A Insensatez dos Gálatas

 
Por João Calvino
 
Ó gálatas insensatos! Quem vos fascinou a vós outros, ante cujos olhos foi Jesus Cristo exposto como crucificado?
Quero apenas saber isto de vós: recebestes o Espírito pelas obras da lei ou pela pregação da fé?
Sois assim insensatos que, tendo começado no Espírito, estejais, agora, vos aperfeiçoando na carne?
Terá sido em vão que tantas coisas sofrestes? Se, na verdade, foram em vão.
Aquele, pois, que vos concede o Espírito e que opera milagres entre vós, porventura, o faz pelas obras da lei ou pela pregação da fé?” (Gálatas 3.1-5)
v. 1 – “Ó gálatas insensatos”. Uma admoestação é aqui inserida em meio às suas declarações doutrinárias. Alguns se admirarão por ele não ter adiado isto para o fim da epístola, mas a natureza muito grave dos erros que ele havia apresentado, sem dúvida, despertou-o para uma explosão de paixão. Quando ouvimos falar que o Filho de Deus, com todos os seus benefícios, é rejeitado, que a sua morte está sendo estimada em nada, qual mente piedosa não ficaria indignada? Ele, portanto, declara que aqueles que se deixaram envolver num crime tão hediondo deveriam ser νόητοι, isto é, "desordenados de mente." Acusa-os não só de terem sofrido eles próprios ao serem enganados, mas de terem sido conduzidos por algum tipo de encantamento mágico, que é uma acusação ainda mais grave. Ele insinua que sua queda pertencia mais à loucura do que à insensatez.
Alguns pensam que Paulo se refere ao temperamento da nação, que, sendo formada a partir de bárbaros, era mais difícil de treiná-los; mas eu prefiro pensar que ele se refere ao próprio sujeito em si mesmo. Parece que alguma coisa sobrenatural, que, depois de desfrutarem o evangelho em tal clareza, devem ter sido afetados pelas ilusões de Satanás. Ele não se limita a dizer que eles estavam "enfeitiçados" e "desordenados em mente", porque eles não obedeciam à verdade; mas porque, depois de ter recebido instruções tão claras, tão completas, tão ternas e tão poderosas, imediatamente caíram. Erasmo optou por interpretar as palavras, "para que não acreditassem na verdade.” Eu não estou muito disposto a refutar essa afirmação, mas prefiro a palavra obedecer, porque Paulo não os acusa de terem, desde o início, rejeitado o evangelho, mas por não terem perseverado na obediência.
“Ante cujos olhos”. Isto se destina, como já deu a entender, para expressar um agravamento; porque, tendo eles tido as melhores oportunidades para conhecer a Cristo, mais hediondo foi o crime de o abandonarem. Tal, ele lhes diz, foi a clareza de sua doutrina, que não era doutrina nua, mas a expressa imagem viva de Cristo. Eles tinham conhecido Cristo de tal maneira, que deles poderia ser quase dito tê-lo visto.
“Jesus Cristo foi evidenciado”. A interpretação de Agostinho da palavra προεγράφη ("tem sido estabelecido") é dura, e inconsistente com o projeto de Paulo. Ele faz isso para significar que Cristo devia ser expulso da posse. Outros propõem uma frase diferente, (proscriptus) que, se for usada no sentido de "abertamente proclamado," não seria inaplicável. Os gregos, portanto, pedem emprestado este verbo à palavra προγράμματα, para designar as placas em que bens destinados a serem vendidos são publicados, de modo a serem expostas à vista de todos. Mas o particípio, pintado, é menos ambíguo, e, na minha opinião, é extremamente apropriado. Para mostrar quão enérgica foi sua pregação, Paulo primeiro a compara a uma imagem, que exibiu a eles, de uma forma viva, a imagem de Cristo.
Mas, não satisfeito com esta comparação, acrescenta, Cristo foi crucificado, dando a entender que a visão real da morte de Cristo não poderia ter-lhes afetado mais poderosamente do que sua própria pregação. A visão dada por alguns, de que os gálatas haviam "crucificado para si ( Hebreus 6: 6 ) o Filho de Deus novamente, e colocaram-no à ignomínia"; que eles tinham removido a pureza do evangelho; ou, pelo menos, haviam emprestado seus ouvidos, e dado a sua confiança, a impostores que o crucificaram, - parece-me muito forçada. O significado, portanto, é que a doutrina de Paulo instruiu-os a respeito de Cristo, de tal maneira, como se tivesse sido exibida a eles em uma imagem, ou melhor, "crucificado entre eles." Tal representação não poderia ter sido feita por qualquer eloquência, ou por "palavras persuasivas de sabedoria humana" (1 Coríntios 2.4), se não tivesse sido acompanhada pela força do Espírito, do qual Paulo tratou em grande parte, em ambas as Epístolas aos Coríntios.
Que aqueles que devem cumprir corretamente o ministério do evangelho aprendam, não apenas a falar e declamar, mas a penetrar nas consciências dos homens, para fazê-los ver Cristo crucificado, e sentir o derramamento de seu sangue. Quando a Igreja tem pintores como estes, ela não precisa mais das imagens mortas de madeira e pedra, ela não requer mais fotos; as quais, sem dúvida, foram primeiramente admitidas em templos cristãos, quando os pastores haviam se tornado mudos e sido convertidos em meros ídolos, ou quando proferiram algumas palavras do púlpito de uma maneira tão fria e descuidada, que o poder e a eficácia do ministério foram totalmente extintos.
