MANUSCRITO-CARTA

Manuscrito-carta encontrado por um leitor do século XXI dentro de um romance do século XIX

(Republicação na madrugada de 08 de outubro de 2012)

“Perdoa-me, que eu julguei ver sombra onde desde sempre só havia luz. Perdoa-me que, em ti, e não só em ti, só há paz e luz. As sombras são todas do passado; andei fazendo algumas indevidas projeções delas sobre o presente, onde sombras não há. Perdoa-me... perdoa-me, se me puderes perdoar. Em verdade, minha vida tem sido pedir perdão e, o que é pior, sempre por metáforas, sempre. Não sei mais como recuperar o verdadeiro silêncio e a verdadeira palavra, que meu ser é, inteiro, por dentro e por fora, ser tatuado por enigmas de antiquíssima esfinge insaciável. Perdoa-me. Talvez seja o meu caminho, um caminho sem retorno. Queria que não o fosse, preciso que não o seja. Preciso dos seres que me estimam e amam e que, por isso, me possam e consigam perdoar os desvarios, talvez e, com quase toda a certeza, fantasmagorias sem sentido. Perdoa-me, também pelas coisas que nunca terei o direito de explicar, para proteger nomes de terceiros. Perdoa-me por tudo, talvez por nada. Perdoa-me. Se não me perdoares, terei que partir e não tenho para onde. Ainda se julgares que meu pedido de perdão não tem qualquer razão de ser, perdoa-me. O provável absurdo absoluto do que escrevo neste instante é mais uma tatuagem. Amanhã desenlouqueço, mas hoje, perdoa-me. Se algo detonou horrores do passado, não há qualquer dolo no agente desta detonação, dolo nenhum."

O leitor do século XXI retira o manuscrito-carta do romance do século XIX,dobra-o,coloca-o no bolso, fecha o volume, devolve o livro ao bibliotecário, sai da biblioteca e vai seguindo pela avenida, atônito, como se tivesse compreendido toda a ligação da carta-manuscrito com o enredo do romance do século XIX que acabara de ler.