A CRÍTICA

A entrevista tinha sido marcada para às 11 da manhã e Fernanda, atrasada, meia hora. Tinha se confundido com os ponteiros do relógio. Maldito ponteiro dessa arte surrealista! Tudo trocado, corpos esvoaçantes, um grudado no outro marcando o número dez com onze, nove! Uma confusão.

Mas não podia alterar seu humor, as energias não podiam virar ao pólo negativo; olhou a pulseira magnética que de repente tinha escurecido; ela sempre escurecia quando lhe marcavam entrevistas de manhã!

Michel, seu agente literário, tinha que parar com isso. Entrevistas só à tarde ou à noite. Ela precisava resolver esse ponto, porém não podia demonstrar sua insatisfação. Não, isso não seria bom à sua imagem.

Então, forçou-se respirar fundo. O coração acelerado pelo café, mas respirou. A chuva e frio lá fora. O carro quentinho. O motorista particular contratado pela livraria era atencioso.

Chegaram. Foi bem recebida pelo casal, dono da livraria "Honório & Cavalcanti ". Sorrisos, chá de flores vermelhas, da forma que tinha solicitado ao Michel.

Ela se sentou à cadeira, a mesa repleta de livros de sua autoria. Os repórteres chegavam um a um, a maioria balançando a cabeça em aprovação. Mas um deles, um senhor de óculos redondos, calvo, esguio, cara fechada, destoava de todos. Cara estranho.

De início tudo transcorria bem. Perguntaram para que ela explicasse o título do livro, " O direito aos devaneios", as inspirações, etc. Até aí tudo bem. Mas, de subito, o senhor calvo, que apresentou-se como Rodolfo Lorenzeti, do Jornal local, quis saber algo inusitado:

-A senhora diz para sermos sonhadores e deixarmos nossas imaginações fluírem. Mas, pergunto: quem garante que dada imaginação seja realmente sua?

Fernanda apertou os olhos. O cara era mesmo arguto. Ela esboçou um sorriso satisfeito, enquanto buscava uma "imagem mental" de seu "dicionário astral". Achou. Um sorriso brilhante.

-Porque ela é minha. Basta sorrir, brilhantemente.

-Sei, um sorriso brilhante! Então, a senhora entende que basta viver assim para escrever coisas de sua cabeça às pessoas. Pois bem. Então, me responda ...

O dono da livraria, que intermediava as questões, interveio:

-Era só uma pergunta, senhor.

-Ok. Ok.

Rodolfo se sentou.

Fernanda respondeu às demais perguntas de uns dez repórteres.

De esguelha, Fernanda captou Rodolfo, cara fechada, parecia desenhar algo num caderno.

Quando acabou a entrevista, Fernanda tomava mais chá, enquanto conversava com os editores de algumas revistas. Rodolfo se aproximou do grupo e chamou Fernanda.

-Por favor, pegue.

-Ok.

Devolta ao carro, Fernanda abriu o papel.

Havia nele um recado.

" Senhora Fernanda. Gosto de seus livros. Mas por que não pensa em você? Pensa corretamente sobre se ter direitos de escrever coisas sobre o que vem à sua imaginação. Talvez pense assim. Porém...".

Inquieta, Fernanda parou a leitura. Como ele sabia do método que empregava na sua escrita? Mas, porém? Como ele poderia usar um advérbio carregado de altivez como aquele???

Depois de um arfar surreal, continuou:

"Isso é surrealismo. Isso é pura fantasia semente. Nada acrescenta à realidade. Às pessoas. Pare com isso. Procure refletir. Escreva sobre símbolos, não achando que os símbolos tenham valores em si mesmos! Reflita sobre eles".

Fernanda rasgou o papel. Um revoltado. Que petulância mesmo desse tal de Rodolfo. O que ele pensava que podia fazer? Crítica? Como ousava?

Ai, ai. Essas mentes medíocres. Sempre tem. Essas que criticam, não sabem o valor da imaginação.

E Fernanda estourou o champagne, ali mesmo no banco traseiro do carro. O que importava a opinião de um relés ser de mal com a vida imaginativa? Afinal tinha assinado um editorial anual na revista "modas & Co."

Abriu o vidro e jogou o papel para fora.

Era assim que lidava com as críticas.

Elas tinham um lugar apenas.

Porém...porém...porém...não, não havia "porém" no dicionário de Fernanda. Só oo garboso "e".

Olhou sua pulseira.

Ela estava clarinha, clarinha.

Alexandre Scarpa
Enviado por Alexandre Scarpa em 07/11/2018
Reeditado em 07/11/2018
Código do texto: T6497129
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