Um Rio…apenas um rio…

Baseado muito vagamente em factos reais…

Desde que me recordo que os rios possuem um estranho fascínio sobre mim…

O mar também, mas quando olhava o horizonte longínquo e as terras que lá estariam, não olhava tal como uma impossibilidade, nem com a ideia de navegar numa embarcação meses a fim, e por fim chegar a esse destino. Tinha nascido na idade da tecnologia, e sabia muito bem que se apanhasse um dos muitos aviões que cruzam o oceano rapidamente chegaria a esse horizonte destino noutros tempos inacessível…E posso assim dizer que foi a tecnologia que matou à nascença uma possível confabulação romântica minha com o mar…

Claro que gostava de estar ao lado do mar, sou de uma terra de mar, e penso que essa empatia quase que está inserida no ADN das pessoas do meu país…E no entanto eu deveria ser de facto de uma nova geração, talhada e criada no projecto europeu, sendo que talvez por isso o mar servia apenas para as férias ou como mero postal ilustrativo da minha terra quando estava separado dela.

Já com os rios a coisa era bem diferente…muito diferente…

Nem todas as nações do planeta possuem costa marítima, até podem muito bem viver sem o mar, mas a subsistência é impossível sem um rio…

A sustentabilidade de uma terra depende de várias coisas, e o rio, as suas águas sem dúvida são um elemento fundamental dela, e talvez por isso, por este pensamento racional e pragmático, como sempre fui mais assim do que lírico, sempre me liguei mais a rios do que a mares…

Quando em muito pequeno, numa praia fluvial, dei comigo a olhar a outra margem e a não perder muito tempo a lá chegar, pela via de uma ponte quase artesanal feita de tábuas, eu soube que todos os rios do fundo poderiam, mais ou menos facilmente, serem atravessados e de forma rápida…

Claro que a minha aventura de infância custou um enorme susto a quem tomava conta de mim e um castigo à altura por ter desaparecido de repente, e aparecer do outro lado a sorrir perante o olhar de quem me procurava na margem oposta, mas o preço foi também o fascínio por atravessar rios, da conquista, que passou de física a meramente simbólica…

E com o passar do tempo atravessei imensos rios de todas as formas possíveis e imaginárias, sempre para obter aquela sensação de vitória sobre os elementos, ou apenas e tão somente de saber que era sempre possível passar para a outra margem, com mais ou menos dificuldade, mas simplesmente se quiséssemos tal…

Não sei se foi por mera coincidência, mas algumas decisões importantes, ou simplesmente alguns momentos da minha vida, tiveram um rio como cenário…

Foram diversos, muitos, mas com o passar dos anos retive apenas um, pois além de vir do fundo do tempo como se o tempo não tivesse passado por ele, esse momento constituiu um dos maiores marcos numa parte da minha vida…

Foi há já várias décadas, num final de um Julho demasiado quente para o que estávamos habituados.

Por mero acaso três amigos de infância encontraram-se numa altura importante, por motivos diferentes, aos três.

Um deles tinha sido pai há pouco tempo…

O outro arranjara emprego num outro país…

E o terceiro acabara os seus estudos, preparando-se para abraçar uma outra vida…

Decidimos comemorar juntos esses nossos acontecimentos individuais, pela simples razão que esse grupo informal foi o primeiro que tivéramos a nível social fora da família, e que conseguíramos manter, não de forma assídua, mas o suficiente para sabermos como estávamos…

No entanto aqueles três acontecimentos iam mudar tudo, pois o mesmo tipo de contacto seria impossível por irmos seguir vias diferentes das nossas vidas…

Talvez por isso decidimos fazer uma noitada como só os jovens desocupados o podem fazer, deixámos os nossos compromissos, as nossas vidas, pendentes por uma noite de despedida…

Nada de especial, uma mera noite anónima de um jantar e respectiva ida para uma discoteca, perdida entre tanta gente que fazia o mesmo na mesma altura, se bem que por motivos diferentes…

Quando os primeiros raios de sol nos lembraram da realidade que suspendêramos, um de nós teve a ideia de levarmos algumas cervejas para a praia fluvial comum da nossa infância, e onde tivéramos tantas aventuras típicas de alguém da nossa idade…

