Gerações: dois atos

I – 1321 A.C.

No princípio, amanheci deserto.

Um homem - metade sol, metade lua - escalando dunas, descobriu-me os seios. Oculto no remanso de um abraço infindo fecundou-me. Ao conceber os gêmeos renasci oásis, uádi, poço, palmas, tamareiras.

Desde então, os frutos que de mim brotam alimentam pássaros, camelos, cabras, cobras, lagartos, as caravanas dos tuaregues, a luz e as sombras do meu homem. E os meninos: o Negro e o Dourado.

II – Terceiro Milênio

A cama de espaldar alto e dossel de filó, não protegiam meu sono de menina das areias, do calor, da comida, da língua e musica árabe, ou dos murmúrios do Nilo, que, renegados pela cultura de minha gente, apesar de vivermos no Cairo, entravam sorrateiros e caudalosos pelas conversas proibidas nas sombras da cozinha.

As tias, avós, primas mocinhas, minha bela mãe, vestidas de sedas e rendas de Chantilly, preenchiam salas luminosas de risos e vozes musicais. Os homens desmanchavam-se na fumaça dos charutos, embriagados com a promessa dos lucros nos negócios. As crianças corriam por varandas, caramanchões, jardins. Vivíamos nas bordas do Sahara, e falávamos o francês.

Atravessamos o mar, e, agora, já avó, em meus sonhos, permaneço jovem e loira. Visto leves e transparentes véus, cavalgo camelos enluarados, quando, os cheiros, sons, e ritmos vivos, torneados e sacrílegos me possuem, em tempos e verbos de língua brasileira.