O Padrão...

Nasci e vivi a maior parte da minha vida no tempo que sucedeu à segunda mudança significativa da história moderna, o fim da guerra fria, que ocorreu quando o bloco soviético implodiu, dando origem a uma nova ordem mundial, que mudou novamente com o que aconteceu em 11 de Setembro de 2011.

As politicas económicas mudaram também, e o foco deixou de ser a preocupação com os cidadãos, mas apenas o aumento do lucro, seja a que preço fosse, nem que grandes empresas saíssem dos seus países de origem e se estabelecessem noutros com custos de trabalhos menores, bem como uma carga de impostos bem mais atractiva.

O conceito de “nação” deixou de fazer sentido, fazendo com que antigas áreas industriais fossem abandonadas, deixando uma vasta camada da população no desemprego e os seus países mais pobres, a caminhar de forma inexorável para o empobrecimento, a menos claro, que tivessem riquezas naturais que iram prolongar mais algum tempo a ilusão da prosperidade.

Tudo isto fez com que as revoltas entre as populações empobrecidas fossem aumentando, pessoas que tinham vivido gerações de bem-estar que se recusavam a abandonar.

Isto preocupou os estados, não pelo desespero dos revoltados, mas sim pelos prejuízos que estas acarretavam, e sendo a lógica predominante do meu mundo a maximização do lucro, começaram-se a estudar diversas formas de controlar essas revoltas no seu começo, e assim tornar menores os seus efeitos sobre a economia.

Claro que seria mais inteligente atacar a origem dessas revoltas, resolver o assunto de vez, mas tal implicava voltar ao tempo de uma distribuição mais equitativa da riqueza, tal implicava mudar todo o paradigma económico, tal implicava fazer com que os políticos governassem para quem os elegia e não para os grupos económicos que em troca das benesses lhes permitiam que fossem privilegiados, ou seja, era de todo impossível…

A área em si nada me dizia em termos profissionais, porque na faculdade decidi ser um desenhador de conteúdos Web, e morava muito longe dos locais das revoltas periódicas, mas como nos meus tempos livres me dedicava ao estudo dos movimentos sociais ao longo da historia, ao pensamento colectivo de multidões (o que faz um grupo que mal se conhece agir como um só elemento…) e ficava chocado com o aumento de violência e do grau de destruição das revoltas, dei comigo a pensar numa forma de as controlar, numa fórmula que conseguisse prever o comportamento das multidões.

Se conseguisse tal e esse modelo fosse aplicado, as revoltas durariam meras horas e não dias ou meses, e toda uma sociedade e economia ficariam a ganhar com tal…

A base do meu conceito era O Padrão.

Tudo na natureza se media, se regia por um Padrão…: as gotas de água caíam sempre de uma determinada forma e tinham também uma determinada forma, o fenómenos naturais não eram erráticos, o próprio universo acabava por ser algo previsível, porque tudo se regiam por determinadas leis naturais.

Claro que os humanos vieram baralhar esta ordem porque cada ser dispunha de uma sensibilidade particular que o fazia encarar estímulos e experiências de vida de uma maneira diferente de outro humano…Apesar de serem consciências individuais, era um mistério como agiam como um só em grupo, o que tornava as multidões algo imprevisíveis, especialmente quando a excitação tomava conta delas…Algo ainda mais espantoso era o facto de, mesmo deixando o raciocínio de lado, instintivamente continuavam a agir como um só…

Mas tinha que haver também lá um Padrão, porque se toda a natureza se regia por tal, o ser humano não seria diferente, sendo apenas uma questão de achar esse Padrão…

De maneira informal reuni uma série de colegas e amigos da universidade, de áreas tão distintas como a informática avançada, matemática, a sociologia, a antropologia, a medicina e a psicologia…

Neste grupo eu fui um mero gestor de recursos, dividindo o grupo em dois grupos dizendo a cada um deles o que pretendia…

Assim agreguei numa primeira fase os futuros psicólogos, sociólogos, antropólogos e médicos, pedindo-lhes para encontrarem algo de comum entre a amostra de 100 colegas nossos que escolhi de forma aleatória no campus, nem que fosse um mero elemento em comum, um algo escondido que com o estimulo de uma revolta viesse à superfície e tornasse 100 pessoas em apenas uma só…

Quanto aos matemáticos e informáticos, depois de achado esse elemento, esse Padrão, iriam dar-lhe um modelo matemático que depois de informatizado faria com que todos os cenários possíveis de uma consciência colectiva fossem assim previstos.

Se conseguisse tal o programa obtido seria vendido aos estados, havidos de tal e que nos dariam o dinheiro que pedíssemos sem pestanejarem nos custos…

Um pouco iludido por ter pensado ter tido uma ideia única, dei comigo cada vez mais desiludido à medida que os meses foram passando sem que os meus colegas achassem o tal Padrão…

Inquiro-os por fim sobre a falta de respostas, e eles responderam que era impossível extrair o que quer que fosse com o material disponível (imagens, filmes e amostras de DNA individuais de cada um…).

Em termos pessoais nada me impedia de continuar indefinidamente os meus estudos, mas o que motivava o grupo que reunira era a perspectiva dos chorudos lucros que obteríamos ao alugarmos o programa aos imensos interessados que certamente não faltariam e por isso sabia que o arrastar do tempo só faria debandar o grupo que reunira…

Como a insatisfação da falta de soluções começou a dominar toda a gente, decidi liquidar o programa no dia que se seguiu a ter recebido a rendição dos meus colegas.