E se assim o pensámos, assim o fizemos, apanhando um táxi e pelo caminho comprando cervejas numa qualquer loja de conveniência que ainda se encontrava aberta àquelas horas…

Mas em vez de continuarmos a festejar de maneira efusiva, tão típica do nosso grupo desde sempre, e que ressuscitava sempre que estávamos juntos, demos connosco a reflectir em silêncio, olhando aquele cenário, bebendo e fumando os derradeiros cigarros comuns antes de regressarmos…

Sentíamos instintivamente, mais do que sabíamos racionalmente, os três, ao mesmo tempo e de forma individual, que nunca mais voltaríamos a estarmos juntos…Pessoalmente não acredito no destino, acho que cada um de nós o constrói, e que não há intervenção divina em tal, mas naquele momento essa sensação de destino tocou-nos aos três, e talvez por isso olhámos o cenário de tantas aventuras comuns que talharam parte do nosso carácter de adultos…

Não sei exactamente quanto tempo passou com o grupo mergulhado nesse silêncio melancólico, algo perturbador, pelo que me recordo tal foi interrompido pelo toque de um telemóvel de um de nós, um toque que anunciava que o mundo que nos esperava chamava por nós…

O contacto assíduo da infância e adolescência fora perdido pouco depois de termos entrado na maioridade, mas conseguimos mantermo-nos a par da vida uns dos outros, primeiro com telefonemas, depois com mails, pois os laços criados desde cedo, apesar da distância, faziam-nos querer estarmos minimamente a par do que se passava com os nossos amigos.

No entanto os laços da infância e da juventude, por muito fortes que sejam, por vezes são diluídos pelo tempo e pela distância se não forem alimentados, e desta forma reforçados, a idade e o pragmatismo desta nos ensina tal, e tal foi o que veio a acontecer…

Poucos meses depois daquela noite, o universitário telefonou-me animado a contar que tinha arranjado um emprego na ONU, e que seria um funcionário desta, percorrendo o mundo onde esta achasse necessário, ficando prometida a comemoração de ter conseguido esse emprego quando viesse cá, mas as nossas férias passaram a terem tempos diferentes, e assim quando algum de nós estava disponível, raramente os outros dois o estavam, e assim de facto o contacto ficou reduzido a mails ou a redes sociais virtuais, mais pelo comodismo do que propriamente por razões económicas, e assim esses amigos chegados passaram a serem meros contactos entre tanto outros, as suas mensagens passaram a serem recebidas como tantas outras…

Como o outro amigo, o tal que arranjara emprego fora, cada vez se encontrava mais envolvido no seu trabalho distante, e também nos novos amigos e amigas que entretanto fizera, o contacto com aquele grupo passou a ser de facto cada vez mais distante…

Em termos pessoais também estava cada vez mais envolvido no crescimento do meu filho e na relação com a mãe dele, e também com o meu trabalho, tornado menos seguro pelos tempos delicados que se viviam, e por isso aqueles amigos passaram a serem apenas ecos belos no meu passado cada vez mais distante…

Alguns anos depois li num jornal que uma sede da ONU num país em guerra civil tinha sido atacada e parcialmente destruída, tendo morrido alguns funcionários desta organização, mas como infelizmente tal era algo trivial não dei ao facto mais importância que dou a outras notícias, só passando a dar quando li que morreram alguns portugueses, e entre os nomes deles reconheci um, o do meu amigo.

Mas a sua morte foi apenas lamentada por um cigarro pesaroso e um momento de melancolia por um amigo que tinha partido, algo de comum quando passamos a acumular anos, nada demais infelizmente, pois passamos a dar mais importância aos que estão perto, ou pelo menos com os quais mantemos algum tipo de contacto ao ponto de dizer que fazem parte efectiva das nossas vidas…

E as vidas continuaram o seu rumo, eu voltei a ser pai mais uma vez, e a minha socialização quase se resumia aquela do meu núcleo familiar.

E se não fosse pela lamentável espectacularidade que caracterizou a sua morte, não tinha dado pela partida do outro elemento do grupo…

Mais uma vez soube de tal pelos jornais, mas de imediato, quando apareceu o nome dele, em jornais que gostam deste tipo de exposição de dramas alheios para venderem mais uns tantos exemplares, como o de um funcionário de uma bolsa, que após mais uma crise especulativa, e vendo que os seus palpites tinham redundado na perda de alguns milhões que alguns particulares lhe tinham confiado, desesperado atirara-se do cimo do prédio onde trabalhara.

