O ocaso do homem

Olhava pela janela sem muito entusiasmo, enquanto fumava um cigarro barato. As luzes da cidade reluziam lá embaixo, uma garoa fina caía sob o céu plúmbeo. Ansioso, decidiu deitar no chão mesmo. Olhava para o teto e soltava baforadas sem qualquer cadência. A fumaça serpenteava pelo cômodo lúgubre.

Sacando o celular, reprisava pela enésima vez as mesmas notícias: quarentena e isolamento. Para ele, aquilo era um suplício. Sentia-se numa prisão. Acostumado a andar a esmo pela urbe, desgarrado de tudo e de todos, a reclusão lhe proporcionava o pior dos mundos. Publicava coisas sem nexo nas redes sociais em busca de um pouco de atenção. Ninguém se importava, deixando-o mais inquieto ainda.

Vestindo a surrada jaqueta de couro, decidiu agir. Saindo do quarto, não deu satisfações à família, que estava em pânico. Silenciosamente abriu a porta de entrada e deu o fora, tomando a rua após descer as escadas.

Caminhou pelas avenidas desertas. Não havia alma viva, exceto por alguns veículos apressados. Imperava um silêncio nunca antes visto na civilização, provocado pela menor das criaturas. O homem, em toda a sua arrogância, sequer concebia o flagelo de Deus. Mas ele veio.

Não havia estabelecimento aberto. O toque de recolher já se impunha. Se os militares o vissem ali, provavelmente seria preso. Ou morto. Supunha-se que pessoas sozinhas na rua estavam infectadas ou eram marginais. Mas ele não se importava. Nunca se importou. Era um vadio e queria apenas dar uns tragos nas veredas escuras, displicentemente, para aplacar sua ansiedade.

Tomando um rumo mais obscuro e alheio às grandes luzes da avenida, adentrou um beco que serpenteava entre os prédios. Após alguns segundos de caminhada, observou o topo de uma escada que subia o talude, congelando: lá jazia um cadáver.

Temeroso, mas sempre inconsequente, decidiu investigar a situação. Subindo os degraus de modo atabalhoado, chegou à elevação final. Vislumbrou o corpo: um potencial sexagenário. Seu rosto estava arroxeado, como se tivesse sido sufocado. Os olhos dilatados denunciavam que ele havia morrido num estado de intenso pavor. Sua blusa estava imunda de sangue.

O vadio olhava aquilo boquiaberto. Os pensamentos não vinham certeiros: parte de si queria fugir dali imediatamente; mas a outra parcela estava confusa. Não parecia que o defunto havia padecido pela doença. Não havia, portanto, risco de contaminação e ele queria investigar o que ocorrera...

Neste ponto, sem qualquer aviso, uma pancada e o baque surdo de um corpo vindo ao chão. De longe, só se ouvia o barulho de metal e ossos quebrando. Em uma fração de segundo, ele estava morto. Ao redor dos dois corpos, um trio de brutamontes portando facas e canos enferrujados revirava seus pertences em busca de objetos valiosos.

Dando uma cusparada, os três voltaram às sombras, rindo após auferir o proveito do latrocínio. Nosso amigo inconsequente jazia ao lado do cigarro ainda aceso.