Tinha muitos escritos guardados, mas não lhe pareciam coisa de publicar em livro. Eram sonhos, apenas sonhos nos quais se via de vestido longo, maquiada. Bonita, linda, maravilhosa, a valsar com o namorado na festa  de seus quinze anos. Em seguida, via-se sozinha numa ilha. Encontrava um náufrago e caminhava com ele  na orla, deixando pegadas na areia.  Adiante,  a montanha se lhe mostrava  como cenário muitas vezes  visto. E como em alocução interior, ouviu a voz de um anjo: ‘Não ultrapasse a parede dos  muros abissais.’
— Robert! É você?
— Ravenala!...
—Como  você chegou aqui, Robert?
— Sonhei que estava no quarto secreto, e o homem pregado na cruz apontou  uma porta estreita. Entrei. Acho que estamos perdidos numa ilha.
— Perdidos? Isso aqui, isso aqui é meu mundo!
— Queres dizer um paraíso, não?
— Sim, o paraíso perdido.
— Não mais perdido. Nós o encontramos.
— Olha aquele paredão azulado! Céu bonito, sol crepuscular!
— Não há parede. 
— Parece neve luminosa.
— Nebulosa difusa? Estamos no princípio, na criação do universo.
— Não sinto o calor da explosão. Sinto frio.
— Somos náufragos. A algidez vem das vestes molhadas. Precisamos aquecê-las. 
Catou gravetos, folhas e algas secas. Fez faísca com o atrito de duas pedras. Mas a faísca não foi suficiente para fazer subir labaredas.
— Use a lente da máquina fotográfica!
— Que máquina?
— O celular.
— Perdemos no naufrágio.
— Não! Está em teu bolso.  
Estavam dois metros abaixo de uma abertura de pedras que dava para uma gruta. O acesso parecia inacessível, um paredão liso e escorregadio tão extenso que sumia de vistas. 
— Estamos no purgatório.
— Talvez não. Quem sabe, no primeiro céu!
A base úmida, lavada pela maré alta dificultava a combustão dos gravetos e das algas secas que recolheram.
— Tente outra vez. Faça uma cama com espaçamento para o oxigênio circular.
— Sim, sim...assim será melhor.
Levantou-se uma pequena nuvem de fumaça.
— Olhe o trem...
Que trem?
— Repare bem na linha  da orla.  Não estamos só. Há um homem de terno azul com uma pasta de executivo na mão.
— Não o vejo.
— Tomou o trem.
— Cadê o  trem! 
— Já foi.
— E os trilhos?
— Não há trilho, nem estação.
— Então, estamos sonhando.
— Talvez não! Talvez tenhamos ultrapassado as barreiras dos muros abissais.
— Como?
— Viagem astral.
— Não lido com essas coisas.
— Mas, estamos em viagem pelo invisível.
— É uma ilha linda!
— Deve ser triste não ter o que fazer numa ilha deserta.
— O náufrago luta para salvar a vida, e quando alcança terra firme, a solidão de uma ilha enche-lhe de tristeza o coração.
Grita, e seu grito não ultrapassa os vitrais azulados do céu. Sobreviver. Lutar pela vida. Afora isto, nada mais  tem a fazer numa ilha, senão olhar o horizonte. Ter miragens, ver nas espumas flutuantes a borda falsa ou o castelo de um navio; o monstro do lago Ness ou um xaveco pirata. O náufrago morre de  sede olhando a imensidão de água salgada.
— Há sempre água potável em uma ilha. 
O sonho foi interrompido por velhos passos...
— Acorda, Ravenala. Se não se levantar logo vai perder a primeira aula.
— Cadê Bob?
— Que Bob? Ele esteve aqui ontem...
— Hoje já é ontem?
— Sempre haverá um ontem, um hoje e um depois.
— Deve ser triste a vida numa ilha deserta, não vó?
— De onde você tirou isso, menina?
  E Ravenala apagou a ideia de encontrar um náufrago. Preferia descobrir uma ilha em que ninguém jamais houvesse habitado, nem mesmo os fenícios. Assim, com caneta e papel, cruzaria os céus nas asas de uma aeronave. Seu pensamento a interrompeu. ‘ E o medo de avião?’ Então, por que não viajar de navio, deixar o cabelo esvoaçar ao vento da proa, e os olhos se encantarem com o sol que se põe atrás das asas de uma gaivota — ‘E, se o navio naufragar’ — ‘Bem, se o navio naufragar, poderei  descobrir uma ilha, uma ilha deserta e batizá-la com o nome  Basileia de Salomão. Gravar meu nome nas paredes de uma gruta e escrever histórias em  livro de pedra. 
Teve medo. Sentiu-se prisioneira da Caverna de Platão.
— Viste o filme ‘O Náufrago?’
— Vi.
— Ainda assim, queres morar numa ilha?
— Às vezes tenho medo. Mas, não permito que os temores afastem meu espírito dos caminhos que me levam a  desvendar mistérios.
— Mistérios? Cochilaste o tempo todo durante a aula, pensando em mistérios?
— Fala baixo, Bob. Será que a professora percebeu que dormi?
— Não consigo desvendar os mistérios guardados no coração de uma mulher.
— Para Bob. Eu me refiro à professora.
Robert   sabia que a fêmea escolhe o parceiro pela capacidade de lhe dar uma cria geneticamente saudável. Mas que atrativo tinha  ele? Beleza física, cultura, recursos financeiros? Nada! Nada disso ele tinha.
— Já pensaste em ser freira?
— Por que esta pergunta agora?
— Ora, as freiras são consagradas a Deus. E eu não arriscaria concorrer com o Criador.
—  Bob...
— Será por que não se fazem imagens feias de santos, ou imagens de santos, feios? Todo santo é bonitinho. Até São Simão...
— A  beleza é espiritual, não física. O escultor transfere para a matéria a beleza espiritual da representação plástica que ele reproduz, até mesmo por uma questão comercial. Entre um santinho feio e um bonito, o mercado financeiro dá preferência ao belo.
— Creio nisso, mas não justifica a imagem de um Jesus loiro. A região onde  Ele nasceu não tem loiros!
— Quem fez a primeira imagem de Jesus na Europa, por certo, era loiro... Mas nossa  imagem e semelhança  com Deus deve ser espiritual. Não na carne.
— Decepcionado com esta informação?
-- Deus vê o coração.

Robert   reconhece que seu discurso oral não era nada comparável com a de um grande conquistador de mulheres. Ingênuo demais, ele era.
— Recebi teu  convite de aniversário.
— Claro, entreguei em suas mãos!
— Ih!... Ih!...
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou."