MILAGRE LOURO

Tio Lalau, irmão do meu pai, sempre gostou de tomar uma caninha antes do almoço.

Era homem trabalhador, mas nas sextas feiras, quando ele estava inspirado para beber, nem tirava o carro da garagem. Ia para fábrica de ônibus ou pegava carona com algum vizinho.

Tia Vera já sabia que iria ter problemas porque tio Lalau era desses bêbados chatos, inconvenientes, que logo que começam a beber ficam sentados nas mesinhas sem falar com ninguém, caladões.

Depois à medida que o álcool vai toldando a razão, começam puxando conversa com os outros frequentadores e mais adiante já é amigo, desde a infância, de todos que estão por perto.

Ele cumpria esse ritual e vez por outra soltava galanteios para qualquer mulher, acompanhada ou não, que estivesse ao alcance de sua visão já turva pela embriaguês e se alguém reclamasse do comportamento dele, ficava brabo e queria brigar com todo mundo, até ser enxotado como cão sarnento para fora dos locais.

Tia Vera foi chamada mais de uma vez para tirá-lo do xilindró, até o dia em que, passada a bebedeira, ela avisou:

- Olhe aqui Lalau, ontem foi a última vez que eu me larguei de casa para ir tirar você da delegacia. Nunca mais mande me chamar porque, por minha vontade, você ficará mofando lá até passar a bebedeira e o delegado resolver lhe por na rua. Está ouvindo? Nunca mais...

- Vera minha filha, nunca mais é muito tempo...

- Pois experimente para ver se eu vou.

Ele experimentou e ela cumpriu.

E não foi uma vez só não, foram várias e cada vez mais perto uma da outra.

Aí aconteceu o caso que meu pai chamava de Milagre Louro que fez com que tio Lalau nunca mais tomasse um gole de bebida alcoólica qualquer.

Era época do carnaval.

Focos de animação espalhados por todos os cantos junto com um sem número de barracas de comidas e bebidas.

Tio Lalau bebeu todas as noites da semana pré carnavalesca e quando foi da quinta para a sexta feira ele desapareceu.

Claro que sua ausência só foi notada no sábado de Zé Pereira, aí haja a procurar em hospitais, necrotérios, casas de conhecidos, rodoviária, aeroporto porque a delegacia disse que por lá ele não tinha passado.

Todo mundo o conhecia porque tio Lalau era frequentador assíduo por conta das bebedeiras que o deixavam detido sem que tia Vera fosse buscá-lo.

Quando foi no domingo pela manhã tio Lalau apareceu.

Estava num estado deplorável, o paletó rasgado, a calça cheia de carrapicho, sem a gravata, a camisa e o rosto sujos de barro e o sapato esquerdo estava com “a bocona de jacaré aberta” como se diz quando a sola se desprega do couro de cima.

Depois do banho e de comer tio Lalau contou para a plateia composta pelos familiares, amigos e vizinhos que ele não sabia mais que dia era, mas já estava bastante bicado quando saiu de junto da barraca em que estivera bebendo, porque vira uma loura de fechar o comércio dando bola para ele.

Ela seguia na frente, requebrando as cadeiras, de sapato alto, com o vestido vermelho brilhante e os cabelos louros, soltos que balançavam de um lado para outro quando ela andava.

Ele dizia: - psiu! Galega, vamos tomar uma ali comigo.

Ela olhava para trás e continuava andando, andando até que chegou a rua do cemitério, quando estava mais ou menos na metade dele, ela entrou andando por cima das covas e ele se danou atrás.

Ela atravessou o cemitério e saiu pelo buraco que tem no muro do fundo e continuou andando por dentro do mato rasteiro, o mato foi aumentando de tamanho e nem ela nem ele paravam, daqui a pouco já estavam pisando nas pedras da beira do rio e a galega andando, andando até que desapareceu no capão de mato que fica bem na beira d’água.

- E haja eu a procurar e a gritar pela galega sem achar nem o rastro. Quando dei por mim, voltei para casa. Eu acho que foi Comadre Florzinha que veio me atentar, por isso que eu voltei para casa nesse estado, todo cortado de tiririca e sujo como um porco. Nunca mais eu bebo.

Aí tia Vera disse:

- Lalau meu filho, nunca mais é muito tempo...

GLOSSÁRIO

Bicado = bêbado

Comadre Florzinha = entidade mitológica do imaginário nordestino que rouba crianças e desencaminha homens.