Até as outras crianças, quando nos viam, fugiam de nós ou nos atiravam pedras e gritavam sempre:
- Fora, maltrapilhos!
Era o que ouviam dizer ás mães quando, famintos, nos atrevíamos a bater às portas das casas pequenas do bairro.
Andávamos quase nus, descalços, sujos, feridos, o cabelo desgrenhado, o estômago vazio, mas sempre com a boca a sorrir, sempre dispostos a fazer diabruras àqueles que nos escorraçavam.
Éramos três: o Ruivo e a Sardenta eram irmãos. Tinham ambos as cabeças vermelhas e as caras salpicadas de pontinhos, muitos pontinhos negros. Ela era a mais velha, teria uns nove anos. Isso dava-lhe certa importância e autoridade quando, por uma caixa velha encontrada no lixo, discutíamos.
Eu era a mais nova e vivia com eles na barraca, depois da morte dos meus pais, que aliás nunca tinham querido saber muito de mim. Mas como a caridade se vê sobretudo nos mais pobres, eles lá conseguiram arranjar-me um lugar na sua casa já cheia.
Num dia de inverno frio, escuro e triste, depois de termos procurado debaixo de chuva em todas as latas do lixo, de termos roubado uma laranja a um vendedor ambulante e conseguido um pão fresco na padaria da esquina, resguardámo-nos na escada de um prédio e começámos a comer, com delícia, o nosso almoço.
Nisto o Ruivo, esperto e matreiro, de quem havia sempre algo de extraordinário a esperar, levantou-se, abriu os braços, fez uma pirueta, sentou-se outra vez, pôs-se a olhar para longe, para muito longe de nós, e disse:
- Eh malta! Vocês sabem porque é que está tanto frio?
Nós, nem resposta. Estávamos habituados a perguntas deste género vindas da parte dele. Continuámos a comer em silêncio.
- Sabem, ou não?
- Não! – respondeu-lhe a irmã.
- Mas eu sei! – disse com uma voz triunfante.
Nós, caladas. Isso pareceu irritá-lo porque se levantou de um pulo, cerrou os punhos e gritou:
- Vocês querem ou não querem saber?
- Porque é? – perguntei eu.
- Porque vai ser o Natal.
- Natal?! – Admirou-se a Sardenta – O que é o Natal?
- Ah, agora sim! Ora oiçam lá o que eu ouvi os Lanzudos estarem a dizer:
Lanzudos era a nossa maneira de tratar os outros, os ricos, os que se vestiam de lã e corriam e brincavam sem ninguém lhes fazer mal.
- Que é que ouviste? Conta! – pedimos.
- Eles estiveram a dizer que o Natal é uma festa e que se dão prendas às pessoas e que é por isso que as montras estão tão bonitas.
- Oh, temos de ir ver as montras! – disse eu. E logo a Sardenta:
- Isso! Experimenta, que logo vês o que te acontece! Eu cá não vou, não! Já estou farta de apanhar!
Baixei a cabeça, triste, mas o Ruivo consolou-me:
- Deixa lá, Macaquinha, vamos nós, queres?
- Quero sim! – respondi logo eu. Quando é que há-de ser?
- Logo à noite, quando há muitas luzes e pouca gente na rua.
- Está bem!
À noite, a Sardenta foi para a barraca, para junto dos pais e irmãos e eu e o Ruivo partimos à aventura. Tínhamos medo, mas ainda maior curiosidade de ver as coisas com que os Lanzudos fariam a tal festa Natal.
Já era bastante tarde. O vento zumbia, cortante. Passavam alguns carros e pessoas embuçadas que não reparavam em nós. As luzes deslumbravam e aquelas enormes janelas enfeitadas com bolas grandes e brilhantes, com ramos verdes, com sinos de ouro e prata, com grandes bonecas sorrindo, com castelos de chocolate, bolos, pão, fruta... deslumbravam-nos ainda mais.
Abríamos muito os olhos e soltávamos ohs e ahs ... esborrachávamos os narizes de encontro aos vidros.
- Ruivo, olha como é grande aquela bola! E como brilha!
- Sim, tão linda! E vês aquele carro, mais abaixo? Quase jurava que anda sozinho. Até parece a sério!
- E aquela boneca além? Parece mesmo um bebé. Oh se eu tivesse uma boneca assim!
- Que sorte têm os Lanzudos !
- E porquê só eles, Ruivo? Porquê?
- Sei lá! Afinal isto tudo é para lembrar o nascimento de um miúdo pobre... Vê se entendes!
- O quê?! De um miúdo pobre?
- Sim, foi o que eu ouvi. Disseram que ele dormia na palha como a gente.
- Ah, ainda bem que ele não era Lanzudo!
- Lanzudo? Bom, parece que era rei. É tudo muito esquisito. Também disseram que tinha não sei quê mais que a gente.
- Ora! Estás a ver aquele bolo grande, todo branco? Que bom deve ser!