v. 2 – “Quero apenas saber isto de vós”. Ele agora passa a apoiar sua causa com argumentos adicionais. O primeiro é tirado de sua experiência, pois ele lhes lembra de que maneira o evangelho foi introduzido entre eles. Quando ouviram o evangelho, eles receberam o Espírito. Não foi com a lei, portanto, mas com a fé, que receberam esse benefício. Este mesmo argumento é usado por Pedro na defesa que ele fez a seus irmãos por ter batizado pessoas não circuncidadas (Atos 10.47). Paulo e Barnabé seguiram o mesmo curso no debate que foi mantido em Jerusalém sobre este assunto (Atos 15.2,12). Houve ingratidão manifesta, portanto, em não se submeterem à doutrina, por meio da qual eles haviam recebido o Espírito Santo. A oportunidade que ele lhes dá para replicar é expressiva não de dúvida, mas de maior confiança: porque suas convicções, fundadas em sua própria experiência, obrigou-os a reconhecer que era verdade.
A fé é aqui colocada, por uma figura de linguagem, porque o evangelho, que é chamado em outro lugar "a lei da fé" (Romanos 3.27), apresenta-nos a graça de Deus em Cristo, sem qualquer mérito de obras. O Espírito significa aqui, penso eu, a graça da regeneração, que é comum a todos os crentes; embora eu não tenha nenhuma objeção a entendê-la como se referindo aos dons peculiares pelos quais o Senhor, naquele período, honrou a pregação do evangelho.
Pode-se objetar que o Espírito não foi, a este respeito, dado a todos. Mas, foi o suficiente para o propósito de Paulo, de que os Gálatas sabiam que o poder do Espírito Santo na sua Igreja tinha acompanhado a doutrina de Paulo, e que os crentes foram diversamente dotados dos dons do Espírito para a edificação geral. Pode também ser objetado, que esses dons não eram sinais infalíveis de adoção, e por isso não se aplica à presente questão. Eu respondo, que foi o suficiente para que o Senhor tivesse confirmado a doutrina de Paulo pelos dons visíveis de seu Espírito. Uma visão ainda mais simples do caso é, que tinham sido distinguidos pelo privilégio comum de adoção, antes que aqueles impostores tivessem apresentado os seus acréscimos. "No qual", diz ele aos Efésios, "em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido, fostes selados com o Santo Espírito da promessa;" (Efésios 1.13).
v. 3 – “Sois vós tão insensatos?”. Os comentaristas não estão de acordo sobre o que ele quer dizer com o Espírito e com a carne. Ele alude, na minha opinião, ao que tinha dito sobre o Espírito. Como se ele tivesse dito: "À medida que a doutrina do evangelho lhe trouxe o Espírito Santo, o início do seu curso era espiritual; mas agora tendes caído em uma condição pior, e pode-se dizer que caíram do Espírito na carne." A carne denota tanto para fora e voos fugazes, quanto cerimônias, especialmente quando elas estão separadas de Cristo; ou denota doutrina morta. Havia uma estranha incoerência entre seu início esplêndido e seu progresso futuro.
v. 4 – “Terá sido em vão que tantas coisas sofrestes?”. Este é outro argumento. Tendo sofrido tantas coisas em nome do evangelho, teriam eles agora, em um instante, perdido tudo isso? Não, ele coloca isto na forma de censura, se eles estavam dispostos a perder a vantagem de tantas lutas ilustres que fizeram pela fé. Se a verdadeira fé não tivesse sido entregue a eles por Paulo, era temerário sofrerem qualquer coisa em defesa de uma causa ruim; mas eles tinham experimentado a presença de Deus em meio a perseguições. Assim, ele ataca os falsos apóstolos com má vontade por privarem os gálatas de tais ornamentos valiosos. Mas, para atenuar a gravidade da censura, acrescenta, este “terá sido em vão”; para inspirar, assim, suas mentes com a expectativa de algo melhor, e despertar-lhes para o exercício de arrependimento. Porque a intenção de toda correção, não é para conduzir os homens ao desespero, mas levá-los a um curso melhor.
v. 5 – “Aquele, pois, que vos concede o Espírito”. Ele não está falando da graça da regeneração, mas dos demais dons do Espírito Santo; porque um assunto diferente do precedente é manifestamente introduzido. Ele avisa que todos os dons do Espírito Santo, em que se destacou, são os frutos do evangelho, do evangelho que tinha sido pregado entre eles por seus próprios lábios. Seus novos professores privaram-nos daqueles dons quando eles deixaram o evangelho, e fugiram para um outro tipo de doutrina. Em proporção ao valor que eles atribuíram àqueles dons, que o apóstolo aqui acrescenta o de milagres, eles deveriam mais cuidadosa e resolutamente aderirem ao evangelho.

Traduzido por Silvio Dutra.

 

 
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João Calvino
Enviado por Silvio Dutra Alves em 10/08/2014
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