Continuidade Entre os Testamentos

Sermão pregado em 28 de Junho de 2017.

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"Amparou a Israel, seu servo, a fim de lembrar-se da sua misericórdia a favor de Abraão e de sua descendência, para sempre, como prometera aos nossos pais." (Lucas 1.54-55)

INTRODUÇÃO

Lucas 1 narra que, na época que Herodes reinava sobre a Judeia, havia um sacerdote chamado Zacarias, cuja esposa era Isabel. Ambos eram justos diante de Deus, vivendo irrepreensivelmente em todos os preceitos e mandamentos do Senhor. Mas Isabel era estéril, e eles já eram idosos. Aconteceu que, tendo Zacarias entrado no santuário para queimar incenso, apareceu-lhe o anjo Gabriel, que lhe informou que ele teria um filho, cujo nome seria João; e esse filho foi chamado para preparar o povo de Israel para receber Jesus Cristo.

No sexto mês da gravidez de Isabel, Gabriel foi enviado a uma parente dela chamada Maria. Ele anuncia que, mesmo sendo virgem, ela daria luz a Jesus, o Filho do Altíssimo. Deus iria dá-lo o trono de Davi, e o seu reinado não terá fim. O próprio Espírito Santo desceu sobre ela e a fez conceber. Nos versículos 46-55 temos registrada a canção com que Maria louvou a Deus pelo que Ele estava fazendo por meio dela. É no contexto dessa canção que temos a afirmação que lemos. A partir disso eu quero expor a seguinte doutrina: a fé cristã é a continuação da religião do Antigo Testamento. Primeiramente vou dar sete provas dessa doutrina, então vou explicar porque é tão importante que a gente saiba disso.

DEMONSTRAÇÃO

1. O Senhor começou a revelação do Novo Testamento por meio de um sacerdote do Antigo Testamento. Depois do último livro do Antigo Testamento, Malaquias, o Senhor ficou séculos sem se revelar de maneira especial. Possivelmente houve uma ou outra revelação aqui e ali, mas, se houve, não foi nada que fosse muito necessário, tanto é que nós não temos registro delas. Mas quando Deus decidiu quebrar o silêncio e começar a revelar a nova era que estava por vir, Ele o fez por meio do sacerdote, Zacarias, dizendo a ele qual seria o papel de João Batista nesse novo tempo. Ao escolher um sacerdote, Deus estava demonstrando que o novo testamento era uma continuação da religião judaica e não um rompimento completo com ela. Isso fica mais claro se lembrar o seguinte: qual foi a última profecia do Antigo Testamento? A profecia sobre a vinda de João Batista.

2. Jesus veio para sentar no trono de Davi. É o que o anjo Gabriel diz para Maria, no versículo 32. Ele veio para ser o rei de Israel, o descendente legítimo do rei Davi que iria governar em Jerusalém. Esse reino ainda não foi completamente estabelecido, então nós aguardamos por ele da mesma forma que os judeus, mas nisso temos uma evidência de que essa expectativa de um reino que virá é presente tanto no Antigo quanto no Novo Testamento.

3. Jesus cumpriu várias profecias do Antigo Testamento. Por exemplo, Lucas capítulo 2 nos ensina que o Imperador César Augusto obrigou todo o império a ir para as cidades em que nasceram porque haveria uma contagem da população. Por causa desse censo, José e Maria tiveram que ir para Belém, onde Jesus nasceu. Nesse evento cumpriu-se a profecia registrada em Miqueias 5 de que o futuro rei, que iria restaurar Israel, nasceria em Belém. E poderíamos citar muitos outros exemplos, como o fato de Jesus ter nascido de uma virgem para cumprir Isaías 7.

4. Os justos da época de Jesus entenderam que a vinda dele era para cumprir o que é dito no Antigo Testamento. Maria diz isso no seu cântico, que Deus "amparou a Israel, seu servo, a fim de lembrar-se da sua misericórdia a favor de Abraão e de sua descendência, para sempre, como prometera aos nossos pais". E os versículos 68-79 de Lucas 1 registram um cântico de Zacarias em que ele também repete essa ideia, dizendo que a vinda de Jesus era uma vinda para salvar Israel, para cumprir aquilo que os profetas haviam dito, para libertar os judeus dos seus inimigos e dar a eles a graça de adorarem ao Senhor sem temor, em santidade e justiça.

