REDENÇÃO - (Quase uma prece)

Foi para isso que vim a este mundo, senhor? Para ver-vos a acusar-me por vossa morte, ao longo dos tempos e ao longo de cada dia?

Foi para isso que vim a este mundo, senhora? Para ver-te a acusar-me, todos os dias, por tua morte, a mim que só há tão pouco tempo vim a conhecer-te, a saber da tua existência?

Foi para isso que vim a este mundo, Pai? Para renunciar-me a mim e a todos os destinos possíveis de mim? Para ficar aqui, erma e só, com este outro Destino nas mãos, só em minhas mãos, o Destino desta através de quem vim para cá? Para proteger este ser, em dever sagrado, para protegê-lo com minhas frágeis mãos, com minhas pernas frágeis, sem que a família se dê conta do meu Medo, da minha Impotência, da Dor por tanta falta de cumplicidade, mesmo de amor?

Foi para isso, Pai? Para não conseguir imaginar nada, nada para além do Horror, nada para além deste túnel, deste labirinto, nada que me acene com a possibilidade da Compreensão, da Redenção, da Compreensão e da Redenção para todos nós, em algum tempo de algum dia a vir? Nada para além dos tantos Erros, das tantas Omissões, dos tantos Silêncios, dos tantos Equívocos? Nada para além destes crimes inimaginados por Kafka, esses crimes que me são todos atribuídos, esses crimes sem rosto, pelos quais se encarcera a minha vida?

Ninguém, ninguém dos companheiros tem sido capaz de fazer um gesto sequer de “mea culpa”: ninguém. Deixaram para mim o dolo, o ônus, a responsabilidade única, suprema, por todas as nossas mortes, perdas e fracassos.

Tanta luta, tanta Dor, tantas perdas, tanta morte, recuso-me a crer que sejam por nada. Eu me recuso a crer nisso. NÃO SE PODE DAR A PRÓPRIA VIDA EM VÃO. PARA ALGUM RESGATE A DOAÇÃO DA PRÓPRIA VIDA TEM QUE SERVIR.

Nada disso pode ser mero fruto de um Acaso perverso. Para além das nossas mortes em vida, em algum tempo, mesmo que em algum outro mundo, e para além das presentes cinzas e dos presentes Ressentimentos, haverá de vir um Renascimento. Eu preciso crer nisso, eu vivo na esperança de vir a conseguir ainda a plena crença nisso, a fim de que eu possa manter o que me reste de vida neste aqui, neste agora. EU PRECISO CRER.

E saber que esse destino nos veio, essencialmente, porque cometi, porque cometemos, todos, o mais terrível dos pecados, mais que pecado, o mais terrível dos crimes: o imperdoável crime de SONHAR.

Na manhã de 24 de maio de 2011.