Na noite que antecedeu o seu fecho, dei comigo pensativo no meio de uma festa de estudantes, completamente absorto à sua animação. Mas as minhas reflexões foram interrompidas por uma aparentemente inocente altercação entre dois jovens, que em segundos envolveu toda a clientela do bar onde ela teve lugar.

E foi então que me lembrei do que faltava ao nosso trabalho…: levar este para o terreno, tirá-lo do laboratório, deixando a teoria de lado e tornando-o prático…

Algo de tão óbvio que me senti estúpido por não me ter apercebido de tal…

Criámos assim uma festa onde os 100 elementos foram convidados, num determinado espaço onde semeámos câmaras e microfones de maneira a captar o máximo de elementos possíveis para posterior análise.

Depois desta multidão reunida, deixámos que esta socializasse e se conhecesse minimamente e depois criamos o elemento activador da violência…

Ao fim de algumas horas começámos a fazer surgir nos seus telemóveis a falsa noticia que as propinas iriam aumentar radicalmente no ano seguinte.

O bem-estar geral deu então lugar a um sentimento de enorme desconforto.

Depois ligámos à polícia anonimamente, protestando contra o som da festa que entretanto tratáramos de colocar a um nível nada aceitável…

Irritados com a notícia das propinas (o que simulava a irritação das populações perante a miséria crescente) os ânimos extravasaram de vez quando viram a polícia (elemento repressor…)

Quando esta lhes disse para dispersarem e acabarem com a festa, eles acederam de forma gentil, sendo o seu único comportamento “rebelde” alguns impropérios deitados ao ar em tons de desabafo, mas em cem alunos 3 decidiram não obedecer, enfrentando as forças de ordem. Como era por demais típico, esta não foi nada complacente e avançou com excesso de força sobre os três elementos. Vendo os seus colegas a serem espancados, a maioria dos desistentes avançou em grupo e de forma surpreendente organizada.

A polícia ganhou, como ganha sempre, mas só depois de ter chamado reforços e de parte do recinto ter sido bastante danificada…

Tínhamos pois encontrado o Padrão, era apenas uma forma de o acharmos…

Após semanas de análise exaustiva aos sons e às imagens, onde mesmo pormenores aparentemente menores foram escalpelizados, o primeiro grupo passou as suas conclusões ao segundo, que depois lhes deu o tal modelo matemático comportamental que depois de informatizado resultou no que tanto procurávamos…: o Padrão…

Como mentor e gestor do projecto, antes de o colocar no mercado e de assim nos tornar a todos bilionários, decidi experimenta-lo num ambiente ainda mais real:

No terceiro mundo existia uma nação menor que se assemelhava em diversos aspectos ao nosso mercado principal. Era conhecida pelas suas revoltas cíclicas, e também pela carência de meios perante tal, só dominando as multidões com ajuda externa…

Demasiado pobres para serem nossos clientes, aceitaram de bom grado que testasse o Padrão numa das suas revoltas.

Ao único corpo policial realmente profissional cedi parte do programa.

Sabendo onde as revoltas eclodiam, instalaram câmaras que captaram todo e qualquer movimento e sons de todos os intervenientes, que, devidamente analisado pelo programa soube prever os comportamentos que se seguiram, a forma como agiriam, fazendo com que uma pequena e cirúrgica intervenção preventiva das forças de ordem acabasse rapidamente com um potencial desastre…

Tinha conseguido, e estava duplamente satisfeito, tanto porque me tornaria imensamente rico, mas sobretudo porque tinha alcançado um dos meus maiores objectivos pessoais, e resolvido um enigma que tanto me intrigava, e também por ter resolvido de vez um dos maiores problemas a atormentar as nossas sociedades…

Mas quando ia a patentear o programa e a tornar este público fui assaltado por uma série de dúvidas…:

Tinha em mãos o elemento que faltava para o total controlo humano, porque a humanidade já o era a nível individual, embora ainda não o fosse a nível grupal…

Com tal a espontaneidade que nos restava, a imprevisibilidade derradeira deixaria de ser um factor humano, levado uma etiqueta e sendo resolvida de maneira científica, fria e clínica tal como a humanidade resolve tudo que a julga perturbar…

Deixaríamos pois de ser humanos, passando a sermos autómatos, dado podermos controlar tudo na nossa espécie…

Porque afinal a imprevisibilidade significava também liberdade de escolha, e os sistemas iriam acolher de bom grado o nosso programa, porque acabariam de vez com o ultimo reduto da tal liberdade, podendo moldar e controlar livremente a humanidade da forma que bem entendessem…

Senti então que tinha afinal entre mãos a chave de uma prisão, a derradeira prisão, e achei esse peso demasiado insuportável…

Haveria de chegar um dia em que as revoltas iriam acabar da forma que tanto nos perturbavam, porque os seus elementos teriam alcançado o que desejavam, veriam a sua luta triunfar ao fim de tanto sofrimento…

Mas se o meu programa do Padrão entrasse no sistema esse dia nunca chegaria, e os novos donos da humanidade provavelmente iriam dominar esta para sempre…

Dei comigo a preferir uma humanidade livre a médio-longo prazo do que prisioneira para sempre…

Porque aos caos sucede sempre a ordem, e se calhar estávamos a precisar que os desesperados ganhassem essa luta para as coisas de facto mudarem…

Disse aos meus colegas que o programa falhara rotundamente e destrui este, voltando todos às nossas vidas, mas ao fazê-lo, ao destruir a chave do Padrão senti-me o homem mais livre do planeta…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 22/09/2012
Código do texto: T3895448
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