5. Jesus cumpriu desde o nascimento todos os mandamentos do Antigo Testamento. Lucas 2 mostra que Jesus foi circuncidado ao oitavo dia como todo judeu e cumpriu todos os rituais judaicos que ele tinha que cumprir. O versículo 39 de Lucas 2 enfatiza isso: "Cumpridas todas as ordenanças segundo a Lei do Senhor (...)". E nós podemos ver no resto dos evangelhos que ao longo da sua vida inteira Ele continuou cumprindo as ordenanças judaicas.

6. Na sua vida, Jesus experimentou muitas das coisas que o povo de Israel experimentou no Antigo Testamento. Por exemplo, algum tempo depois da circuncisão Dele (podem ser dias ou até dois anos), segundo Mateus 2, Herodes, o homem que os romanos colocaram como rei da Judeia, soube que o verdadeiro Rei dos Judeus havia nascido. Então ele decidiu matá-lo. Mas José foi avisado em sonhos por Deus e fugiu para o Egito, ficando lá até a morte de Herodes. Segundo Mateus 2.15 essa estadia no Egito aconteceu para que, quando Jesus voltasse de lá, pudesse identificar-se com o povo de Israel, que também fugiu para o Egito e depois foi chamado por Deus de volta à terra onde haveriam de morar. Por isso Mateus cita uma fala de Deus no livro de Oseias: "do Egito chamei o meu filho". Essa é uma fala a respeito de Israel, na saída deles do Egito depois das famosas Dez Pragas, mas Jesus viveu isso também para incorporar na sua vida fatos da história de Israel.

7. Tanto Lucas quanto Mateus se preocupam em demonstrar que Jesus era descendente de personagens importantes do Antigo Testamento. Em Lucas isso está registrado a partir do capítulo 3 versículo 23, e em Mateus logo nos primeiros versículos. Porque ao longo do Antigo Testamento Deus fez várias promessas a pessoas que seriam cumpridas pela descendência delas, como Adão, Abraão, Isaque, Jacó, Davi, a todos eles o Senhor fala que faria grandes coisas por meio da sua semente. Jesus é aquele que cumpre isso, o descendente abençoado desses homens, o menino que os judeus esperavam para restaurar todas as coisas.

A partir desses sete motivos, entendemos que fé cristã começou como uma continuação da religião do Antigo Testamento. Ainda que haja, obviamente, algumas coisas que tenham mudado, ele é muito importante para nós cristãos, e muitas pessoas têm uma fé deficiente ou aceitam falsas doutrinas por não perceberem o valor do Antigo Testamento. Em certo sentido, Abraão, Isaque, Jacó, Davi e João Batista eram cristãos, e nós cristãos somos os verdadeiros judeus, e não aqueles que se chamam judeus hoje. Eles não seguem o Antigo Testamento, porque se seguissem, acreditariam em Jesus, pois é para Jesus que o Antigo Testamento aponta. Agora, quais são as implicações práticas disso?

USOS

1. Devemos confiar que as promessas de Deus que ainda não foram cumpridas se cumprirão. Contra todas as evidências, o Senhor preservou Seu povo a fim de que Jesus viesse. Essa confiança é uma das bases da verdadeira religião desde o começo. Adão confiou que a semente da mulher esmagaria a cabeça da Serpente. Abraão confiou que a sua semente herdaria Canaã. Davi confiou que um filho dele reinaria em Israel para sempre. Portanto, se ainda faltam coisas para acontecer que a Bíblia anuncia, devemos continuar crendo. Se Jesus ainda não voltou, mesmo tendo se passado dois mil anos, devemos nos lembrar que desde Adão até Jesus passou muito mais tempo, mas ainda assim o Senhor, por meio de Jesus, cumpriu o que Ele havia dito a ele; o descendente de Eva esmagou a Serpente na cruz. A confiança nas promessas de Deus é uma das marcas principais do Seu povo. Por isso devemos confessar, como fez o anjo a Maria em Lucas 1.37: "para Deus não haverá impossíveis em todas as suas promessas".

2. Devemos nos esforçar para obedecer aos mandamentos de Deus. Algumas pessoas fazem essa separação entre o Antigo Testamento e o Novo porque acham que no Antigo Deus era mais rígido, no Novo Ele já é mais tolerante. Isso não é verdade. João Batista ensinou no capítulo 3 versículos 16-17 que Jesus viria para batizar com o Espírito e com fogo. Então ele explica o que significa batizar com fogo: aquele que não produzir um fruto de arrependimento, aquele que não abandonar os seus pecados e viver uma vida digna do Senhor, será arrancado desse mundo e jogado no fogo eterno, para sofrer para sempre. Deus não ficou menos rígido. Porque Cristo veio, segundo o cântico de Zacarias, para que nós andássemos "em santidade e justiça perante ele, todos os nossos dias". Jesus começou a fazer isso nos dando o exemplo, obedecendo aos mandamentos de Deus perfeitamente, mas também se oferecendo para ser sacrificado por nosso favor, a fim de que por meio da fé Nele nós pudéssemos ser purificados do nosso pecado e viver uma vida agradável a Deus.

