A INSTIGANTE ARTE DA VIDA - PARTE IV (PELAS RUAS)

(Novela em 14 partes)

Enfim amanheceu. Diana, com olhos túmidos, vermelhos e fixos no infinito, padecendo de um amargor insuportável na boca, nas entranhas, ferida e sangrando no corpo e na alma, hirta, prostrada sobre a cama, desfazia-se em lágrimas. O homem desprovido de escrúpulos que por toda a noite saqueara-lhe sexo e dignidade já havia se retirado.

Sentia-se incompleta, esvaziada, como se presa num despenhadeiro absurdamente íngreme, sedenta e faminta, à espera da morte. Retiraram-lhe as integridades física e moral, exploraram-na, humilharam-na! Achava-se perdida, confusa, em meio à incógnita de como seria sua vida a partir dali. O ar e a luz do dia a incomodavam. Foi tudo pesado demais!

Na verdade, Ana Lara acreditou na hipótese de Diana envolver-se à situação e aceitar as regras do jogo, deslumbrada pelas ilusões comuns à sua idade. Porém, sua costumeira sensatez arredia aos padrões, digamos assim, foi consumida por um egoísmo asqueroso e doente. Tudo o que conseguiu com sua atitude sórdida foi transformar sentimentos singelos de alegria e esperança em puríssimos ódio e revolta...

Ela possuía seus próprios conceitos, suas próprias diretrizes. Não reconhecia o mal que fez; muito pelo contrário, em sua forma de analisar os fatos, concedeu à jovem armas para defender-se em situações similares posteriores. Nunca se surpreendia com as atitudes das pessoas, por mais medíocres ou cruéis que pudessem parecer e não admitia que se surpreendessem ou criticassem as suas. Não havia espaço para culpas e remorsos em suas ações. Aprisionava-se num mundo lutuoso de dor e amargura a impor normas próprias de comportamento e a massacrar quem por ventura se opusesse a elas.

Bem, o fato é que Diana precisava sair daquela casa imediatamente. Havia que se quebrar a redoma de torpor na qual se via acondicionada. Num ímpeto, levantou-se da cama, acomodou a escassa bagagem na mochila e desceu. A toda poderosa, imóvel, de pé sobre a sala, molestou-a:

- Vejo que pretende partir.

A jovem, fitando-a com faíscas de asco perceptíveis no olhar, nada respondeu. Ela continuou:

- Não creio que seja prudente tal atitude. As coisas lá fora não são fáceis. De uma certa forma, eu a enganei sim, talvez tenha razão por indignar-se, mas o fiz porque sei que seria a melhor e menos desgastante maneira de você tirar proveito de sua beleza. Ganhei e ganharia muito dinheiro com seu trabalho, mas você também seria agraciada com justiça. Deve saber que as prostitutas são tão, ou às vezes até mais dignas que as outras mulheres. O produto do nosso trabalho é o prazer e isso é grandioso! Precisamos uma da outra. Lembra-se de quando me referi a trocas mútuas? Pois bem...

Diana, não suportando mais ouvi-la, desviou o olhar e insinuou passos em direção à rua, dando-lhe as costas, com ares de indiferença e desprezo. E Ana:

- Espere!

A jovem parou. Todavia, permaneceu de costas:

- Receba este dinheiro. Ele é seu por direito.

Sem hesitar, aproximou-se, apanhou o dinheiro - que não era pouco - e saiu. A cafetina, ao vê-la distanciar-se, murmurou:

- Ela irá voltar...

Na rua, o movimento de pessoas e coisas acorrentava seus passos. Observava tudo e em nada via perspectiva de recuperação moral e social. Para ela, só havia o inescrupuloso, o vil, o pérfido! Assumiu unicamente para si toda a culpa pelo que acontecera, uma vez que saíra de sua terra por vontade própria, subira as escadas da casa de Ana Lara com seus próprios pés e aceitara todas aquelas gentilezas feéricas sem muito questionar. Não conseguia suportar-se, sustentar sentimentos e emoções naquele seu corpo dorido que a enojava. A coragem e a esperança, características de personalidades nobres, aliadas à absoluta inocência de menina que jamais pisara numa capital, dilaceraram-na de maneira impiedosa e irreversível. Como prosseguir? Como se defender de outros possíveis infortúnios?

O fato é que a agitação urbana nunca concede espaços para reflexões em inércia. Tudo permanecia em movimento: ônibus circulando, pessoas correndo, vitrines em exibição, buzinas soando. Rotina ácida. Diana se viu então impedida de permanecer flutuando em seu interior ferido. De repente, um menino maltrapilho de uns dez anos parou à sua frente, falando com voz submissa e rouca:

- Moça, paga um pastel pra mim?

E ela, apesar do semblante grave e pesado, abriu o fecho da mochila para apanhar o dinheiro, quando, num piscar de olhos, o menino arrancou-lha dos braços e correu, sumindo por entre os carros como se por magia. A partir daquele momento, munia-se apenas da roupa do corpo e dos documentos, que se encontravam no bolso traseiro da calça. Impossibilitada de qualquer reação, abaixou-se lentamente, acomodando o dorso na parede de uma loja.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 02/10/2010
Reeditado em 02/10/2010
Código do texto: T2533233
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