Genética: o dia depois de amanhã…

Conheci Abalendu no primeiro ano da universidade.

Éramos os dois caloiros de medicina de uma das mais importantes Universidades do meu país.

Eu conseguira a entrada no curso pelo peso que a minha família tinha, ao passo que Abalendu tivera que lutar contra o facto de ter vindo de uma das castas inferiores do subcontinente Indiano.

Mas ao passo que eu nem me esforçara nem era particularmente dotado em termos académicos, o meu amigo era tudo isso, de tal ordem que o seu brilhantismo fez com que lhe atribuíssem uma bolsa de mérito escolar que lhe pagaria o curso e todas as despesas associadas a este num dos melhores locais onde a medicina era ensinada.

A contrapartida fora a de que ele só a deveria exercer ou na sua terra de origem ou ao serviço desta, o que ele aceitou de bom grado pois amava o seu país apesar deste tratar a sua casta de uma maneira tal que violava vários direitos humanos.

Meu companheiro do quarto da residência académica, após a nossa primeira conversa ficámos logo amigos, pois enquanto eu admirava a sua personalidade combativa e justa, ele (como me confessou mais tarde…) achou piada a um “miúdo rico” que aceitava tudo o que o nome da família lhe podia proporcionar, mas que ao mesmo tempo tentava ser mais autónomo, tentava fugir da sombra do legado dos seus antepassados. Também me confessou que sabia que eu nunca seria de facto independente, pois existiam demasiados interesses a que continuasse a pertencer à elite onde nasci. Sabia que iria tentar, mas sabia também que era uma questão de tempo até que me apercebesse que o caminho que iria trilhar estava delineado há demasiado tempo, bem antes de eu nascer, mal se começou a pensar na possibilidade da minha existência.

Talvez por isso ele me pediu que me esforçasse por vir a ser um bom médico, dado que tal não era incompatível com a tal vida que me estava destinada…

Eu segui o seu conselho e, apesar de me ter tornado num médico que não se distinguia entre os seus colegas, era apreciado entre os meus doentes pelo meu lado humano, pela preocupação genuína por esses doentes.

Terá sido este o meu único acto de rebeldia, pois a minha família e amigos achavam que uma pessoa da minha posição não deveria dar tanta confiança aos doentes, especialmente porque a maioria deles eram de uma classe diferente da minha. Mas ignorei essas vozes, pois em cada um deles eu via o meu amigo indiano, que sem nada conquistou tudo, gente que me diziam menor mas que eu achava igual a mim…

Quanto a Abalendu, depois de acabado o curso a excelência do seu trabalho fez com que ignorassem as suas origens, de tal ordem que tanto a nível profissional como a nível social chegou ao topo da pirâmide humana da Índia.

No entanto as suas origens acabaram de facto por serem determinantes na sua vida, dado ter herdado uma doença genética incurável que o irá matar dentro de poucos meses, aos quarenta e poucos anos.

Se tivesse nascido umas décadas antes eu teria o mesmo destino que ele, mas nascera numa época em que a medicina estava de tal ordem avançada que a minha geração foi a primeira a ter seres geneticamente limpos, depurados de factores genéticos hereditários que pudessem influenciar a minha existência, ainda éramos meras células…

Mas claro que a tal só tinha acesso quem tinha muito dinheiro e muitas influências, quem tinha “bom berço”…

Graças a tal viverei ainda mais algumas décadas, ao passo que o meu amigo no final do verão que começou já terá morrido…

Quem concebera esta “depuração genética” pretendia que ela fosse aplicada a toda a humanidade, sem qualquer tipo de distinção entre classes, de maneira a melhorar tanto a esperança média de vida, como a qualidade de vida de todos e não somente de alguns, mas tal como outras louváveis ideias, esta chocou com a realidade quando as elites económicas e sociais perceberam o potencial do conceito para os servir…

E assim a “depuração genética” acabou por ser o método definitivo de diferenciar as classes, sendo que a máscara acabou por cair às democracias e estas em termos práticos ficaram divididas em três castas:

- Os totalmente depurados, cuja esperança média de vida rondaria os 150 anos

- Os apenas mediamente depurados, sem dinheiro para uma depuração total, e cuja esperança média de vida rondaria os 90 anos (a classe média em declínio em termos numéricos)

- Os nada depurados, a maior parte da população cuja esperança média de vida rondaria os 70 anos.

Como médico e como cidadão esta divisão repugna-me, acho tal inumano, mas esta foi a maneira das elites garantirem o seu lugar cativo de líderes e de o passarem para os seus filhos e netos, que poderão ser de uma enorme mediocridade (como de facto o são na sua maioria…), mas como se conseguiu introduzir mudanças legais que vedam os lugares de topo a quem não é depurado (alegando que funções de responsabilidade precisam de pessoas totalmente funcionais) de facto os poderosos serão sempre poderosos e os mais fracos eternamente mais fracos…

Mas com tal a humanidade perdeu a essência da diversidade, a essência da imprevisibilidade que lhe conferia uma riqueza espantosa, e que a engrandecia…

Com esta forma de gerir a humanidade presumo que iremos perder vários possíveis Beethovens, alguns Da Vinci porque a sua origem humilde quer genética quer social impedirá que cheguem mais longe, que tenham uma oportunidade real de se mostrarem e com isto de engrandecerem a humanidade…

Esta forma de Darwinismo social fará que quem triunfe sejam os mais bem adaptados geneticamente, e pelos motivos que referi acima, só os poderosos de berço de facto vingarão, sendo os outros destinados meramente a servi-los…

Tudo está pois errado, e tal erro é bem patente em mim e em Abalendu:

Eu terei uma longa vida, mas não acrescentarei nada ao mundo, à humanidade, o meu amigo indiano que poderia ter dado tanto morrerá demasiado cedo, e com ele de facto morre parte da humanidade, que ao se querer melhorar acabou por se prejudicar e com isso a dar início ao seu declínio…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 28/04/2013
Código do texto: T4263736
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