3. Essa doutrina nos mostra que é impossível receber Jesus e o Seu Reino sem uma mudança moral, emocional e espiritual profunda. O Antigo Testamento desde cedo mostra que é impossível se relacionar com Deus sem obedecê-lo. E João, como precursor de Jesus, foi enviado a preparar o povo para a chegada de Cristo, convocando-o ao arrependimento. Ele batizava as pessoas justamente para representar esse arrependimento. Portanto, a mensagem de João e de Jesus permanece para nós hoje: "arrependei-vos, pois é chegado o Reino de Deus".

4. Essa doutrina nos incentiva a estudar mais o Antigo Testamento. Como vemos em Lucas 3, quando o povo ouvi João Batista, eles logo perguntaram para João "que havemos, pois, de fazer?". Um verdadeiro arrependimento produz na mente do pecador um ansioso desejo de saber qual é a vontade de Deus. A salvação está profundamente ligada ao conhecimento de Deus, como Zacarias diz no seu cântico, afirmando que João Batista nasceu para dar ao povo de Israel o conhecimento da salvação, mediante o perdão dos seus pecados. E o Antigo Testamento revela Deus por ser um dos instrumentos do Espírito Santo para nos ensinar todas as coisas que precisamos saber. Como diz II Timóteo 3, todo o Antigo Testamento foi soprado pelo Senhor para nos ensinar, repreender, corrigir e educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra.

5. As leis cerimoniais são úteis para nós hoje. Leis cerimoniais são aqueles mandamentos relacionados às cerimônias judaicas que eram apenas para o povo de Israel, como que tipos de alimentos um judeu podia ou não comer, ou as festas que eles era obrigados a participar. Esses nós não devemos cumprir. Mas as leis cerimoniais são úteis para nós, porque elas nos ensinam muitas coisas a respeito de Jesus, do ser humano, de Deus, etc.. Por exemplo, as cerimonias que envolvem sacrifícios de animais nos lembram que nós precisamos de um inocente que morra em nosso lugar para nos relacionarmos com Deus, porque o Deus santo não pode se relacionar com pecadores. Mas Jesus morreu em nosso lugar, de forma que nós, que cremos Nele, fomos completamente perdoados, e não há mais nenhuma condenação para nós. Assim, quando lemos a respeito daqueles mandamentos que eram específicos para os judeus, devemos buscar entender qual é a lição espiritual que eles têm para nós hoje.

6. O amor ao próximo é um dos mandamentos mais importantes do Antigo Testamento, e deve ser praticado por nós hoje. Levítico 19.18 diz: "Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o SENHOR." João Batista, em Lucas 3.11-14, aborda esse princípio de outra forma: quem tiver mais roupas do que o suficiente para si, dê para quem não tem. Quem tem comida, divida com o seu próximo. Quem cobra impostos, não peça mais do que é lícito. E quem tem poder político ou militar, não maltrate ninguém, nem dê denuncia falsa, mas seja honesto. Essa necessidade de amar de maneira prática ao próximo é algo que está presente nos mandamentos desde os inícios, e é fundamental para a verdadeira religião.

CONCLUSÃO

Assim como os justos do Antigo Testamento viviam na expectativa da vinda de Jesus, nós devemos viver também na expectativa da Sua volta. Devemos ansiar por ela, orar por ela e anunciar aos outros que ela está próxima, para que o nosso próximo também possa se preparar para quando o grande dia chegar. E essa vida de expectativa deve ser uma vida de obediência, submissa aos mandamentos do Senhor, andando em todos os Seus caminhos. Uma vida estudando a Palavra de Deus, para entendermos melhor como será a Sua vinda, o que precisa acontecer antes e como viveremos depois dela.

Chegará o tempo em que o Senhor se lembrará da sua misericórdia a favor de Abraão e de sua descendência, para sempre. Nisso não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos nós que cremos em Cristo somos um em Cristo Jesus. E, se somos de Cristo, também somos descendentes de Abraão e herdeiros segundo a promessa. Que possamos então estudar profundamente o Antigo Testamento, para que ele se torne um combustível que alimente a nossa esperança em Jesus.