Descanse os pés

- Sabe o que eu acho melhor nos veículos autônomos? - Ponderou James enquanto seguíamos pela Interestadual C4 à 150 km por hora. - É que eles tornaram realidade a expectativa de que podemos descansar os nossos pés enquanto vamos do ponto A ao ponto B.

O veículo, como tornara-se usual naqueles dias, era um oval no qual a cabine de passageiros, circular, ocupava a maior parte do espaço interno, com assentos contínuos dispostos ao longo das paredes. Não havia mais espaço para condução manual, embora, teoricamente isso ainda pudesse ser feito numa emergência.

- Não só os pés - retruquei, desviando os olhos do tablet onde estivera lendo notícias. - Braços, olhos... atenção.

- Mas os pés foram mesmo os maiores beneficiados - continuou ele. - Passamos de um estágio que durou quase que toda a existência da espécie humana, que era o de caminhar para se deslocar de um lugar para outro, para uma fase intermediária em que os pés meramente apertavam pedais. E agora... isso, liberdade total!

E balançou os pés, calçados apenas de meias, como que para reforçar suas palavras.

- Sim, é fato... nos livramos do fardo de termos que caminhar... ao menos em grandes distâncias, e por falta de opção. O automóvel talvez tenha sido a última barreira a ser quebrada, neste aspecto. Mas, e aí talvez tenhamos que nos perguntar: não estaríamos também abrindo mão do nosso último resquício de liberdade para as máquinas que controlam agora o deslocamento de todos os veículos?

James deu de ombros.

- Talvez você tenha razão... em parte. Prefiro pensar que hoje temos deslocamentos mais rápidos e seguros justamente por termos aberto mão de um pouco da nossa liberdade e autonomia. As máquinas são realmente muito mais confiáveis do que os seres humanos.

Olhei para a paisagem de campos de soja, em ambos os lados da estrada, e comentei:

- Sim, na direção de automóveis as máquinas são muito mais confiáveis do que nós. O meu ponto é: e se elas começarem a acreditar que também são boas dirigindo outros aspectos das nossas vidas? Afinal, poupam milhões de vidas todos os anos, só no trânsito.

James não me respondeu de imediato, testa franzida. Finalmente, abriu um sorriso e descontraiu-se.

- Penso que, se notarmos alguma coisa estranha, sempre poderemos usar os nossos pés novamente.

E, com uma piscadela:

- Pedalando em bicicletas!

- [13-02-2018]