisava ter sido humilhado se não pedisse dinheiro para beber. Todavia, deixei-o seguir falando.

– Por outro lado, prosseguiu, – sinto uma vergonha imensa por ter desrespeitado a dona Deise.

Fiquei com pena por ele carregar essa culpa e tive impulso de desmentir, mas achei melhor deixar assim.

Ele disse essas palavras e se calou, trabalhando calado até além do meio da manhã. E por minha vez também seguia calado, não querendo abusar de seu remorso.

– Só para mostrar para vocês com quem estão lidando nunca mais vou beber, anunciou.

Pensei em dizer que duvidava, mas achei melhor estimular.

– Vocês vão ver só, esclareceu, – eu nunca mais vou beber, só por desaforo e vocês nunca mais vão me humilhar por causa de cinquenta centavos!

– Se tu deseja mesmo parar de beber não precisa prometer para mim, corrigi, prometa para ti mesmo. E acrescentei: – Eu da minha parte desejo que tu pares mesmo.

Passaram-se duas semanas e não falamos mais no assunto. Ele, porém, estava com o semblante mudado. Então lembrei de perguntar-lhe como estava o propósito de parar de beber. Ele respondeu que desde aquele dia não mais bebera. Não acreditei completamente, mas achei melhor dar-lhe o crédito. Afinal, como nós humanos poderemos saber daquilo que não vemos?

Algum tempo mais se passou, o inverno acabou e vieram dias de sol mais quente e calor da primavera. Tínhamos terminado o mercadinho naquela localidade e já estávamos trabalhando em um restaurante e lancheiria em outra localidade, mas não muito distante.

O “Veio” trabalhava firme com o rolo de pintura, subindo e descendo escada com as costas expostas ao sol forte do resto da manhã e da tarde. Desde outro trabalho que fizemos depois do trabalho do mercadinho ele se queixava que sentia dores na caixa torácica, como uma pressão nas costelas quando tomava o sol quente nas costas. Agora nesse novo trabalho suas queixas aumentaram e certo dia ele chegou dizendo que cuspira sangue. Sendo que estávamos próximos a um posto médico do Sistema Único de Saúde, dispensei-o para que consultasse o médico. Ele voltou com uma ordem para baixar o hospital.

Por mais de um mês ele esteve isolado sem poder receber visitas, a não ser da mãe e da irmã. Quando foi liberado para receber outras visitas, visitei-o em meio a um mar de parentes que vieram para vê-lo. Ao chegar, fui apresentado a todos como o salvador do meu amigo. Dei um sorrisinho amarelo e esclareci que não fizera absolutamente nada, apenas o tinha dispensado do trabalho. Sua irmã, porém, esclareceu que o pulmão dele estava cheio de água e o médico tinha dito que ele baixou o hospital na hora crucial. Durante as consultas, indagaram se ele usava drogas e bebida. Ele respondeu que sim, mas esclareceu que a droga deixara um antes do álcool, que ele deixara em definitivo mais ou menos um mês antes por força do empurrão de um amigo. O medido então observou que se ele não tivesse parado com o álcool quando parou teria morrido antes de receber tratamento. Sendo assim, concordavam ele, sua mãe e sua irmã que eu o salvara da morte.

Havia muitos anos que eu deixara a Igreja Adventista do Sétimo Dia, em qual fé nascera e crescera. Por aquele tempo em que ele parou de beber, porque ele disse que me seguiria em tudo para o bem, convidei-o então para irmos a igreja. Ele replicou, porém, que iria para onde eu fosse, mas à igreja não iria nem comigo, pois seus filhos eram também filhos de uma mulher de uma tradicional igreja pentecostal e que para fazer amor com a esposa somente através de um furo no lençol, pois ele jamais a viu nua, sendo que ainda dizia que a vida com ela tinha sido muito cheia de conflitos. De mais a mais, acrescentou que sua mãe e irmã freqüentavam certa igreja neo-pentecostal em busca de solução para os problemas e riquezas, mas arrumavam sempre mais problemas.

Sendo então que eu era o seu salvador, sempre que o visitava sua mãe e irmã apelavam para que eu jamais deixasse de ser amigo dele e nem me mudasse para distante, pois elas temiam que ele voltasse à droga e à bebida. Entretanto, eu sofria muito por causa da separação da minha esposa e andava atrás de encontrar o novo “grande amor” unicamente com o qual diziam que seria possível esquecer “outro grande amor”. Não encontrando-o, porém, em Porto Alegre, no inverno de 2007 venci o orgulho e me mudei para são Leopoldo para refugiar-me temporariamente na casa de minha mãe, onde teria quem me ouvisse e compartilhasse da minha dor. Sendo que não alugaria casa, deixei a TV e a geladeirana na casa do “Véio” em Alvorada e outras coisas deixei na casa de um amigo no mesmo bairro onde morava.

Entretanto, querendo cumprir minha missão de mantê-lo salvo, ainda uma vez o visitei em Alvorada e passei parte do dia com ele, inclusive almoçamos juntos. Saí mais cedo do que o previsto, porém, porque ele saiu com um revólver carregado para ir discutir com um vizinho uma rixa entre seus meninos. Pedi-o que não fosse e até ameacei de que não mais voltaria, mas ele não deu atenção e enquanto ele foi peguei minha moto e me mandei.

Liguei no outro dia para a irmã dele para saber se estava tudo bem. Ela disse que estava tudo bem e que quando ligou para ela o “Véio” só disse que não sabia porque eu fora embora tão cedo. Pedi a ela que dissesse a meu amigo “Véio” que para ser meu amigo precisava deixar de lado ludo o que não era bom.

Em 2001 precisei de mais uma geladeira e me lembrei da que eu tinha deixado com meu amigo, a qual era muito boa. Liguei para a sua irmã para saber como encontrá-lo. Ela logo reconheceu a minha voz e começou a chorar.

– Tu não sabe o que aconteceu com o Vandeco?

Pela pergunta e pelo choro, imaginei que tivesse voltado para o tráfico e o tivessem assassinado ou tivesse cumprindo pena novamente. Porém não respondi. Apenas disse:

– Não. O que ele teria aprontado?

– Sem te ter perto, ele se misturou com os mesmos velhos amigos e voltou a usar cocaína e a beber, morrendo pouco depois da mesma doença da qual antes tu o salvou.

Após manifestar minhas condolências não pude dizer mais nada. Apenas fiquei pensando que era por isso que eu queria tê-lo levado à igreja e o apresentado a meu amigo Jesus Cristo, pois eu sabia que não poderia mantê-lo salvo para sempre, mas Jesus podia, pois seria um amigo sempre presente, e ainda poderia fazê-lo viver além da eternidade.

Quanto a mim, quem sou eu para salvar alguém se não conseguir refletir a luz de Jesus e fazer as pessoas se apaixonarem por Ele e O sigam para onde Ele for?