No último dia da Terra…

As nuvens acumulavam-se de forma assustadoramente sombria e, embora nada indicasse o alarme nos meios de comunicação social, intuíste que algo não estava bem, e por isso me perguntas-te, vendo em mim um olhar semelhante ao teu, se algo de facto estava bem…

“- Não se passa nada, nada vai acontecer…”

Respondi de forma automática, e intimamente faltando à verdade que conhecia, embora exteriormente não te tenhas apercebido de tal, porque a minha máscara de normalidade era quase absoluta, e por isso não desconfiaste de nada, embora eu olhasse com invulgar persistência o horizonte de cores sombrias…

Era o meu olhar típico da tomada de grandes decisões, era um olhar meditativo, introspectivo, que antecedia sempre o meu colocar em prática de algo muito reflectido.

Algum tempo antes me confessaras a tua vontade de ser mãe, surpreendendo-me pelo tempo, pois com o tempo também quereria gerar uma criança contigo, mas esse tempo para mim estava ainda algures no futuro, ao passo que para ti esse tempo já deveria, urgia ser presente…Por isso pedi-te algum tempo para pensar, já tendo cedido ao teu desejo, mas precisando de tempo para interiorizar tal, mas por uma enorme ironia, ou se quiserem sadismo do tempo, na altura em que decidi a teu, a nosso favor, o tempo tinha-se antecipado a todos nós e tinha-se esgotado para todos nós…

Tudo iria acabar em poucos dias, de uma forma tão rápida que mal permitiria a agonia a quem tinha tomado conhecimento de tal, e que naturalmente estava proibido de informar quem quer que fosse, pois pretendia-se que o fim fosse ordeiro, evitando-se ocasionar o caos que tocaria naturalmente à maior parte da humanidade…

Iríamos partir com paz e tranquilidade, sabendo apenas nos derradeiros segundos o que nos iria acontecer, tempo demasiado curto para que fizéssemos o que fosse a não ser contemplarmos espantados esse fim…

E eu soube por um mero acaso, mas a tal agonia que era suposto não passarmos foi simplesmente infernal, pois sabendo que o tempo que me restava era o derradeiro, vivi previsivelmente cada segundo com um peso de séculos, tempo ainda de maior agonia por saber que era o fim da espécie, era o teu fim, era o fim de uma criança que nem sequer nasceria nos nossos mais profundos desejos ou mais belos sonhos, pois o tempo nem me permitia desejar nem muito menos me daria o luxo de sonhar…

Era esse olhar que suportava toda esta gravidade que interpretaste como a tal preocupação da perspectiva rápida e algo inesperada de ir ser pai

O mais doloroso de tudo isto foi ter que te ocultar tudo isto…

Nada de facto me impediria de tal, eu sabia que saberias guardar este temível segredo, mas também sabia que o teu sofrimento não teria tamanho, seria do tamanho do mal que nos iria tocar, e por isso preferia poupar-te a agonia excruciante que estava a passar, disfarçando alguma apreensão que não podia deixar de transpirar com as tais questões de parentalidade…

E tudo me pareceu tão absurdo, tão cheio de lugares comuns sobre “os dias do fim” que tanta literatura como cinema tinham abordado vezes sem conta, julgando ser um cenário muito distante do hipotético, ignorando que os argumentistas e escritores tinham acertado em cheio em parte do que se passava na mente dos conhecedores deste mistério…

Há quem diga que uma das marcas de certos humanos perante uma situação critica, limite, é o puro altruísmo…Ao passo que alguns se dedicam ao caos e à destruição mais selvagem, outros esquecem-se de si próprios e preocupam-se com quem gostam ou simplesmente com elementos da mesma espécie que os acompanham nessas alturas…

A mim calhou-me a primeira marca…Não que fosse um santo, que tivesse tido uma existência exemplar marcada por exemplos de partilha, de solidariedade para com o resto do mundo…Não, nesse aspecto nada me distinguia do resto da humanidade, e por isso não era pois um candidato previsível a este tipo de estado…

Mas o que é certo é que tal me tocou bem fundo, e por isso nos últimos dias só me preocupei contigo, não o demonstrando para não me denunciar, pois uma tal excessiva atenção e todos os sentimentos que me passavam em catadupa pela mente e ao mesmo tempo certamente me iriam desmascarar…

Por isso nada tenho a dizer de surpreendente destes dias do fim, foram dias iguais a tantos outros, com a suas rotinas, com os seus hábitos, dias normais porque de facto nada de anormal se passava, mas foram dias que logicamente eu vivi com uma intensidade louca, duplamente louca pela necessidade de controlar o que me ia na alma…

Será pois inútil referir que senti um amor infinito por ti, que sentia uma tristeza desmesurada por ti e pelo nosso filho (a) que nunca iria nascer…Tudo o que senti é por demais previsível, e por isso não desenvolvo tal, nesta carta que irei colocar num invólucro, esperando que este sobreviva e que alguém leia um dia este testemunho, porque sinto que morrerei, que morreremos menos, se alguém tomar conhecimento de nós, mesmo que esse alguém seja um desconhecido completo, mesmo que esse alguém nunca venha a existir…

O facto de deixar algo alivia-me um pouco, embora esse algo não sirva realmente para nada…

Porque te menti então quando te disse que nada se passava, pois nada iria acontecer?

De certa forma sinto que não te menti, pois nada de relevante, de transformador à escala universal vai acontecer, Apenas o Nosso Fim…

No último dia da Terra…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 01/09/2012
Reeditado em 01/09/2012
Código do texto: T3859953
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