Caminho descalço pela casa

Caminho descalço pela casa e, sinceramente, não sei porque estou aqui, pisando nesse chão, vivendo nesse bairro ou nessa cidade. Mas estou respirando e isso é o que importa, mesmo que eu não participe do mundo e, quando participo, por demais peso. O peso de uma existência, marcas de minha ingratidão com o mundo, este que me rodeia e obriga-me, de certa forma, a nele permanecer. Sons ecoam pela vizinhança, amedrontada com o bater do tic-tac do relógio. Olho para minha pia cheia de louça advinda da comida feita às pressas ontem, como quem cumpre um ritual e esqueceu-se até mesmo o motivo pelo qual ainda cultiva esse velho hábito. Ontem, comi aquela comida como quem decorou o caminho entre o prato e a boca e entope-a de um conteúdo de pouca importância, preenchendo o vazio, não sei se de estômago, parece-me mais ser algo de existência, de perspectiva, de alma. Meus vizinhos já devem estar quase prontos para sair para seus trabalhos, escolas, feiras, obedecendo a rota do dia. Eu vou vagando pela casa suja como se pudesse integrar-me àquela sujeira e voltar a ser uma matéria inanimada.