Força da música

Caminhar naquela rua escura até o estacionamento parecia uma eternidade, embora ficasse próximo ao bar. A cabeça carregada de imagens - do rosto, o olhar forte, o sorriso, a voz pedindo não vá, fique comigo. E mesmo querendo ficar tomou a decisão de sair dali antes da apresentação acabar. A vida dos últimos meses passando pela sua cabeça, do início de tudo.

Conheceram-se no JazzB há um ano. Júlia gosta de jazz instrumental, e fora atraída àquele bar pelo jeito peculiar do grupo CFVMCiaJazz tocar uma suave bossa nova. Cristiano no piano, Fabrício, Vitor e Mário com outros instrumentos dominavam com habilidade e sensibilidade o jazz. Num dia de outono, na região central de São Paulo.

Foi nesse clima que Júlia iniciou um romance com Cristiano. Um homem de pele morena, cabelos negros, um rosto luminoso, sorriso alegre, olhar carinhoso e mãos extremamente macias. Um homem amável sem afetação nem exagero. Júlia teve a sensação de conhecer alguém em que se pode confiar. Vitor baixista do grupo e conhecido de Júlia apresentou Cristiano. E foi amor à primeira vista. A impressão de que já se conheciam foi imediata para ambos.

Naquela noite Cristiano pediu que Júlia lhe esperasse até a apresentação do grupo acabar. A partir dali começaram a se ver quase todas as noites durante o ano de 2013. Descobriram hábitos e gostos afins, tudo que faziam juntos era prazeroso, um casal de bem com a vida. Até Luz a yorkshire de Júlia gostou a primeira vista de Cristiano. Isso para ela era um bom sinal.

Em poucos meses o grupo se destacou na noite paulistana e começou a receber convites para se apresentar em outras cidades e estados. Cristiano sentindo receio de ficar tempo demais longe de Júlia. Gostando cada vez mais um do outro decidiram morar juntos. E a relação que já era boa ficou ainda melhor. Então, Cris passou a pedir que ela o acompanhasse nas apresentações fora do estado. Foi ai que o medo de não dar conta de tudo bateu em Júlia, que tinha seu trabalho, sua vida pessoal e não podia viajar cada vez que o grupo fosse se apresentar fora.

Naquele dia de garoa fina, no centro de São Paulo, ela decidiu sair do bar antes do grupo terminar o show, precisava pensar longe de Cris. Ao atravessar a rua calmamente, Júlia olhou a Praça da República iluminada e não imaginou que corresse risco saindo do bar sozinha.

Avistou os dois rapazes sentados num banco e não percebeu que fossem ataca-la. Foi tudo tão rápido, eles a pegaram pelas costas, apertaram seu pescoço e disseram: - não grite, não faça nada para chamar a atenção. Você está de carro?

- Ela respondeu sim, no estacionamento ao lado. Então vamos pegar o carro e dar uma volta pelo centro, branquinha. Você tem dinheiro, cartão de crédito? Queremos grana para comprar pó, e não se meta à espertinha senão furamos você todinha tá entendendo né branquinha?

Júlia tremeu inteira ao sentir a lamina da pequena faca entrar pelo seu casaco de lã. E agora o que vai ser de mim ela pensava. E disse aos rapazes - eu entrego o carro e tudo o mais de valor. Só peço, por favor, me deixem bem. Eu não vou gritar. Só peço que me deixem bem.

Ao chegar ao estacionamento eles disseram: faça cara de alegre moça, converse normalmente - somos amigos saindo de um bar. Não brinque com a gente branquinha senão a faca vai penetrar bem lentamente em sua pele como se estivéssemos fazendo sexo, fique certa disso.

Júlia sentiu uma moleza incontrolável nas pernas, junto à sensação de desmaio. Sem vacilar incorporou a moça forte e sorriu para o senhor do estacionamento. Perguntou o valor, pagou e entraram no carro.

Enquanto pensava - é o meu fim - por que fui tão ingênua em sair sozinha do bar. - os rapazes decidiam o que fazer. O mais encorpado, de pele enrugada, cabelos crespos, um cheiro forte que causava mal estar, com olhos vidrados do tipo envidraçado por um brilho incomum diz: é dessa massa que nós somos feitos branquinha – do “mal branco” que causa até cegueira quando ficamos muito tempo sem. Quem manda você aparecer em nossa frente nessa hora, e afirmando sua personalidade de comando também ao companheiro, solta - eu pego ela primeiro que você mano - esse cheiro feminino, essa pele branquinha tá me deixando louco.

Nessa hora Júlia sente o corpo gelar, os olhos marejados, o gosto salgado das lágrimas chegando até sua boca. Sem conseguir pronunciar nenhuma palavra de tanto medo ela pensa: - é mesmo o meu fim.

Foi neste instante de tensão maior que o senhor do estacionamento surge, chamando a atenção dos rapazes com a frase: - você esqueceu o troco de 2 reais moça. E velozmente surgem dois policiais do fundo do estacionamento. Cristiano aparece em frente ao carro.

De um instante para outro os rapazes recebem ordem de prisão dos policiais. Foi tudo tão rápido e tão desesperador. Somente quando Júlia saiu do carro viram o sangue escorrendo em sua perna. Mesmo sem sentir dor nenhuma se deu conta, eles haviam lhe ferido no quadril.

Cristiano calmo lhe diz: não se mexe amor. Rapidamente um dos policiais chega com um pano branco e coloca no ferimento. Cris sai dali direto para um hospital.

Após o atendimento, de Júlia ter sido medicada, ambos choram abraçados de gratidão - pela situação não ter sido mais grave. Depois do susto a vida dos dois segue. O acontecimento com Júlia lhes deu a plena certeza de que “o amor deles era em justa medida, e isso não era um prêmio, apenas a manifestação de como as coisas são”. Ambos compreenderam o quanto a vida tinha sido surpreendentemente maravilhosa. Do primeiro momento quando foram atraídos pela força da música até aquela situação violenta, que transformou para sempre a convivência do casal.

Cássia Nascimento
Enviado por Cássia Nascimento em 03/06/2014
Reeditado em 05/06/2014
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