Como entretanto deixara de fumar e era pouco dado a melancolias, a sua morte foi sentida apenas com um suspiro de tristeza.

E o tempo de facto foi passando, em principio esses amigos nada mais seriam do que memórias distantes e cada vez mais ténues, não fosse ter-se dado uma estranha e bela coincidência…:

O meu filho mais velho, após morar algum tempo com a namorada, decidira oficializar a relação com esta, e como os meus pais ainda davam alguma importância a tal, o casamento seria também religioso para gradar aos avós, pelo que se resgatou também a velha tradição de “despedidas de solteiro” que nada diferiam de outras noitadas feitas por jovens solteiros.

O que me espantou foi o facto de me ter convidado para essa noitada.

Sempre mantivera uma relação bem próxima com os meus filhos, mas o papel mínimo institucional de pai quase que obrigava a que não acompanhasse estes nas suas noitadas…Uma coisa era não dar grande relevo ao facto de virem para casa num estado típico de quem por vezes exagera na bebida, e até os ouvir na melancolia típica de certas bebedeiras (e ao mesmo tempo ser severo se tivessem feito algo de errado nessas noitadas, e fazer com que acima de tudo estivessem as suas obrigações, que os momentos de lazer nunca deveriam atrapalhar, e como os meus filhos tinham crescido bem e se tornado em adultos responsáveis, eu e a minha mulher poderíamos ser integrados na categoria de “Pais tolerantes” se bem que jamais permissivos, dado, nas raras vezes em que os nossos filhos tinham ultrapassado os limites por nós estabelecidos, os termos advertido e mesmo castigado de forma bem severa), mas nunca esperei que me convidasse para essa despedida de solteiro.

Mas claro que não pude deixar de ir, pelo gesto de amizade que tal representava, se bem que me mantive durante essa noite algo distante, fiel ao meu papel de progenitor que acompanha o seu filho numa noite como aquela.

Curiosamente tal noite foi também num Julho, e também curiosamente a hora em que decidimos acabar aquela noitada foi a mesma de uma noite perdida no tempo há perto de trinta anos, mas para meu espanto as coincidências não se ficaram por aqui.

Partilhando o mesmo táxi que nos levaria a casa diferentes, fiquei espantado quando o táxi parou no mesmo local da última noite que passara com os meus amigos.

Percebi algo do que se passava quando olhei para o meu filho e este exibiu um sorriso cúmplice.

Saímos do carro, sentamo-nos na areia da praia e olhámos a outra margem da mesma forma como tinha olhado tanto tempo antes.

Mas desta vez o silêncio não imperou.

“A mãe contou-me que passaste aqui, pouco depois de eu nascer, a última noite com os teus melhores amigos, e por isso achei que este era o melhor local para esta despedida, mas uma forma também de te dizer que não nos vamos despedir, e mostrar-te que um local pode ter diferentes significados…”

Disse o meu filho com ternura, e apercebi-me então que de facto eu e a minha mulher tínhamos gerado e criado um ser de carácter invulgarmente único, e, apesar de ter diversos motivos para tal ao longo da sua vida, aquele foi o momento em que senti mais orgulho pelo meu filho mais velho…

Por isso centrei-me nesse orgulho, centrei-me nesse momento, e senti-me novamente com vinte e poucos anos, esquecendo a parte de dor e melancolia incomodas que o passar dos anos nos tende a cobrar, esquecendo que as mortes dos meus amigos espelhavam bem os tempos que se viviam ou viveram (ataques demasiado comuns à ONU, crises bolsistas endémicas que arrastam milhões para o desespero…) procurando lembrar-me que de facto o futuro não existe antes de acontecer, porque tinha ao meu lado parte do futuro que era particularmente risonho, e à minha frente um rio que quase só representava o passado, e como quem vive no passado acaba por não viver, o futuro estava de facto ao meu lado, e à minha frente Um Rio…apenas um rio…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 06/10/2012
Código do texto: T3918949
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