- Oh, sim! E aquele castanho mais abaixo? Tem uns molhinhos de palha e em cada um um bonequinho cor-de-rosa, vês?
- Que engraçado!
E assim fomos, rua após rua, demorando-nos diante de cada montra, fazendo conjecturas, admirando tudo. Mas o tempo passava e o sono chegou. Combinámos vir mais vezes.
- Amanhã a gente volta, sim, Macaquinha?
- Sim! Quero ver tudo, tudo! Que coisas tão lindas, hein, Ruivo?
- E agora? Vamos para a barraca?
- Não! Tenho muito sono. Olha uma portada aberta, vamos!
Não tardou, estávamos a dormir num canto, com um sorriso nos lábios, sonhando ser os donos de todas aquelas maravilhas.
Ao outro dia não parámos de falar à Sardenta em tudo o que tínhamos visto. Ela já estava meio resolvida a acompanhar-nos, mas o medo foi mais forte. Ficou.
Chegada que foi a noite, lá fomos nós outra vez e a cena repetiu-se por muitos dias, e em todos eles nos extasiávamos diante das mesmas coisas, descobrindo outras, cada vez mais encantados.
Mas naquela noite o vento era tão frio, a chuva tão forte, que resolvemos refugiar-nos em qualquer lado à espera que o temporal amainasse para depois continuarmos o nosso passeio.
Por entre as grossas bátegas, começámos à procura de qualquer canto seco, até que avistámos uma grande porta por onde, durante certo tempo, entrou muita gente. Depois, mais ninguém.
Resolvemos espreitar: para lá dessa porta havia outra, fechada. Olhámos um para o outro e encolhemos os ombros, desanimados.
- Nada feito! Está fechada, disse.
- Atenção, Macaquinha! Vem aí alguém!
Rapidamente, escondemo-nos atrás da porta grande. Uma velhota entrou, empurrou a porta fechada e sumiu do outro lado.
- Olha! Afinal a porta pode-se abrir!
- Vamos dar uma vista de olhos?
- Vamos!
Devagarinho, abrimos a porta e espreitámos para dentro: Havia várias filas de bancos e, no meio deles, muitas pessoas. Lá ao fundo, à volta de uma estranha mesa, homens com roupas ricas e estranhas falavam uma linguagem que nunca tínhamos ouvido. Mais atrás, rapazes, todos vestidos de igual, cantavam.
Não sei de onde, vinha uma música bela, suave. Havia também muitas luzes e velas ardiam em redor da mesa. De vez em quando os homens, Lanzudos pela certa, faziam grandes gestos em direcção ao céu e ao povo, ajoelhavam e tornavam a levantar-se e as pessoas imitavam-nos e falavam muito baixinho.
- Os homens parecem zangados!
- Não acho, repara que todos fazem como eles.
- O que será isto? Seja o que for, lá de dentro vem um calor muito bom.
- E se a gente entrasse?
- Está bem, vamos.
A porta fechou-se silenciosamente atrás de nós, que nos metemos no canto mais escuro que encontrámos e aí ficámos a observar.
Mais uma pessoa entrou na casa e, com ela, o vento frio da rua. Arrepiei-me e o Ruivo estremeceu. Encostei-me mais a ele, que me passou um braço pelos ombros.
- E se nos sentássemos? Aqui atrás ninguém repara na gente. Estão todos tão atentos. Achas que nos mandam embora se nos descobrem aqui?
- Não, acho que não. Chega-te mais para cá. Está tanto frio, mesmo assim!
Sentámo-nos no chão. Estava-se ali bem. Pairava um fumo de cheiro esquisito, que vinha da mesa onde os estranhos homens estavam.
O Ruivo perguntou:
- Ainda tens frio?
- Não... Ruivo, sabes quem é que nasceu?
- Não, não me lembro do nome.
- Um miúdo pobre que depois se passou para os Lanzudos?
- Não, não era bem isso, como te hei-de explicar?
- Como é que se chamava?
- Eu ouvi o nome... era Ju... Je... espera, era Jesus E não se passou nunca para os Lanzudos, dizem que eles o mataram por causa disso.
O coro continuava a cantar “Feliz Natal” “Feliz Natal”
Eu pensava que gente ruim eram os Lanzudos que tinhamapanhado o miúdo pobre e o tinham matado. 
Mas o mais esquisito de tudo era estarem a fazer-lhe uma festa cheia de coisas que nos faziam crescer água na boca.
Senti-me como ele e as lágrimas correram-me cara abaixo.
Senti o contacto quente de uns lábios na minha face. Vi o Ruivo despir o seu casaco leve e esfarrapado para me cobrir com ele. Sorri.
- Pobre do miúdo, o tal Jesus, se tivesse vindo com a gente...
Sorriu.
Lentamente, a cabeça descaiu-me, escorregou no ombro do amigo que ainda tinha e adormeci.